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Haught afirma
que os novos ateus são fundamentalistas |
John F. Haught, filósofo americano criador do conceito de teologia evolucionista, comentando o livro de Richard Dawkins, "Deus, um delírio", afirma: “A crítica da crença teísta feita por Dawkins se equipara, ponto por ponto, ao fundamentalismo que ele está tentando eliminar”.
Haught é professor de teologia da Universidade de Georgetown, Estados Unidos e membro sênior do Woodstock Theological Center. Graduado em Filosofia, pela St. Mary’s University, de Baltimore, é mestre e PhD. pela Catolic University of America, Washington.
A entrevista.
Como você descreveria a mensagem de seu livro "Deus após Darwin"?
A ciência evolucionista mudou drasticamente nossa compreensão do mundo. Assim sendo, qualquer percepção que tenhamos de um Deus que cria e mantém este mundo precisa levar em conta o que Darwin e seus seguidores nos disseram sobre ele. Enquanto que o próprio Darwin (1) via uma certa “magnificência” em sua nova explicação da vida, recentemente muitos cientistas viram na evolução a derrota definitiva do teísmo. Entrementes, a teologia em geral deixou de pensar sobre Deus de uma maneira que levasse em conta o processo da evolução. O que eu tento fazer, portanto, é uma teologia evolucionista.
O que é teologia evolucionista?
Uma teologia evolucionista sustenta que o retrato da vida proposto por Darwin constitui um convite para que ampliemos e aprofundemos nossa percepção do divino. A compreensão de Deus que muitos e muitas de nós adquirimos em nossa formação religiosa inicial não é grande o suficiente para incorporar a biologia e a cosmologia evolucionistas contemporâneas. Além disso, o benigno designer [projetista] divino da teologia natural tradicional não leva em consideração, como o próprio Darwin observou, os acidentes, a aleatoriedade e o patente desperdício presentes no processo da vida. Uma teologia da evolução, por outro lado, percebe todas as características perturbadoras contidas na explicação evolucionista da vida. Uma teologia da evolução não deve evitar, e sim, pelo contrário, assumir todas as características da vida que perturbaram as pré-concepções religiosas do próprio Darwin e de seus seguidores. Uma teologia da evolução precisa mostrar que os aspectos mais fundamentais da fé bíblica não contradizem, mas, pelo contrário, iluminam o caráter evolutivo do mundo. Uma compreensão de Deus que seja adequada em termos religiosos não só tolera, mas exige a ousada extensão das fronteiras cósmicas implicada na ciência evolucionista.
Como essa teologia evolucionista conjuga o binômio fé-razão? Você pode dar mais detalhes sobre sua proposta para unificar ambos os campos?
O envolvimento da teologia com a evolução beneficia não só a consciência religiosa, mas também a causa da razão e da ciência. As descobertas e conclusões científicas de Charles Darwin, um dos mais brilhantes pensadores do mundo, ainda são percebidas por um grande setor da população mundial como inteiramente irreconciliáveis com uma percepção apropriada de Deus. Grande parte dessa desconfiança provém, infelizmente, do fato de que, às vezes, os biólogos evolucionistas apresentam idéias darwinianas de uma maneira materialista que coloca a ciência em aparente oposição à fé. Assim, atualmente muitas pessoas religiosas acham que são obrigadas a rejeitar a evolução – bem como outras idéias científicas. Eu desenvolvi uma teologia da evolução não só em benefício da formação religiosa, mas também para promover a formação científica – e a razão em geral.
Quais são as tensões que ainda persistem entre religião e ciência? Como o diálogo entre ambas pode fazer avançar a humanidade?
Primeiramente, pergunta-se se o método científico de entender o mundo tornou a fé religiosa intelectualmente implausível. Mas também há outras perguntas: a ciência exclui a existência de um Deus pessoal, como sustentou Albert Einstein? A evolução torna indigna de crédito toda a idéia da providência divina? A vida e a mente podem ser reduzidas à química? Podemos continuar a afirmar plausivelmente que o mundo é criado por Deus ou que Deus realmente quer que os seres humanos estejam aqui? É possível que toda a complexa padronização que ocorre na natureza seja simplesmente o produto do acaso cego e da necessidade física? Numa era da ciência, podemos crer sinceramente que o universo tem um propósito? Essas são algumas das perguntas que constituem o chamado “problema” da ciência e da religião. Elas continuam muito vivas atualmente e evocam uma gama interessante de respostas. Em meu livro Science and Religion: From Conflict to Conversation [Ciência e religião: do conflito ao diálogo], observo que há quatro formas principais de entender a relação entre religião e ciência:
1) Algumas pessoas afirmam que a religião é completamente oposta à ciência ou que a ciência exclui a religião. Esta é a posição que chamo de conflituosa.
2) Outras insistem que a religião e a ciência são tão claramente diferentes uma da outra que o conflito entre elas é logicamente impossível. Esta é a abordagem contrastante.
