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'As pessoas só valem pelo que servem para as outras'

Título original: Ética

por Luiz Felipe Pondé para Folha

De fato é muito feio dizer que as pessoas devem ser julgadas pelo que elas "servem". Mas, se o mundo está esmagado sob essa máxima funcional (as pessoas só valem quando "servem para alguma coisa"), ainda queremos que ela seja dita em voz baixa.

Muitas pessoas estão prontas para se indignar quando dizemos que alguém não "serve" para nada. Mas, no seu dia a dia, é esse mesmo jargão que rege seus atos.

Talvez, essa máxima funcional deva vir embalada em bobagens como "tenho direito de ser feliz, por isso vou lhe abandonar, porque não vejo uso em você".

Mas eu, que tenho uma vocação natural para iconoclastia (a arte de ir contra o "coro dos contentes" e não ter medo da opinião alheia, coisa rara num mundo intelectual que agoniza sob a bota do ressentimento dos ofendidos profissionais, a nova face da velha censura), não me contenho e penso em algumas situações onde a máxima "as pessoas só valem pelo que servem para as outras" decidiria nosso futuro. Quer ver um exemplo?

O que diriam para uma jovem mulher (ou homem, tanto faz) caso seu marido (ou esposa) sofresse um acidente que o(a) deixasse inválido para a vida normal? Sem movimento, sem corpo, sem sexo, sem trabalho, sem vida, sem poder ir jantar fora, viajar ou ir ao cinema.

Será que alguém diria "fique ao lado dele até a morte"? Ou "abra mão do seu corpo, do seu movimento, do seu trabalho, do seu sexo, para cuidar dele"? Ou seria mais provável que ouvíssemos coisas do tipo: "Você tem direito de ser feliz, não sinta culpa". Ou, talvez, num modo mais espiritual: "Talvez ele tenha escolhido esta forma de provação, mas você não é obrigada a abrir mão da vida junto com ele". Ou ainda: "Antigamente você seria obrigada a aceitar isso como o fim da sua vida, mas ainda bem que hoje o mundo mudou e as pessoas têm o direito de buscar sua satisfação na vida sem ter que sentir culpa".

A questão aqui em jogo é o caráter insuportável do dia a dia. A perda da liberdade de escolha na qual você é jogada por conta do acidente do outro. A hipocrisia está em negarmos que o abandono como "direito à felicidade" está sustentado na inutilidade do outro para a sua felicidade.

Talvez por conta de minha natureza arredia a festas, coquetéis e eventos, eu entre em agonia diante de tamanho papo furado. Você me pergunta: "Qual é o papo furado?". Respondo que o papo furado é negar que vivemos sob a tutela dessa moira cega que manda em nossa existência: só temos companhia quando "servimos" para algo.

Claro que não há saída fácil para uma tragédia como essa (um acidente que destrua a vida de alguém com quem escolhemos viver junto), mas a saída começa por reconhecermos que você não tem saída. Abrir mão de sua vida é um suplício, mas o outro sabe que se tornou um estorvo em sua vida e que em algum momento terá que encarar o fato de que "não serve mais para nada".

Terrível condição, escândalo insuperável. Seria o silêncio enquanto o abandonamos uma forma mais elegante de fugir? Talvez uma visita de vez em quando e uma boa enfermeira ao seu lado, paga por nós?

A vida nos obriga a fazer escolhas terríveis, mas parece que agora decidimos que "tudo é bonito se dissermos que é bonito". Como nos contos de fadas. Mentira: nossas escolhas são pautadas pelo útil, nossos atos são calculados, nossos afetos são estratégicos. E a moderna ciência do egoísmo encontra as fórmulas para fazer isso tudo bonito. E o contrário disso não é a felicidade, mas a maturidade. Adultos infantis não gostam disso. Preferem ser avatares de si mesmos num mundo sempre florido.

A infantilização do mundo caminha a passos largos. Todos abraçam sua "mentira ética" como forma pessoal de marketing de comportamento. Como numa espécie de "lenda ética sobre si mesmo", queremos projetar de nós mesmos uma imagem de doçura que, na calada da noite, traímos.
É nessa mesma calada da noite que acordo e peço a Deus que me faça não ver os outros apenas como "uso". Mas sempre fracasso. Não pensar nas pessoas apenas como objeto de uso é uma conquista dolorosa, como tirar leite de pedras.

