por Carlos Graieb, para Veja
No mês passado, a loja on-line Amazon se meteu em encrenca com um bom número de clientes. Ela acessou a biblioteca digital de centenas de proprietários do Kindle – o leitor de livros eletrônicos criado e comercializado pela própria Amazon – e apagou de lá alguns títulos, sob a alegação de que eles não tinham a licença necessária para ser comercializados on-line. Fez isso sem aviso e sem permissão, valendo-se da rede sem fio que, nos Estados Unidos, mantém cada aparelho vendido em contato com a empresa. De nada adiantou o pedido de desculpas oferecido, dias depois, pelo presidente da empresa, Jeff Bezos, que qualificou a ação de "estupidez". Tampouco surtiu grande efeito assegurar um reembolso pelos livros confiscados. O sequestro dos arquivos, com ou sem dinheiro devolvido, era somente uma agravante do delito original: a violação da privacidade. Uma ironia arrematou a história. Uma das obras apagadas era1984, o clássico do inglês George Orwell acerca de uma sociedade sob vigilância perpétua, cujo ditador oculto, o Grande Irmão, se mantém sempre "de olho em você".
"Assustador." Foi assim que David Pogue, colunista de tecnologia do jornal The New York Times,concluiu seu comentário sobre o episódio da Amazon. Há mais de 100 anos, essa é a nota dominante nas discussões em torno da privacidade: o temor diante de tecnologias que possibilitam a governos, empresas – e criminosos – coletar, analisar, utilizar e às vezes divulgar informações de cidadãos desprecavidos. O primeiro grande estudo jurídico sobre o direito à privacidade, assinado pelos juristas americanos Samuel Warren e Louis Brandeis, em 1890, já soava esse alarme. No ano em que os grampos telefônicos entraram em cena nos Estados Unidos, eles escreveram: "As fotografias instantâneas invadiram os recintos sagrados da vida privada e doméstica. Aparelhos mecânicos ameaçam confirmar a profecia de que ‘aquilo que foi sussurrado nos quartos será proclamado nos telhados’ ". O medo da perda da privacidade cresceu junto com o desenvolvimento cada vez mais acelerado, ao longo do século XX, das tecnologias da informação.
A principal preocupação diz respeito à coleta de informações privadas por empresas ou pelo governo. Num país como os Estados Unidos, onde os computadores são onipresentes nas repartições públicas, cerca de 2 000 bancos de dados mantêm informações sobre os cidadãos. Na esteira dos atentados terroristas de 11 de setembro, diversas leis foram aprovadas – a mais conhecida é o Patriot Act – para ampliar o acesso do governo a essas informações. Empresas apontam a eficiência como razão para coletar dados sobre seus clientes: ao compreenderem os hábitos do comprador, elas se tornariam capazes de direcionar suas ofertas com maior precisão. A ideia do "marketing direcionado" nasceu nos anos 20, com a General Motors, mas encontrou no computador sua ferramenta essencial a partir da década de 80. Começaram a surgir então as primeiras companhias inteiramente dedicadas a compilar e analisar informações financeiras, dados de consumo e perfis psicológicos. Nos Estados Unidos, algumas das mais antigas afirmam manter registros detalhados sobre mais de 200 milhões de pessoas.
A internet inaugurou um novo bazar da informação para quem puder coletá-la – algo que sites de busca como o Google e lojas on-line como a Amazon fazem ininterruptamente. Dez anos atrás, ao falar sobre a maneira como as empresas esquadrinham os rastros deixados pelos consumidores em sua navegação, Scott McNealy, cofundador da Sun Microsystems, um dos gigantes globais da tecnologia, sentenciou: "Sua privacidade já é zero. Pare de sofrer com isso". Recentemente, algumas empresas desenvolveram sistemas que, instalados no coração dos servidores de acesso à internet, permitiriam sondar todo o histórico de navegação de uma pessoa. A mais ousada desenvolvedora desse tipo de programa nos Estados Unidos, a NebuAd, foi obrigada a fechar as portas em maio, depois de uma série de questionamentos na Justiça. Mas na Europa empresas semelhantes, como a Phorm, ainda tentam prosperar.
