Escritor disse que perdoa deus por ele ser chefe de polícia do universo |
O escritor informou que, na infância, o catecismo lhe ensinou a fazer o bem com o interesse e não fazer o mal por medo. “Deus me oferecia castigos e recompensas, me ameaçava com o inferno e me prometia o céu; e eu temia e acreditava. [...] Passaram-se os anos. Eu já não temo nem creio.”
Assim, porque deus nunca experimentou o prazer do sexo, Galeano disse que o perdoa por ter sido o seu “super-pai castigador e chefe de polícia do universo”.
Em uma entrevista, o escritor disse que se tornou ateu na juventude.
Eduardo Hughes Galeano nasceu em 3 de setembro de 1940 em Montevidéu e morreu na mesma cidade no dia 13 de abril de 2015, vítima de um câncer de pulmão. Escreveu mais de 40 livros, misturando, em alguns deles, ficção, jornalismo, análise política e história.
No Brasil, como em outros países, o seu livro mais famoso é “As veias abertas da América Latina”, escrito em 1971. Em uma de suas últimas entrevistas ele criticou a superficialidade desse livro.
Foi pintor de letreiros, datilógrafo, mensageiro, caixa de banco e chargista. Aos 14 anos, vendeu seu primeiro desenho para o jornal El Sol, do Partido Socialista. Começou sua carreira jornalística na década de 1960 no semanário Marcha, do qual foi editor. Tornou-se um notório defensor das ideias de esquerda.
Em 1973, Galeano foi preso pelos militares que deram um golpe no Uruguai. Libertado, ele teve de se exilar na Argentina, de onde também teve de sair às pressas por causa do golpe liderado pelo general Jorge Videla. Refugiou-se na Espanha. Em 1985, com a redemocratização do Uruguai, voltou para Montevidéu, onde ficou até sua morte.
No “Livro dos Abraços”, ele faz ironia com o inferno cristão “[...] Se mereço ser assado cozido no caldeirão do inferno, condenado ao fogo lento e eterno, que assim seja. Assim me salvarei do purgatório, que está cheio de horríveis turistas da classe média; e no final das contas, se fará justiça.
Acrescentou que, afinal de contas, merece ir para o inferno, embora não tenha matado ninguém, “mas por falta de coragem ou de tempo, e não por falta de querer”.
“ Não vou à missa aos domingos, nem nos dias de guarda. Cobicei quase todas as mulheres de meus próximos, exceto as feias, e assim violei, pelo menos em intenção, a propriedade privada que Deus pessoalmente sacramentou nas tábuas de Moisés: Não cobiçarás a mulher de teu próximo nem seu touro, nem seu asno... E como se fosse pouco, com premeditação e deslealdade cometi o ato do amor sem o nobre propósito de reproduzir a mão de obra. Sei muito bem que o pecado carnal não é bem visto no céu; mas desconfio que Deus condena o que ignora. “
Em outro trecho do livro, ele afirmou que o Deus do Antigo Testamento lhe confessou o seguinte:
Pena que Adão fosse tão burro. Pena que Eva fosse tão surda. E pena que eu não soube me fazer entender. Adão e Eva eram os primeiros seres humanos que nasciam da minha mão, e reconheço que tinham certos defeitos de estrutura, construção e acabamento. Eles não estavam preparados para escutar, nem para pensar. E eu... bem, eu talvez não estivesse preparado para falar. Antes de Adão e Eva, nunca tinha falado com ninguém. Eu tinha pronunciado belas frases, como “Faça-se a luz”, mas sempre na solidão. E foi assim que, naquela tarde, quando encontrei Adão e Eva na hora da brisa, não fui muito eloquente. Não tinha prática.
A primeira coisa que senti foi assombro. Eles acabavam de roubar a fruta da árvore proibida, no centro do Paraíso. Adão tinha posto cara de general que acaba de entregar a espada e Eva olhava para o chão, como se contasse formigas. Mas os dois estavam incrivelmente jovens e belos e radiantes. Me surpreenderam. Eu os tinha feito; mas não sabia que o barro podia ser tão luminoso.
Depois, reconheço, senti inveja. Como ninguém pode me dar ordens, ignoro a dignidade da desobediência. Tampouco posso conhecer a ousadia do amor, que exige dois. Em homenagem ao princípio de autoridade, contive a vontade de cumprimentá-los por terem-se feito subitamente sábios em paixões humanas.
Então, vieram os equívocos. Eles entenderam queda onde falei voo. Acharam que um pecado merece castigo se for original. Eu disse que quem desama peca: entenderam que quem ama peca. Onde anunciei pradaria em festa, entenderam vale de lágrimas. Eu disse que a dor era o sal que dava gosto à aventura humana: entenderam que eu os estava condenando, ao outorgar-lhes a glória de serem mortais e loucos. Entenderam tudo ao contrário. E acreditaram.
Ultimamente ando com problemas de insônia. Há alguns milênios custo a dormir. E gosto de dormir, gosto muito, porque quando durmo, sonho. Então me transformo em amante ou amanta, me queimo no fogo fugaz dos amores de passagem, sou palhaço, pescador de alto mar ou cigana adivinhadora da sorte; da árvore proibida devoro até as folhas e bebo e danço até rodar pelo chão...
Quando acordo, estou sozinho. Não tenho com quem brincar, porque os anjos me levam tão a sério, nem tenho a quem desejar. Estou condenado a me desejar. De estrela em estrela ando vagando, aborrecendo-me no universo vazio. Sinto-me muito cansado, me sinto muito sozinho. Eu estou sozinho, eu sou sozinho, sozinho pelo resto da eternidade.”
A ironia desse texto é que Galeano, ao mostrar um deus invejoso, solitário e atormentado, acaba revelando uma divindade quase humana. E talvez porque o criador dela seja os humanos.
Com informação do “Livro dos Abraços”, Wikipédia e outras fontes, com foto de divulgação.
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