Mãos em luvas com formigas gigantes |
Em agosto do ano passado, o Fantástico mostrou meninos índios enfiando as mãos em luvas para serem picadas por formigas gigantes bravas. A expressão do rosto deles demonstrava que a dor era intensa.
Os jovens índios começam a questionar os ritos de passagem como esse.
Meninos e meninas, que vão à escola para aprender português e acessam a internet, informando-se sobre o que ocorre no mundo e que se interagem com os brancos pelas redes sociais, se perguntam por que devem se submeter à brutalidade em nome de uma tradição que já foi superada em muitos aspectos pelo aculturamento.
Há outros ritos tão brutais quanto ao da luva de formigas.
Dois exemplos: em aldeias da tribo dos kamayurás, as meninas, após a primeira menstruação, são mantidas reclusas por mais de um ano, com pouca comida e sem poder cortar o cabelo. Na tribo dos ikpengs, o rosto dos meninos tem de ser tatuado com espinho de tucumã sem qualquer tipo de anestésico.
Os próprios pais já começam a reavaliar esse tipo de ritos, porque, quando jovens, não gostariam de ser submetidos a eles, se pudessem evitá-los.
A defesa da tradição tem sido feita com ênfase por quem não precisa passar pela dor: os antropólogos. Sofia Mendonça, por exemplo, diz estar preocupada com a resistência dos jovens aos ritos, porque teme que se enfraqueça a identidade indígena deles, como se isso não ocorresse com o uso da internet, de tênis Nike, de equipamentos eletrônicos, de remédios químicos etc.
Mutuá, 13, de uma tribo do Xingu, reclamou do rito da tatuagem. “Judiaram de mim”, disse. “Me pegaram de surpresa, quando eu estava dormindo.”
Se depender dos antropólogos, um dia o filho de Mutuá terá de passar pela mesma tortura.
De pai para filho, picadas de formigas
Comentários
A questão dos costumes tribais dos povos ditos “primitivos” é um dos temas mais espinhosos com que nos deparamos. Os espinhos a que me refiro estão ligados às contradições de nossa cultura dita “civilizada” e à maneira como ela encara as demais culturas do mundo.
Durante muito tempo os “africanos”, os “muçulmanos”, os “orientais” e os “aborígines” foram vistos como seres de segunda ou de terceira classe na humanidade, pessoas às quais não se aplicavam, pelo menos não integralmente, os valores do ocidente. A raiz do relativismo cultural se nutre, e muito, da continuidade de tal preconceito. Até há poucos anos, por exemplo, a voz corrente da “intelligentsia” internacional era de que os “povos muçulmanos” não teriam qualquer apreço pela democracia, com a qual o Islã seria incompatível. Os recentes movimentos nos países do Norte da África e do Oriente Médio deveriam ter envergonhado essa gente distinta que acha que tem a régua para medir a cultura alheia. Mas eles são ensebados e espertos e encontrarão uma maneira de continuar com credibilidade. Basta sacrificar os nomes proeminentes, como fizeram com Francis Fukuyama, o profeta do “fim da História” e arauto do consenso de Washington.
Dizer que o relativismo é preconceituoso é quase um acinte ao senso comum, porque a maioria de nós está em um contexto ideológico baseado na repetição ad nauseam de que o respeito às diferenças é uma forma de superação do preconceito. A afirmação insistente desta ideologia a transforma em um pseudo paradigma e nos faz admitir, sem raciocínio crítico, que a única maneira de respeitar alguém é aceitando-o como um pacote fechado, sem fazer interferências. Isto é monstruoso no aspecto ético, e é uma falácia lógica que não resiste a uma reflexão. Mas reflexão é justamente o que está proibido fazer sobre o tema: não há nenhuma receptividade a ideias que contradigam o pseudo consenso do relativismo. A antropologia, por exemplo, é uma ciência que hoje se funda firmemente nisto. Tal como os zoológicos se fundam na existência de animais em jaulas, a antropologia se funda em manter cada povo em sua jaula cultural particular.
