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Direito à felicidade é falácia; é a dor que nos adapta ao hostil

Título original: Do ponto de vista da pedra

por Luiz Felipe Pondé para Folha

Numa madrugada, afundo em cigarros e insônia. Na TV a cabo, cenas de um filme chinês, "2046 - Os Segredos do Amor", fotografia de cores fortes, músicas incomuns, mulheres lindas, ancas deliciosas que sobem e descem escadas e se arrastam entre os lençóis. O filme não deixa de ser uma ode a esse antigo vício que muitos de nós, homens, temos: a paixão pelas mulheres e a mistura de afetos que as atormenta, a beleza insustentável, a forma infiel do corpo, o tédio incurável.

Uma chinesa se apaixona por um japonês. Seu pai a proíbe de amar o japonês, afinal o ódio aos horrores da guerra causados pelos japoneses justifica sua fala. O ano é 1967.

Ele volta para o Japão. Ela enlouquece, adoece, é internada. Põe-se a falar sozinha, definha sob a opressão da saudade. Vaga pelo quarto abraçando sombras.

E, aí, o filme me ganha definitivamente. Sim, eu sei que pessoas saudáveis não sofrem assim. Mas, em minha obsessão pelos que morrem de amor, não consigo admirar quem resolve bem a vida. Tenho certa paixão por quem fracassa no combate ao afeto. Certamente, tenho algum trauma primitivo, daqueles que fundam nossa personalidade despertando nossa alma.

Tem gente por aí que se julga inteligente porque não acredita na existência da alma -pobres diabos. Eu sei que podem me achar excessivamente cético, mas eu só acredito em Deus e na alma. Em mais nada. Eu, aliás, confio mais em almas penadas. Que assustam os sonhos à noite. Sim, eu sei. Melhor aqueles que tomam remédios, fazem terapias objetivas, meditam 15 minutos diariamente e viram budistas. Mas eu me encanto facilmente por gente que, como essa heroína chinesa, adoece de amor.

Vagando pela casa tentando relembrar cada palavra dita, cada cheiro, cada silêncio, cada gosto na boca, o toque da língua, a saliva, escorrendo a mão pelos seios, numa dança doce e macabra de acasalamento. Sozinha, beijando as paredes. O rosto coberto de lágrimas, os olhos vidrados, a boca salgada, a voz rouca de tanto gritar sozinha para os céus.

A incompreensão de todos à sua volta por tamanha incapacidade de se tornar indiferente ao amor morto. Sentir-se como uma folha esmagada contra o chão, elevada pelo vento, seca de tanto afeto, evocando a misericórdia dos deuses, eis minha fenomenologia do amor.

Lembro-me do conto de Edgar Allan Poe "A Queda da Casa de Usher". Não me esqueço da doença que afeta o irmão e a irmã Usher. O talento monstruoso do melancólico Poe esmaga o leitor de sensibilidade diante da morbidez do amor impuro entre os irmãos Usher, fundando uma cumplicidade de segredos na distância entre os séculos.

A degeneração mortal dos irmãos se materializa numa sensibilidade insuportável para com os detalhes concretos da existência física. As roupas pesam na pele, os sons das palavras faladas em voz baixa rasgam os ouvidos, o paladar da língua é ferido pelo gosto sem gosto do alimento, a claridade de um dia sombrio ofusca a pupila infeliz diante do peso da luz, o ruído das relações humanas tortura o lento passar das horas, até as pedras das paredes da casa de Usher são agonia.

Miseráveis irmãos buscam a nudez, o silêncio, a fome, a escuridão, a solidão como cura. A vida, pouco a pouco, se torna morte, buscando o impossível repouso na ânsia de se fazer também pedra.

Amar é estar impregnado de uma presença, como o acúmulo dos anos se torna limo entre as pedras. Como uma forma de infecção invisível que une corpo e alma no desejo.

Sim, eu sei que se trata de um modo ruim de viver. Devemos fazer o culto da vida saudável. Mas não consigo. Encanta-me a personagem que perde a batalha contra si mesma como minha chinesa insone.
Morbidez? Pouco importa. Fôssemos apenas um bando de mamíferos alegres, ao longo de nossos milhares de anos de existência, não sobreviveríamos. A dor é que nos adapta ao ambiente hostil.

O "direito à felicidade" é a nossa grande falácia: hoje somos superficiais até do ponto de vista das pedras. Já Tocqueville, no século 19, temia que a "mania da felicidade" tornasse todos nós os tolos do futuro. Amém.

Apresentação do 2046


 > Ninguém vive em harmonia com a natureza.

dezembro de 2009

Artigos de Luiz Felipe Pondé.     
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Comentários

rayssa gon disse…
pondé anda tão chato com essa fixação contra a "vida saudavel".
Anônimo disse…
Ele anda chato? rsrsrs...
Ele É chato! Muito chato!!!
Que porre...
Anônimo disse…
O texto tá ótimo! Envenenado!
Juliana K. disse…
Parabéns pelo blog, finalmente posso ler notícias com conteúdo.


Juliana - Suécia
Anônimo disse…
a verdade grande é,nadamos,nadamos e...morremos na práia...
Anônimo disse…
Isso é só bonito em filme. Sofrer por amor é um inferno. Sei que ele fala de coisas mais profundas do que o simples sofrimento pela falta do outro, involuntária ou não,mesmo que improvável prefiro admirar quem supera um "troço" desse.
Anônimo disse…
ótimo texto...como sempre, é claro.
Anônimo disse…
Que superar o que? E digo mais. A sacada da vida esta em sofrer. Em fazer os seus dias mais intensos, sofrendo de amor ou arrebentando de paixão e desejo por um amor platônico qualquer.
Sabe aquele amor por um colega do trabalho, ou da faculdade? Isso, aquele colega que não te vê ou que não entende seus olhares...
Já andou só pela rua, à espera do telefonema de alguem que te faz tremer?
O ar fica mais frio, seus ouvidos mais apurados, as pessoas passam depressa demais porque seus movimentos estão lentos. O seu coração dói, o seu corpo adormece e a sua alma pesa. Pesa tanto, que só o toque do telefone te liberta!
Isso é vida! E não a monotonia de um amor possível. De um amor que se pode viver plenamente e que nunca vivemos. Esse tipo de amor possível deixamos pra viver no dia seguinte, afinal ele vai estar lá mesmo!
Somos egoístas demais pra amarmos quem nos ama! Queremos o que nunca poderemos ter! É por isso que o que não podemos ter, o proibido, nos faz sentir a vida!
Se vai doer quando acabar? E daí?
Unknown disse…
Adorei Pondé. Como diria Kafka, "the first sign of understanding is the wish to die".

Mas, contando com cada vez mais ferramentas e recursos para nos alienarmos de nós mesmos em bolhas hedonistas - sejam elas Dubai ou uma rave de três dias - o auto-questionamento ou qq gesto de reflexão vira paisagem de um filme "exótico"de época. Ou, como diria sua outra leitora: "pondé anda tão chato com essa fixação contra a "vida saudavel".

Parabéns pelo texto. Se vale para algum consolo, perdi minha batalha "contra o afeto" há 16 meses
Concordo totalmente com o Pondé. A felicidade é superestimada nesse mundo. E eu não consigo compreender toda essa coerção pra que você seja feliz o tempo todo. Huxley já falava de algo assim em "Admirável Mundo Novo". Mas é muito difícil para a grande maioria das pessoas desaprender aquilo que foi cunhado em suas mentes desde que nasceram.
ALÊ disse…
Excelente poema do Pondé!!!

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