A maior parte dos atentados à privacidade, porém, não vem das políticas de segurança do governo ou de interesses comerciais de grandes corporações. Sua motivação é apenas a malevolência. É assim nos furtos de senhas bancárias e números de cartão de crédito realizados por quadrilhas de bandidos digitais. Mas também, de maneira trágica, em casos como o de Nikki Catsouras, uma jovem americana de 18 anos morta num acidente de carro em 2006. Dois policiais rodoviários postaram fotos de seu corpo destroçado na internet. A família Catsouras tem gasto milhares de dólares numa batalha quixotesca para impedir a circulação das fotos. "Não ter controle sobre algo tão íntimo como a morte é angustiante", diz a mãe de Nikki em entrevistas. Menos tétricos – e mais comuns – são os casos de celebridades que têm a intimidade escancarada. Uma mensagem raivosa que o ator americano Alec Baldwin deixou no celular da filha – na qual ele chamava a menina de "porquinha sem consideração" – foi divulgada pelo site de fofocas TMZ. A atriz Vanessa Hudgens teve uma foto sua sem roupa, tirada por um ex-namorado, divulgada pela rede em 2007. No Brasil, Daniella Cicarelli processou o YouTube, exigindo que o site tirasse do ar o vídeo em que ela aparecia fazendo sexo com o namorado em uma praia da Espanha, em 2006. Venceu o processo – mas a internet é difícil de disciplinar: na semana passada, o vídeo ainda pipocava em alguns sites.
Entre os anônimos, a violação da privacidade não raro é realizada pela própria vítima. É o que se poderia chamar de "paradoxo da privacidade": todos os dias, as mesmas pessoas que se afligem por estar vulneráveis à espionagem digital desvelam sua intimidade on-line, ao permitir que desconhecidos tenham acesso a seu computador, em redes de troca de arquivos, mas, sobretudo, ao aderir a sites como Orkut, Facebook, YouTube e Twitter, nos quais revelam uma larga fatia de sua vida em fotos, vídeos e depoimentos. Compreender os impulsos que levam alguém – e principalmente os jovens – a se expor na internet tem ocupado psicólogos, sociólogos, antropólogos, juristas. Parte da explicação está na simples disponibilidade da tecnologia. "As pessoas fazem o que fazem porque as ferramentas estão ao seu alcance. Pela primeira vez na história, praticamente qualquer um pode divulgar informações para o mundo todo. Alguns aproveitam essa possibilidade de maneira sensata, outros não", diz a antropóloga Anne Kirah, ex-chefe de pesquisas da Microsoft. Também a ideia das redes de interação social está inscrita desde sempre no DNA da web. "A arquitetura da internet foi traçada para permitir o compartilhamento de dados, ferramentas, sistemas. Portanto, era só uma questão de tempo para que surgissem sites de compartilhamento de experiências como o Orkut e o Facebook", explica o engenheiro Demi Getschko, conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil.
A estudante de publicidade Alessandra Ferreira, de 21 anos, usa o Twitter compulsivamente. Posta tudo o que pensa no site. "Eu gosto de ter acesso às pessoas e que elas saibam o que sinto. Sou autêntica e não vou deixar de me expor na internet", diz. A exibição da intimidade nas redes sociais, dentro de limites razoáveis, pode estreitar laços de amizade ou criar comunidades que cultivam saudáveis interesses comuns – de causas ecológicas à admiração por uma banda pop. Os tais "limites razoáveis", no entanto, nem sempre são respeitados. A atriz Lindsay Lohan utilizou recentemente o Twitter para romper o namoro com a DJ Samantha Ronson, numa série de mensagens destemperadas. "Ferramentas como o Twitter ou o Facebook apelam para a nossa vaidade. E assim sacrificamos nossa privacidade voluntariamente", diz Clay Calvert, autor do livroVoyeur Nation e estudioso dos meios de comunicação da Universidade da Flórida. O auto-imo-lamento da privacidade se dá de forma mais flagrante com a nova prática do sexting – junção desex e texting, ou seja, sexo e envio de mensagens por celular. Os jovens adeptos do sextingfotografam e filmam corpos nus ou seminus e postam o resultado na internet. Uma pesquisa recente nos Estados Unidos, sob patrocínio da Campanha Nacional para a Prevenção da Gravidez Adolescente, concluiu que 22% das adolescentes americanas já praticaram o sexting."Trata-se de uma forma high-tech e infelizmente muito precoce de exibicionismo sexual", analisa Calvert.
