Parlamentares não deveriam ser porta-vozes de religiosos |
por Paulo Lôbo
para Consultor Jurídico
Durante quase 400 anos, desde o início da colonização portuguesa até o advento da República, o Estado e a Igreja Católica integravam a ordem política brasileira.
A Constituição imperial de 1824, apesar de sua inspiração iluminista e liberal, estabeleceu em seu artigo 5º: “A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”. Assim, à Igreja Católica se assegurou o domínio do espaço político, e às demais, o espaço privado.
A interferência da religião na vida privada foi marcante na formação do homem brasileiro, repercutindo na dificuldade até hoje sentida da definição do que é privado e do que é público, da confusão entre “o jardim e a praça” — a feliz metáfora de Nelson Saldanha —, do sentimento generalizado de que a coisa pública e as funções públicas seriam extensão do espaço familiar ou patrimônio expandido de grupos familiares.
Esse traço resistente da nossa cultura tem origem no desenvolvimento da sociedade portuguesa, transplantado para o Brasil colonial.
Durante quase 400 anos, desde o início da colonização portuguesa até o advento da República, o Estado e a Igreja Católica integravam a ordem política brasileira.
A Constituição imperial de 1824, apesar de sua inspiração iluminista e liberal, estabeleceu em seu artigo 5º: “A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”. Assim, à Igreja Católica se assegurou o domínio do espaço político, e às demais, o espaço privado.
A interferência da religião na vida privada foi marcante na formação do homem brasileiro, repercutindo na dificuldade até hoje sentida da definição do que é privado e do que é público, da confusão entre “o jardim e a praça” — a feliz metáfora de Nelson Saldanha —, do sentimento generalizado de que a coisa pública e as funções públicas seriam extensão do espaço familiar ou patrimônio expandido de grupos familiares.
Esse traço resistente da nossa cultura tem origem no desenvolvimento da sociedade portuguesa, transplantado para o Brasil colonial.
Para Nestor Duarte, o “privatismo característico da sociedade portuguesa” encontrou, no meio colonial brasileiro, condições excepcionais para o fortalecimento da organização familiar, “que se constitui a única ordem perfeita e íntegra que essa sociedade conheceu”. A casa grande era uma “organização social extraestatal, que ignora o Estado, que dele prescinde e contra ele lutará”. A igreja era a única ordem que conseguia preencher o vazio entre a família e o Estado no território da colônia.
A igreja regulava a vida privada das pessoas desde o nascimento à morte, conferindo a seus atos caráter oficial. Os atos e registros de nascimento, casamento e óbito eram da competência do sacerdote. Os cemitérios estavam sob controle da igreja.
Apenas com o advento da República, em 15 de novembro de 1889, o ideário da modernidade de separação do Estado e da igreja se consumou (Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890).
A Constituição de 1891 estabelecerá que (artigo 72, parágrafo 7º) “nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o governo da União ou dos estados”. A partir daí, confirmando-se nas Constituições subsequentes (como o artigo 19, I, da CF-88), a religião saiu juridicamente da vida política, destinando-se à vida privada.
O Estado laico é conquista de todos e das famílias, porque fundado na ética da tolerância. Não é hostil às religiões; ao contrário, surgiu no processo emancipador da humanidade, para assegurar a liberdade religiosa. Acolhe e garante os crentes e os não crentes. Nesse sentido, é o Estado neutro.
Apesar do advento mais que centenário do Estado laico, houve e ainda há tentativas de imposições de valores religiosos no ordenamento jurídico das relações familiares.
A igualdade entre os cônjuges, o reconhecimento jurídico das entidades familiares fora do casamento, o direito ao divórcio, a igualdade jurídica entre filhos de qualquer origem foram e são alvo dessa interferência indevida, em desafio aberto ao Estado laico. Foi difícil a luta para redução do quantum despótico nas famílias, ao longo do século XX; cada passo era resultado de árdua batalha legislativa, como se viu na progressiva emancipação dos filhos “ilegítimos”.
No âmbito privado, as pessoas podem dirigir suas vidas familiares de acordo com os valores da religião a que se vincula, desde que não conflitem com os princípios constitucionais. Podem, por exemplo, não se divorciar, se assim determina sua religião. Podem não concordar que haja outras entidades familiares fora do casamento.
Não podem, todavia, impor suas convicções religiosas ao conjunto da sociedade, ainda que aquelas sejam majoritárias, porque o Estado laico também protege outras convicções religiosas ou não religiosas minoritárias e a liberdade de cada pessoa de realizar seus projetos de vida.
É preocupante que alguns parlamentares assumam seus mandatos como representantes do povo e se convertam em porta-vozes de seus grupos religiosos, como se não vivessem em um Estado laico.
O Estado laico é conquista de todos e das famílias, porque fundado na ética da tolerância. Não é hostil às religiões; ao contrário, surgiu no processo emancipador da humanidade, para assegurar a liberdade religiosa. Acolhe e garante os crentes e os não crentes. Nesse sentido, é o Estado neutro.
Apesar do advento mais que centenário do Estado laico, houve e ainda há tentativas de imposições de valores religiosos no ordenamento jurídico das relações familiares.
A igualdade entre os cônjuges, o reconhecimento jurídico das entidades familiares fora do casamento, o direito ao divórcio, a igualdade jurídica entre filhos de qualquer origem foram e são alvo dessa interferência indevida, em desafio aberto ao Estado laico. Foi difícil a luta para redução do quantum despótico nas famílias, ao longo do século XX; cada passo era resultado de árdua batalha legislativa, como se viu na progressiva emancipação dos filhos “ilegítimos”.
No âmbito privado, as pessoas podem dirigir suas vidas familiares de acordo com os valores da religião a que se vincula, desde que não conflitem com os princípios constitucionais. Podem, por exemplo, não se divorciar, se assim determina sua religião. Podem não concordar que haja outras entidades familiares fora do casamento.
Não podem, todavia, impor suas convicções religiosas ao conjunto da sociedade, ainda que aquelas sejam majoritárias, porque o Estado laico também protege outras convicções religiosas ou não religiosas minoritárias e a liberdade de cada pessoa de realizar seus projetos de vida.
É preocupante que alguns parlamentares assumam seus mandatos como representantes do povo e se convertam em porta-vozes de seus grupos religiosos, como se não vivessem em um Estado laico.
Paulo Lôbo é advogado, doutor em Direito Civil pela USP. O título do texto é de autoria deste site.
Estado laico deve proteger todas as constituições de família