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Morte de cartunistas foi pelo direito de rir dos outros

por Eugênio Bucci

"Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório”

Carlos Pena Filho

"Se a liberdade não puder
ser alegre, não será liberdade"
Os cartunistas assassinados em Paris se converteram em mártires da alegria. Morreram em nome do direito que temos de rir de nossos semelhantes. Isso mesmo: um direito. A liberdade de pensamento, a liberdade de reunião e a liberdade de imprensa incluem a liberdade de sátira. A liberdade de fazer caçoadas em público. Na frente de todo mundo. Em pouquíssimas formas de expressão o tema da liberdade é tão sensível quanto numa anedota. Em sua forma breve, na fugacidade de sua graça instantânea, uma tirada sardônica talvez seja a expressão mais fiel de como a liberdade pode ser delicada, efêmera, indefesa como um lírio no campo. Se você quiser, um lírio com nariz vermelho de palhaço, mas ainda assim um lírio no campo. Vulnerável, gracioso, gratuito e engraçado.

A liberdade não é uma piada, por certo, mas, se não puder ser alegre, não será liberdade. Daí ser tão chocante admitir que os mártires da redação do Charlie Hebdo são mártires da alegria. Saímos dessa história mais tristes. Ainda que o atentado fosse uma espécie de morte anunciada, ainda que ele não fosse exatamente inesperado, saímos um tanto apalermados. O que nos consola é que temos a chance de sair disso mais livres – se tivermos mais consciência do significado da liberdade. Sobre as conquistas de liberdade sobre as quais se assentam nossas melhores utopias. São essas conquistas que nos mantêm vivos, como indivíduos e como sociedade. Hoje, mais que nossa alegria, essas conquistas se tornaram o alvo preferencial do terror. O atentado de Paris nos intima a saber valorizá-las e protegê-las. Ainda mais.

O que o terror não aceita não é o que as pessoas fazem com a liberdade. O terror, como o totalitarismo, não aceita a existência da liberdade, independentemente do uso que cada um dará a ela. Assim, o terror não aceita a democracia. A simples possibilidade de que os encarregados de administrar a coisa pública, nossos negócios comuns, sejam eleitos por todos é incompatível com os fundamentos do terror.

A democracia está assentada sobre a crença de que, se todos participam das decisões que afetam a coletividade, elas serão mais sábias e mais legítimas. O direito à educação e o direito à informação são uma decorrência lógica: sendo mais bem educado e mais bem informado, o cidadão estará mais preparado para delegar e fiscalizar o poder e, com isso, a democracia funcionará melhor. Também por isso, as liberdades de expressão, de culto, de pesquisa científica, de opinião, de reunião e de imprensa precisam estar garantidas. Se não há liberdade de expressão, de que modo poderemos conhecer as ideias uns dos outros? Eis por que sua liberdade depende da minha liberdade. Quanto maior a minha liberdade, maior a sua.

Os revolucionários franceses do século XVIII perceberam isso. Em 1789, ao redigir a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, afirmaram, no artigo 11, que “a livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem”. O mesmo princípio se manifestaria dois anos depois, na Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que proibiu o Congresso de legislar contra a liberdade de imprensa. Desde então, todas as constituições democráticas reafirmam o mesmo princípio, a do Brasil inclusive.

Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, o primeiro artigo assegura que “todos os homens nascem livres e iguais”. Nesse documento histórico, considerado o ponto mais alto da afirmação dos direitos humanos da história da humanidade, o adjetivo “livre” é o primeiro a ser invocado para definir o ser humano. Isso significa que os Direitos Humanos não apenas incluem, mas começam com a liberdade. E, se alguém precisa de alguma razão para ser livre, vai aqui a melhor de todas: rir. Nós temos o direito de rir.

Um dos nossos muitos problemas é que essas conquistas são muito recentes. Têm coisa de 200 anos e, em suas formas mais aperfeiçoadas, não passam de meio século. Ainda não foram bem compreendidas, não se decantaram e correm riscos extremamente graves. Quando dois terroristas, em nome de uma verdade implacável, sentem-se autorizados a matar o semelhante simplesmente porque ele ri e faz rir, não é apenas um grupo de pessoas que eles assassinam. Eles também feriram de morte os fundamentos da democracia e os ideais da convivência respeitosa entre nós, sejamos franceses, sauditas ou brasileiros.

Que verdade é essa que não suporta o gracejo? Qual é a verdade em nome da qual se mata alguém sumariamente? Uma verdade santa? Uma convicção religiosa pode ter validade indiscutível na consciência de um indivíduo, mas esse indivíduo, por mais fiel a seu Deus, não poderá impor sua convicção aos demais. Nas democracias amadurecidas, o Estado é laico, não tem religião, e isso não porque os cidadãos devam ser ateus, mas justamente pelo contrário. Somente num Estado laico os cidadãos terão liberdade real de escolher cada qual sua própria fé.

Também essa conquista, a da liberdade religiosa, é muito recente. Ela nos vem do século XVII, e não sem traumas. Em grande parte, devemos o princípio da tolerância religiosa ao liberal inglês John Locke, que recomendou que o Estado não se imiscuísse nos assuntos das igrejas – e vice-versa. As igrejas podem ter suas verdades absolutas, seus papas infalíveis, seus dogmas imperturbáveis, não o Estado. No Estado democrático, tudo é discutível, falível, pode ser contestado e reformulado.

"Que verdade é esta que
não suporta o gracejo?"
Parece um paradoxo, mas é por isso que podemos confiar uns nos outros. Somos confiáveis porque nos sabemos imperfeitos, falíveis, inacabados. A partir dessa consciência, aprendemos a reconsiderar nossos pontos de vista e condutas. Só quem se julga dono da verdade absoluta é capaz de fanatismo, e o fanatismo associado às armas é um delírio de perfeição de quem se vê associado a Deus. A tolerância, ao contrário, vem de saber-se humano, passageiro, transitório. A tolerância ainda é, porém, uma conquista histórica a ser alcançada. Ela também está sob amea­ça. E, mesmo assim, é preciso rir.

Nem mesmo a ciência se pretende infalível. A ciência só merece crédito porque está aberta ao questionamento, à crítica e a toda sorte de refutações. Nós não acreditamos nos cientistas porque eles não erram nunca, mas exatamente pelo oposto: acreditamos nos cientistas porque sabemos que, se eles errarem, serão contestados e seus experimentos serão demonstrados fajutos pelos próprios cientistas.

Na ciência, na Justiça, na política, na universidade, na imprensa, tudo o que temos de melhor tem seu alicerce não numa verdade inabalável, mas na abertura que nos permite discutir qualquer verdade que seja. E rir das verdades é uma maneira inestimável de discuti-las, além de muito mais divertida.

Este texto foi publicado originalmente na revista Época.





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