Autor de diversos livros sobre privacidade, entre os quais O Futuro da Reputação – Fofoca, Rumores e Privacidade na Internet, o americano Daniel Solove, professor de direito na Universidade George Washington, afirma que o maior risco da superexposição da intimidade é o arrependimento. Jovens que hoje pertencem ao que ele chama de "geração Google" terão de conviver com registros detalhados – e públicos – de seu passado, nos mais humilhantes detalhes. Solove, no entanto, não é um pessimista em relação ao futuro da privacidade. "Boa parte do que vemos atualmente se deve à imaturidade. Não creio que a geração Google vai, no futuro, estimular seus filhos a postar imagens de bebedeira na internet, só porque hoje faz isso", diz.
A internet pode, sim, colocar a privacidade do usuário em risco, sobretudo se ele não tiver o necessário discernimento na hora de publicar imagens e dados pessoais na rede. Mas não se segue daí que a privacidade tenha morrido, como pregam os mais alarmistas. Há bons indícios de que o desejo de privacidade é parte da essência humana – ou mesmo de nossa essência animal. Num ensaio já clássico, publicado em 1967, o americano Alan Westin revisou dezenas de estudos zoológicos para demonstrar que virtualmente todos os animais têm necessidade de isolamento temporário. Tanto no Antigo Testamento quanto nos mitos gregos, personagens são punidos por violação do que se poderia chamar de privacidade (veja o quadro). Há uma longa tradição que se estende desde Aristóteles, na Grécia antiga, para definir uma esfera jurídica que diz respeito ao indivíduo e aos seus próximos, escapando à multidão e sobretudo ao poder público.
Mais importante, o direito à privacidade já foi bem estabelecido – e vem sendo reforçado – nos documentos legais mais relevantes do mundo democrático. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, outorgada pela ONU em 1948, consagra esse princípio no artigo 12. Os juristas Samuel Warren e Louis Brandeis firmaram o respeito à privacidade como um princípio constitucional em 1890 – e, de 1970 em diante, o Congresso americano vem promulgando legislações específicas para proteger dados privados. A União Europeia estabeleceu uma Diretiva para Proteção de Dados em 1995. O artigo 5º da Constituição brasileira, devotado aos direitos fundamentais, salvaguarda a intimidade e a vida privada. A ideia de que a privacidade poderá ser extinta pela internet é francamente paranoica. A rede oferece oportunidades novas para fofoqueiros e pequenos fraudadores – mas, ampla e democrática, ela não se presta à vigilância de um Grande Irmão totalitário. (com reportagem de FrançoiseTerzian e Erica Chaves)
No mês passado, a loja on-line Amazon se meteu em encrenca com um bom número de clientes. Ela acessou a biblioteca digital de centenas de proprietários do Kindle – o leitor de livros eletrônicos criado e comercializado pela própria Amazon – e apagou de lá alguns títulos, sob a alegação de que eles não tinham a licença necessária para ser comercializados on-line. Fez isso sem aviso e sem permissão, valendo-se da rede sem fio que, nos Estados Unidos, mantém cada aparelho vendido em contato com a empresa. De nada adiantou o pedido de desculpas oferecido, dias depois, pelo presidente da empresa, Jeff Bezos, que qualificou a ação de "estupidez". Tampouco surtiu grande efeito assegurar um reembolso pelos livros confiscados. O sequestro dos arquivos, com ou sem dinheiro devolvido, era somente uma agravante do delito original: a violação da privacidade. Uma ironia arrematou a história. Uma das obras apagadas era1984, o clássico do inglês George Orwell acerca de uma sociedade sob vigilância perpétua, cujo ditador oculto, o Grande Irmão, se mantém sempre "de olho em você".
"Assustador." Foi assim que David Pogue, colunista de tecnologia do jornal The New York Times,concluiu seu comentário sobre o episódio da Amazon. Há mais de 100 anos, essa é a nota dominante nas discussões em torno da privacidade: o temor diante de tecnologias que possibilitam a governos, empresas – e criminosos – coletar, analisar, utilizar e às vezes divulgar informações de cidadãos desprecavidos. O primeiro grande estudo jurídico sobre o direito à privacidade, assinado pelos juristas americanos Samuel Warren e Louis Brandeis, em 1890, já soava esse alarme. No ano em que os grampos telefônicos entraram em cena nos Estados Unidos, eles escreveram: "As fotografias instantâneas invadiram os recintos sagrados da vida privada e doméstica. Aparelhos mecânicos ameaçam confirmar a profecia de que ‘aquilo que foi sussurrado nos quartos será proclamado nos telhados’ ". O medo da perda da privacidade cresceu junto com o desenvolvimento cada vez mais acelerado, ao longo do século XX, das tecnologias da informação.