A ideia de que as diferentes culturas devem ser aceitas como tais se baseia na noção de que todos os componentes de todas as culturas são construções sociais baseadas na tradição. O que o relativismo enfatiza é que a nossa própria cultura não é privilegiada como régua para medir as outras porque também os nossos valores são resultado de construções culturais. Em tese é uma afirmativa justa, porque de fato o hábito de usarmos calças enquanto os árabes usam vestidos é algo indiferente sob todos os aspectos, inclusive funcionais e estéticos. Porém, se sairmos do âmbito de vestidos e calçados e partirmos para valores e instituições políticas o relativismo perde sua justiça, porque os valores e instituições ditos “ocidentais” não o são de fato.
Um povo adotar valores de outro não é moralmente errado. Ninguém achou que os ingleses ficaram culturalmente descaracterizados quando adotaram as técnicas chinesas de porcelana e ninguém reclamou que os italianos aprendessem com os chineses a fazer macarrão. Os indianos não estão minimamente tristes por terem aprendido o conceito de democracia com os ingleses. Aliás, eles estão felizes até de terem aprendido a própria língua inglesa, que lhes permite ter um governo funcional e neutro em um país retalhado em mais de 1600 culturas.
As culturas não são bichos empalhados, que não mais se reproduzirão e nem interagem com o ambiente. Culturas são vivas. Elas se perpetuam, interagem com o meio, modificam-se, modificam ao meio em que vivem. Mudar faz parte da força de uma cultura. Querer preservar in vitro uma cultura, sem permitir que ela evolua interagindo com o meio em que existe é condená-la a uma forma de “empalhamento”.
Se queremos preservar as culturas indígenas, é preciso permitir que elas evoluam. Esta evolução é inevitável. Se os ritos intoleráveis permanecerem, os jovens quererão fugir ou crescerão com ódio da própria cultura. Nenhuma das circunstâncias favorecerá a conservação da cultura indígena. Não se preserva a cultura matando o índio e nem torturando-o.
Se aplicássemos esses conceitos relativistas toscos à nossa própria cultura “ocidental” (que aos olhos dos relativistas parece ser a única que tem o privilégio de estar livre para evoluir), ainda teríamos que estar fazendo coisas como enclausurar perpetuamente em conventos as moças que perdessem a virgindade antes de casar, ainda teríamos que passar a quaresma sem comer carne e a sexta feira da paixão sem sequer tomar água, ainda teríamos que considerar os canhotos como endemoninhados ou que marcar a ferro os criminosos.
Todos esses costumes foram abandonados (bem como inúmeros outros) porque se tornaram incompatíveis com a progressiva evolução de nossa ética social. Alguns eram meras superstições, outros derivavam de uma sociedade rigidamente patriarcal, outros eram devidos à falta de um sistema legal eficaz. Tudo isso mudou à medida em que nossa vida melhorou.
Com que argumentos lógicos podemos querer que os índios continuem submetidos a tais rituais? Como considerar perigosos esses jovens que não desejam perpetuar tais crueldades? Estaremos dizendo que os homens que no passado se levantaram contra as práticas crueis de nossa cultura eram igualmente perigosos? Estaremos sugerindo, por exemplo, que o marinheiro João Cândido, líder da rebelião contra o castigo da chibata na marinha brasileira, era um homem “perigoso” e que tal costume “enraizado em nossa cultura” desde o século XVII e herdado de Portugal desde o século XV, deveria ter continuado?
Pimenta no c* dos outros, é refresco...
http://arapucas.wordpress.com/2011/05/12/relativismo-no-dos-outros-e-refresco
E estamos de acordo nisso, Jessika. "No ... dos outros, é refresco".
Se causarem sofrimento, superadas. Quem se preocupa com o bem estar do proximo e uma vida regrada pelo bom senso não irá discordar.
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