Título original: Fetiche intelectual
por Luiz Felipe Pondé para Folha
Há duas semanas (A burca), eu disse que era a favor da lei francesa contra a burca (que muita gente confunde com o véu, que não é proibido na França). Aliás, com aquele véu, a mulher muçulmana parece uma Afrodite em versão corânica. Uma deusa de sensualidade. Andam pelas ruas juntas, como um vento que varre nossos olhos com seus olhos.
São a prova viva de que a invisibilidade da forma do corpo (ou a visibilidade apenas pressentida) é muito mais sensual do que a obscena explicitação da forma.
Um mar de e-mails e protestos contra a minha "intolerância com o outro". Obrigado.
Mas adianto: de todos os argumentos dos tranquilos defensores do "direito à burca" (acho a expressão engraçada por si só), um me parece o mais absurdo. Já vou dizer qual é.
Digo àqueles que discursam a favor da burca desde seus apartamentos com TV a cabo, de seus cursos de história da arte, de seus direitos de ir e vir e praticar sexo sadomasô, se assim o quiser, enfim, da condição de adorar Elvis, ETs, o nada, a mãe-natureza (pra mim está mais pra madrasta) ou seu próprio e pequeno "eu", que não acredito que nenhuma mulher use uma burca porque "quer".
O argumento mais absurdo é "as mulheres usam a burca porque querem". Não acredito nesse papinho multiculturalista.
O argumento "fulana nasceu na cultura X, a cultura X implica Y, logo fulana quer Y" é um sofisma barato. Quer ver?
Acho que um desses assinantes de TV a cabo, defensores do "direito à burca" provavelmente defenderia hoje o direito a "ser escravo" na medida em que "alguém foi acostumado pela cultura a isso". Será?
Que tal a "lapidação" (corte ritual do clitóris) que alguns praticam por aí? Também algo que devemos "achar objeto do direito da cultura". Azar de quem nasceu num lugar desses?
O debate contemporâneo é como uma guerra de trincheiras. Ninguém consegue ver muito longe, não existe mais nenhuma teoria grandiosa e definitiva, mas nem por isso é menos sangrento e sério. De minha parte, não tenho dúvida de qual lado da trincheira estou: daquele contra o fundamentalismo religioso seja qual ele for.
E fundamentalismo não é a mesma coisa que terrorismo islâmico (que alguns dizem que está acabando...). Muitas vezes o fundamentalismo é silencioso e invisível em seus modos de tortura. Fundamentalismo religioso é uma forma de reação aos "costumes modernos".
Nos dias seguintes a esse meu texto sobre a burca, uma mulher me abordou contando o seguinte. Em férias num país de maioria muçulmana, ela vira lado a lado uma alemã de férias com um shortinho desses de parar o trânsito e uma mulher com uma dessas burcas de mau gosto (o "de mau gosto" é por minha conta, ou melhor, minha culpa, minha máxima culpa).
Isso seria índice de como as "culturas" são diferentes. Uso as aspas aqui para a palavra "culturas" porque "cultura" virou um segundo grande fetiche da burguesia (o primeiro, segundo Theodor Adorno, seria a ciência). A inteligência burguesa blasé gosta de citar a "cultura" como prova de sua "generosa aceitação do outro" e de ausência de preconceitos. Quem diz que não tem preconceito é mentiroso.
A questão, caros defensores do "direito à burca", é que, no mundo do fundamentalismo religioso (e tem gente que acha que não existe fundamentalismo religioso...), a menina alemã não teria o direito de usar seu shortinho que para o transito. Ela também teria que usar a burca (claro, mas ela aceitaria porque afinal, a "cultura" a faria aceitar, ou a sua filha, no futuro).
A burca é o fundamentalismo religioso. Só cego não vê isso. Os talibãs (essa gente democrática, doce e respeitadora do "outro") adoravam as burcas e, de certa forma, a "inventaram".