A principal preocupação diz respeito à coleta de informações privadas por empresas ou pelo governo. Num país como os Estados Unidos, onde os computadores são onipresentes nas repartições públicas, cerca de 2 000 bancos de dados mantêm informações sobre os cidadãos. Na esteira dos atentados terroristas de 11 de setembro, diversas leis foram aprovadas – a mais conhecida é o Patriot Act – para ampliar o acesso do governo a essas informações. Empresas apontam a eficiência como razão para coletar dados sobre seus clientes: ao compreenderem os hábitos do comprador, elas se tornariam capazes de direcionar suas ofertas com maior precisão. A ideia do "marketing direcionado" nasceu nos anos 20, com a General Motors, mas encontrou no computador sua ferramenta essencial a partir da década de 80. Começaram a surgir então as primeiras companhias inteiramente dedicadas a compilar e analisar informações financeiras, dados de consumo e perfis psicológicos. Nos Estados Unidos, algumas das mais antigas afirmam manter registros detalhados sobre mais de 200 milhões de pessoas.
A internet inaugurou um novo bazar da informação para quem puder coletá-la – algo que sites de busca como o Google e lojas on-line como a Amazon fazem ininterruptamente. Dez anos atrás, ao falar sobre a maneira como as empresas esquadrinham os rastros deixados pelos consumidores em sua navegação, Scott McNealy, cofundador da Sun Microsystems, um dos gigantes globais da tecnologia, sentenciou: "Sua privacidade já é zero. Pare de sofrer com isso". Recentemente, algumas empresas desenvolveram sistemas que, instalados no coração dos servidores de acesso à internet, permitiriam sondar todo o histórico de navegação de uma pessoa. A mais ousada desenvolvedora desse tipo de programa nos Estados Unidos, a NebuAd, foi obrigada a fechar as portas em maio, depois de uma série de questionamentos na Justiça. Mas na Europa empresas semelhantes, como a Phorm, ainda tentam prosperar.
A maior parte dos atentados à privacidade, porém, não vem das políticas de segurança do governo ou de interesses comerciais de grandes corporações. Sua motivação é apenas a malevolência. É assim nos furtos de senhas bancárias e números de cartão de crédito realizados por quadrilhas de bandidos digitais. Mas também, de maneira trágica, em casos como o de Nikki Catsouras, uma jovem americana de 18 anos morta num acidente de carro em 2006. Dois policiais rodoviários postaram fotos de seu corpo destroçado na internet. A família Catsouras tem gasto milhares de dólares numa batalha quixotesca para impedir a circulação das fotos. "Não ter controle sobre algo tão íntimo como a morte é angustiante", diz a mãe de Nikki em entrevistas. Menos tétricos – e mais comuns – são os casos de celebridades que têm a intimidade escancarada. Uma mensagem raivosa que o ator americano Alec Baldwin deixou no celular da filha – na qual ele chamava a menina de "porquinha sem consideração" – foi divulgada pelo site de fofocas TMZ. A atriz Vanessa Hudgens teve uma foto sua sem roupa, tirada por um ex-namorado, divulgada pela rede em 2007. No Brasil, Daniella Cicarelli processou o YouTube, exigindo que o site tirasse do ar o vídeo em que ela aparecia fazendo sexo com o namorado em uma praia da Espanha, em 2006. Venceu o processo – mas a internet é difícil de disciplinar: na semana passada, o vídeo ainda pipocava em alguns sites.
Entre os anônimos, a violação da privacidade não raro é realizada pela própria vítima. É o que se poderia chamar de "paradoxo da privacidade": todos os dias, as mesmas pessoas que se afligem por estar vulneráveis à espionagem digital desvelam sua intimidade on-line, ao permitir que desconhecidos tenham acesso a seu computador, em redes de troca de arquivos, mas, sobretudo, ao aderir a sites como Orkut, Facebook, YouTube e Twitter, nos quais revelam uma larga fatia de sua vida em fotos, vídeos e depoimentos. Compreender os impulsos que levam alguém – e principalmente os jovens – a se expor na internet tem ocupado psicólogos, sociólogos, antropólogos, juristas. Parte da explicação está na simples disponibilidade da tecnologia. "As pessoas fazem o que fazem porque as ferramentas estão ao seu alcance. Pela primeira vez na história, praticamente qualquer um pode divulgar informações para o mundo todo. Alguns aproveitam essa possibilidade de maneira sensata, outros não", diz a antropóloga Anne Kirah, ex-chefe de pesquisas da Microsoft. Também a ideia das redes de interação social está inscrita desde sempre no DNA da web. "A arquitetura da internet foi traçada para permitir o compartilhamento de dados, ferramentas, sistemas. Portanto, era só uma questão de tempo para que surgissem sites de compartilhamento de experiências como o Orkut e o Facebook", explica o engenheiro Demi Getschko, conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil.