3) Um terceiro grupo de pessoas, do qual faço parte, sustenta que a religião e a ciência não são opostas nem completamente independentes uma da outra. Elas sempre se influenciam mutuamente, muitas vezes de formas ocultas. Chamo esta abordagem de contativa.
4) Uma quarta abordagem, com a qual também simpatizo, sustenta que há formas significativas pelas quais a religião apóia positivamente a aventura científica da descoberta. Ou seja, a religião oferece um tipo especial de confirmação ao trabalho dos cientistas. Concordo com Alfred North Whitehead (2) de que o futuro da humanidade e da civilização depende de encontrar-se uma concordância entre a ciência e a fé, e essa é a razão pelo qual enfatizo a necessidade de reconciliar a fé bíblica e a evolução de maneira coerente.
Ainda persiste o embate entre o desígnio inteligente, o acaso e a evolução como explicações para a origem da vida. O senhor poderia explicar qual é sua posição?
A concepção benigna de um projetista divino que controla serenamente a natureza parece bastante remota do perturbador retrato da vida proposto por Darwin. Os elementos do acaso, da luta pela sobrevivência, da seleção natural cega dos fortes e da eliminação dos fracos sugerem que a natureza pode ser implacável e impessoal, ao mesmo tempo em que também é espantosamente inventiva. A biologia evolucionista, como qualquer outro ramo da ciência, é obrigada a procurar uma explicação puramente natural do design. A teologia tem de permitir que a ciência vá tão longe quanto conseguir na explicação do design adaptativo de uma maneira “naturalista”. Mas também creio que a biologia evolucionista ainda é apenas um nível de toda uma hierarquia de explicações necessárias para entender a história da vida com profundidade. A teologia pode fazer parte dessa hierarquia de explicações. Creio, com efeito, que precisamos, a uma certa altura, apelar para a teologia para explicar, em última instância, por que, afinal, há ordem ou projeto na natureza – bem como para explicar por que há instabilidade e processo também. Mas introduzir a noção de Deus como explicação científica deprecia a teologia. Parece-me que é isso o que os defensores do design inteligente fazem, e eles merecem a crítica que recebem tanto dos biólogos evolucionistas quanto da maioria dos teólogos. Podemos explicar a vida e seus projetos complexos em muitos níveis, sem que um nível seja oposto ao outro.
Design inteligente. Uma idéia científica?
A física, por exemplo, pode explicar a ordem e o projeto da vida de modo inteiramente adequado de um ponto de vista termodinâmico sem se intrometer em explicações biológicas. A química também pode explicar a vida em seu próprio nível. E o mesmo se aplica à teologia. A teologia, como um nível em toda uma hierarquia de explicações, tem um papel legítimo a desempenhar em nossa explicação profunda da natureza da vida. Problemas só surgem quando especialistas num nível pretendem que sua explicação da vida seja a única adequada. As pessoas que propõem o design inteligente inserem o “projetista inteligente” num nível de explicação que é próprio da ciência, e não da teologia. Elas tratam erroneamente a idéia do design inteligente como se fosse uma idéia científica.
Teilhard de Chardin costumava dizer que, após Darwin, Deus precisava deixar de ser visto apenas como Alfa (o começo de tudo) e mais como Ômega (a força para a qual o Universo estava caminhando). Nesse sentido, o senhor poderia dizer em que aspectos as suas idéias se aproximam das idéias do jesuíta?
Proponho, primeiramente, que Deus semeia o universo não com um design, mas com a promessa de finalmente se tornar vivo e consciente. A “palavra de Deus”, que de acordo com o livro de Gênesis paira sobre a criação no início, é uma palavra de promessa. O universo é inseparável da promessa divina de um futuro sempre novo. Teologicamente, parece necessário dizer que o desdobramento temporal e espacial do universo e da vida passa continuamente por um “campo de promessa”, que consiste de todas as possibilidades que lhe são oferecidas por um Deus gracioso e generoso. Em segundo lugar, juntamente com Teilhard, proponho que, em algum sentido, Deus (ou o Espírito de Deus) é esse campo de promessa. Isso é consistente com a noção teilhardiana de que Deus é mais Ômega do que Alfa. Em última análise, é a entrada mais plena do mundo em Deus e a entrada silenciosa de Deus no mundo na modalidade da promessa que permite que a natureza evolua na direção da vida e da mente. Entretanto, esse envolvimento íntimo de Deus com o mundo permanece completamente fora do âmbito da detecção científica.
Dawkins prega a intolerância completa no que diz respeito à fé, exatamente a mesma intolerância a que se opõe. Nesse sentido, de que forma o senhor interpreta o fortalecimento das religiões face ao recrudescimento do fundamentalismo ateísta?