Mas esses relativistas assinantes de TV a cabo, na realidade, são como gente de 18 anos que diz para o professor "cada um é cada um" a fim de que ele pare de encher o saco com perguntas difíceis.
No fundo, o segredo de dizer "é a cultura dela", ou "cada um tem um ponto de vista", é soar chique. É posar de estar em dia com o "respeito ao outro". Puro fetiche.
O problema é o forte viés teocrático que cobre a mulher com burca.
abril de 2011
Artigos de Luiz Felipe Pondé.
por Luiz Felipe Pondé para Folha
Há duas semanas (A burca), eu disse que era a favor da lei francesa contra a burca (que muita gente confunde com o véu, que não é proibido na França). Aliás, com aquele véu, a mulher muçulmana parece uma Afrodite em versão corânica. Uma deusa de sensualidade. Andam pelas ruas juntas, como um vento que varre nossos olhos com seus olhos.
São a prova viva de que a invisibilidade da forma do corpo (ou a visibilidade apenas pressentida) é muito mais sensual do que a obscena explicitação da forma.
Um mar de e-mails e protestos contra a minha "intolerância com o outro". Obrigado.
Mas adianto: de todos os argumentos dos tranquilos defensores do "direito à burca" (acho a expressão engraçada por si só), um me parece o mais absurdo. Já vou dizer qual é.
Digo àqueles que discursam a favor da burca desde seus apartamentos com TV a cabo, de seus cursos de história da arte, de seus direitos de ir e vir e praticar sexo sadomasô, se assim o quiser, enfim, da condição de adorar Elvis, ETs, o nada, a mãe-natureza (pra mim está mais pra madrasta) ou seu próprio e pequeno "eu", que não acredito que nenhuma mulher use uma burca porque "quer".
O argumento mais absurdo é "as mulheres usam a burca porque querem". Não acredito nesse papinho multiculturalista.
O argumento "fulana nasceu na cultura X, a cultura X implica Y, logo fulana quer Y" é um sofisma barato. Quer ver?
Acho que um desses assinantes de TV a cabo, defensores do "direito à burca" provavelmente defenderia hoje o direito a "ser escravo" na medida em que "alguém foi acostumado pela cultura a isso". Será?
Que tal a "lapidação" (corte ritual do clitóris) que alguns praticam por aí? Também algo que devemos "achar objeto do direito da cultura". Azar de quem nasceu num lugar desses?
O debate contemporâneo é como uma guerra de trincheiras. Ninguém consegue ver muito longe, não existe mais nenhuma teoria grandiosa e definitiva, mas nem por isso é menos sangrento e sério. De minha parte, não tenho dúvida de qual lado da trincheira estou: daquele contra o fundamentalismo religioso seja qual ele for.
E fundamentalismo não é a mesma coisa que terrorismo islâmico (que alguns dizem que está acabando...). Muitas vezes o fundamentalismo é silencioso e invisível em seus modos de tortura. Fundamentalismo religioso é uma forma de reação aos "costumes modernos".
Nos dias seguintes a esse meu texto sobre a burca, uma mulher me abordou contando o seguinte. Em férias num país de maioria muçulmana, ela vira lado a lado uma alemã de férias com um shortinho desses de parar o trânsito e uma mulher com uma dessas burcas de mau gosto (o "de mau gosto" é por minha conta, ou melhor, minha culpa, minha máxima culpa).
Burguesia gosta de citar a 'cultura' como prova de sua generosa aceitação do outro |
Isso seria índice de como as "culturas" são diferentes. Uso as aspas aqui para a palavra "culturas" porque "cultura" virou um segundo grande fetiche da burguesia (o primeiro, segundo Theodor Adorno, seria a ciência). A inteligência burguesa blasé gosta de citar a "cultura" como prova de sua "generosa aceitação do outro" e de ausência de preconceitos. Quem diz que não tem preconceito é mentiroso.