A estudante de publicidade Alessandra Ferreira, de 21 anos, usa o Twitter compulsivamente. Posta tudo o que pensa no site. "Eu gosto de ter acesso às pessoas e que elas saibam o que sinto. Sou autêntica e não vou deixar de me expor na internet", diz. A exibição da intimidade nas redes sociais, dentro de limites razoáveis, pode estreitar laços de amizade ou criar comunidades que cultivam saudáveis interesses comuns – de causas ecológicas à admiração por uma banda pop. Os tais "limites razoáveis", no entanto, nem sempre são respeitados. A atriz Lindsay Lohan utilizou recentemente o Twitter para romper o namoro com a DJ Samantha Ronson, numa série de mensagens destemperadas. "Ferramentas como o Twitter ou o Facebook apelam para a nossa vaidade. E assim sacrificamos nossa privacidade voluntariamente", diz Clay Calvert, autor do livroVoyeur Nation e estudioso dos meios de comunicação da Universidade da Flórida. O auto-imo-lamento da privacidade se dá de forma mais flagrante com a nova prática do sexting – junção desex e texting, ou seja, sexo e envio de mensagens por celular. Os jovens adeptos do sextingfotografam e filmam corpos nus ou seminus e postam o resultado na internet. Uma pesquisa recente nos Estados Unidos, sob patrocínio da Campanha Nacional para a Prevenção da Gravidez Adolescente, concluiu que 22% das adolescentes americanas já praticaram o sexting."Trata-se de uma forma high-tech e infelizmente muito precoce de exibicionismo sexual", analisa Calvert.
Autor de diversos livros sobre privacidade, entre os quais O Futuro da Reputação – Fofoca, Rumores e Privacidade na Internet, o americano Daniel Solove, professor de direito na Universidade George Washington, afirma que o maior risco da superexposição da intimidade é o arrependimento. Jovens que hoje pertencem ao que ele chama de "geração Google" terão de conviver com registros detalhados – e públicos – de seu passado, nos mais humilhantes detalhes. Solove, no entanto, não é um pessimista em relação ao futuro da privacidade. "Boa parte do que vemos atualmente se deve à imaturidade. Não creio que a geração Google vai, no futuro, estimular seus filhos a postar imagens de bebedeira na internet, só porque hoje faz isso", diz.
A internet pode, sim, colocar a privacidade do usuário em risco, sobretudo se ele não tiver o necessário discernimento na hora de publicar imagens e dados pessoais na rede. Mas não se segue daí que a privacidade tenha morrido, como pregam os mais alarmistas. Há bons indícios de que o desejo de privacidade é parte da essência humana – ou mesmo de nossa essência animal. Num ensaio já clássico, publicado em 1967, o americano Alan Westin revisou dezenas de estudos zoológicos para demonstrar que virtualmente todos os animais têm necessidade de isolamento temporário. Tanto no Antigo Testamento quanto nos mitos gregos, personagens são punidos por violação do que se poderia chamar de privacidade (veja o quadro). Há uma longa tradição que se estende desde Aristóteles, na Grécia antiga, para definir uma esfera jurídica que diz respeito ao indivíduo e aos seus próximos, escapando à multidão e sobretudo ao poder público.
Mais importante, o direito à privacidade já foi bem estabelecido – e vem sendo reforçado – nos documentos legais mais relevantes do mundo democrático. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, outorgada pela ONU em 1948, consagra esse princípio no artigo 12. Os juristas Samuel Warren e Louis Brandeis firmaram o respeito à privacidade como um princípio constitucional em 1890 – e, de 1970 em diante, o Congresso americano vem promulgando legislações específicas para proteger dados privados. A União Europeia estabeleceu uma Diretiva para Proteção de Dados em 1995. O artigo 5º da Constituição brasileira, devotado aos direitos fundamentais, salvaguarda a intimidade e a vida privada. A ideia de que a privacidade poderá ser extinta pela internet é francamente paranoica. A rede oferece oportunidades novas para fofoqueiros e pequenos fraudadores – mas, ampla e democrática, ela não se presta à vigilância de um Grande Irmão totalitário. (com reportagem de FrançoiseTerzian e Erica Chaves)
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