A crítica da crença teísta feita por Dawkins se equipara, ponto por ponto, ao fundamentalismo que ele está tentando eliminar. Com efeito, no amplo espectro do ateísmo contemporâneo, Dawkins é um exemplo perfeito de um extremo cientificamente literalista, quase da mesma maneira como os fundamentalistas religiosos que ele condena representam o extremo literalista no amplo universo do pensamento judaico, cristão e islâmico. A semelhança não se dá por coincidência. Tanto os literalistas científicos quanto os religiosos supõem que não haja nada debaixo da superfície dos textos que estão lendo – a natureza, no caso da ciência, e as sagradas escrituras no caso da religião. O cientificismo é a versão do fundamentalismo literalista da comunidade científica, já que supõe que o universo só se torne plenamente transparente para o pensamento se for apresentado na linguagem impessoal da ciência. De modo semelhante, o literalista religioso supõe que a plena profundidade do que está acontecendo no mundo real se torne evidente para o crente verdadeiro no mais simples sentido dos textos sagrados.
Dawkins afirma que é imoral marcar os filhos com a religião de seus pais. Por outro lado, como podemos transmitir às crianças valores como a solidariedade e o perdão sem entrar no campo religioso?
Dawkins tem razão em dizer que as pessoas podem ser muito morais sem terem uma crença religiosa. Além disso, pessoas religiosas podem ser muito malvadas e cometer atrocidades em nome de Deus. Mas, em geral, a exposição da moralidade e de sua relação com a fé religiosa feita por Dawkins é uma exibição notável de ignorância e sarcasmo tolo. O que é mais lamentável em sua exposição é que ele ignora completamente o cerne moral do judaísmo e do cristianismo, a saber, a ênfase na justiça e o que passou a ser conhecido como a opção preferencial de Deus pelos pobres e desfavorecidos, bem como o tema do perdão incondicional de Deus. Ele acha que podemos entender questões modernas e contemporâneas como a justiça social, os direitos civis e os movimentos de libertação sem qualquer referência a Amós, Oséias, Isaías, Miquéias, Jesus e outros profetas bíblicos. Até mesmo a maioria dos humanistas ateus não concordam com tal posição extremista.
Quais são as principais respostas críticas que você faz a Dawkins, Harris e Hitchens no livro que será publicado ano que vem?
A imprensa popular e as discussões na internet deram atenção considerável às recentes declarações ateístas de Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens, que viraram best-sellers, mas essas mídias raramente examinaram a fundo os pressupostos desses autores. Meu livro intitulado God and the new atheism: a critical response to Dawkins, Harris and Hitchens [Deus e o novo ateísmo: uma resposta crítica a Dawkins, Harris e Hitchens] oferece a leitoras e leitores de muitas origens um conjunto compacto de críticas que, assim espero, comprove ser útil e interessante na infindável discussão da crença religiosa e do ceticismo moderno. Escrevi o livro para evidenciar as falhas e falácias fundamentais do “novo ateísmo”, especialmente sua crença no naturalismo científico. Trata-se da crença de que a natureza é tudo que há, de que Deus não existe e de que a ciência é o único caminho que conduz à verdade. Quanto mais profundamente me envolvi na escrita de meu livro, tanto mais evidente se tornou para mim que eu estava oferecendo uma crítica não só do novo ateísmo, mas também do tipo tacanho de pensamento religioso, ética e espiritualidade contra o qual ele está reagindo. Embora os novos ateístas rejeitem o Deus dos criacionistas, fundamentalistas, terroristas e advogados do “design inteligente”, é digno de nota que eles tenham decidido debater com esses extremistas, e não com teólogos de peso. Os novos ateístas estão dizendo, com efeito, que, se é que Deus existe, deveríamos permitir que a identidade desse Deus seja determinada de uma vez por todas pelos fundamentalistas das tradições religiosas abraâmicas. Creio que eles optaram por essa estratégia não só para tornar mais fácil a tarefa da crítica, mas também porque têm uma admiração mal-e-mal disfarçada pela simplicidade da concepção de realidade de seus oponentes. A melhor prova de sua própria atração por uma cosmovisão descomplicada pode ser encontrada em sua adesão ao fundamentalismo ainda mais simplista, conhecido como naturalismo científico.
Notas
(1) Charles Robert Darwin (1809-1882): naturalista britânico, propositor da Teoria da Seleção natural e da base da Teoria da Evolução no livro A origem das espécies. Teve suas principais idéias em uma visita ao arquipélago de Galápagos, quando percebeu que pássaros da mesma espécie possuíam características morfológicas diferentes, o que estava relacionado com o ambiente em que viviam. Em 30-11-2005, a Prof.ª Dr.ª Anna Carolina Krebs Pereira Regner apresentou a obra Sobre a origem das espécies através da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida, de Charles Darwin, no evento Abrindo o Livro, do Instituto Humanitas Unisinos.
(2) Alfred North Whitehead (1861-1947): filósofo e matemático inglês. Com Bertrand Russel, escreveu Principia Mathematica. Ele também desenvolveu a chamada Teologia do Processo.
'Meu grande sonho é a completa destruição de todas as religiões'
Dawkins. Teoria da evolução. Ciência versus religião.