A questão, caros defensores do "direito à burca", é que, no mundo do fundamentalismo religioso (e tem gente que acha que não existe fundamentalismo religioso...), a menina alemã não teria o direito de usar seu shortinho que para o transito. Ela também teria que usar a burca (claro, mas ela aceitaria porque afinal, a "cultura" a faria aceitar, ou a sua filha, no futuro).
A burca é o fundamentalismo religioso. Só cego não vê isso. Os talibãs (essa gente democrática, doce e respeitadora do "outro") adoravam as burcas e, de certa forma, a "inventaram".
Mas esses relativistas assinantes de TV a cabo, na realidade, são como gente de 18 anos que diz para o professor "cada um é cada um" a fim de que ele pare de encher o saco com perguntas difíceis.
No fundo, o segredo de dizer "é a cultura dela", ou "cada um tem um ponto de vista", é soar chique. É posar de estar em dia com o "respeito ao outro". Puro fetiche.
O problema é o forte viés teocrático que cobre a mulher com burca.
abril de 2011
Artigos de Luiz Felipe Pondé.
Comentários
afinal são primos irmãos....
lendo o texto chego ouvir ele falando...e é formidável...
só me resta agradecer por mais essa maravilha de texto
Quando você vai a um país muçulmano, tem de se vestir como eles exigem, mas eles vêm até nós e não aceitam nossos costumes. O velho ditado não se aplica mais? "Em Roma, como os romanos".
Em minha opinião o objetivo de algumas religiões é dominar, converter todo mundo, queiram ou não.
Querem o direito de liberdade de expressão mas não respeitam a liberdade de expressão dos outros. Libertinagem.
Suzy
Quando se transforma em maioria, ela destrói tudo que se pareça com tolerância.
Isso me lembra Nietzsche...
Mas também poderíamos afirmar, no contexto ocidental, que a preocupaçao doentia com o corpo e a superexposição deste pode ser condicionada pela mídia, que estipula padrões estéticos impossíveis de serem alcançados e torna a mulher objeto e blá-blá-blá. Vamos então proibir roupas que deixem metade dos seios e toda a barriga a mostra. Sim, está é a NOSSA cultura. Fazemos parte dela, podemos contestá-la, mas nunca proibi-la. Temos liberdade de expressão. Então porque não fornecê-la a quem provêm de outras culturas? Por que o Ocidente não pode começar sendo mais tolerante, mesmo que o Oriente não o seja? Sei que é clichê e chata a seguinte afirmação, mas a direi mesmo assim: intolerância não se cura com intolerância. A burca é um instrumento de dominaçào para nós, mas para algumas mulheres muçulmanas, dominação é o nosso culto ao corpo. Relativismo cultural existe e é válido. Nossos olhos estão condicionados pelos valores do nosso meio. E como o outro é sempre o errado, nossos olhos sempre o verão de forma negativa. Só que isso não deve ser levado ao extremo, claro- existem valores universais. O valor da vida humana nunca deve ser esquecido quando se avalia as diferenças culturais, mas ao mesmo tempo devemos evitar o julgamento subjetivo.
É isso. Sou contra a lei francesa contra a burca. Uma mulher que é coagida pelo seu marido a usar a burca tem, num país democrático, a condição de buscar ajuda na Justiça. Ela tem a liberdade de elevar a sua voz e expor a sua história, seja na Justiça, na polícia ou na imprensa. De forma que mulheres que usam burca em países democráticos, podem sim estar sendo obrigadas e não delatarem por ignorância ou medo, afinal, é difícil acreditar que naquele país ela tem direitos assim tão "absurdos". Mas muitas vezes elas a usam por herança cultural, por identidade, por acharem que essa é a atitude que uma mulher muçulmana respeitável deve tomar, por não se adapatarem a ocidentalidade. E nestes aspectos creio que não devemos intervir.
Leonora.
Não é por haver escravos que gostavam da escravidão que tal se tornou menos detestável e imoral.
Não, se temos uma sociedade melhor, não devemos aceitar costumes inferiores.
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