Fracassados não pegam ninguém ou só as feias.
dezembro de 2009 


Comentários

rayssa gon disse…
sempre fracassa porque tá pedindo pra deus.

ta fazendo errado, pondé.
Anônimo disse…
Rayssa Gon, quem diria? Hein! Quem te viu, quem te vê. As caladas da madrugada... Quantos ganidos...
Ricardo disse…
Que DESGRAÇA eu não conseguir escrever o que eu quero nesta bosta de windows!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Bosta, desgraça, maltito seja o criadosr desta merda. Que ele queime o fogo do Inferno!!!!!!!!!!!!!!!11
Ricardo disse…
Desculpem-me pelo comentário acima, mas eu perdi tudo o que estava escrevendo por causa de um comando no windows que eu nem sabia que existia!
Agora perdi o fio da meada... Talvez outra hora.
Primaluce disse…
Caríssimo Pondé,
É muito bom ler algo lúcido às segundas-feiras e ver que, afinal, depois de um fim de semana de gente estressada para "ser feliz", alguém é capaz de jogar luz sobre cantos escuros sobre os quais ninguém ousa falar. Confesso que não compreendo porque as pessoas voltam e postam comentários raivosos, embora claramente sintam a curiosidade de lê-lo. Parece-me masoquismo. Seria melhor que lessem auto-ajuda, não achas? Aí, provavelmente, só fariam elogios...
Anônimo disse…
E esse texto não seria uma auto ajuda? Viva mais e pense menos!
Anônimo disse…
Ler Pondé me significa: deparar-me com a vileza e a contingencialidade de minha existência.
Anônimo disse…
Pondé é romântico, e admiro-o por isso. As pessoas sabem que são usadas, e o que ele pensa estar desocultando, por conta de sua formação pretérita marxista, é evidente a todos. Não está nada ocultado, a gente reza e pede a todos os demônios que nos conservem pelo menos o direito de sermos usadas. E de usarmos também, porque o desenho acima é unilateral quanto ao gênero. As mulheres também possuem hoje seus closets masculinos, onde há muitas opções para cada ocasião, desde um bombeiro hidráulico a um jovenzinho que vem estudar com a gente em casa...Um coleguinha da faculdade, coisas assim. A filosofia norte americana venceu, o humanismo foi soterrado sob a pragmática utilitarista, este sim o verdadeiro existencialismo, no sentido sartriano, que ele errou ao dizer que era um humanismo...Na verdade é um coisismo, uma reificação total. Fomos reduzidos a mercadorias, e uma vez na prateleira universal, às vezes a boneca mais bonita sobra, a criança prefere a feia, a desengonçada, porque intui que "aquela eu posso usar e abusar", enquanto que "a bonita eu preciso arrumar e cuidar"...Uma vez transposta ao narcisismo e infantilismo dos adultos atuais - caracteres do regressismo das personalidades neuróticas que nos tornamos socialmente, segundo Karen HORNEY -; este desprezo pelo compromisso, pelo cuidado, pela responsabilidade histórica ante os seres, uma solidariedade genuinamente de cuidadores e amantes, não a mecânica, de Durkheim; parece indicar que estamos avançando...em direção do descartável para o reciclável. Gostei desse cara, mas já quero um outro, todavia não o irei jogar fora, pois daqui a um tempo (variável de semanas até anos) o poderei novamente utilizar. Como dizia Foucault, em nosso tempo não tem mais nada precisando ser desmistificado, (como pensava Marx), nem desocultado: a aparência é a verdade do que aí está.
Anônimo disse…
Haroldo Berinjela

Luiz Felipe Pondé é a roda do carro na beira do abismo
enquanto muitos ja cairam!!!
Anônimo disse…
Não entendi o texto porque ele não serviu muito pra mim. E agora?
Anônimo disse…
A mulher acusada de matar o milionário da loteria, disse que não mandou matá-lo ( era seu marido), mas o traía porque tinha necessidades físicas (o falecido era paralítico). Milagrosamente não foi execrada.Parece que agora já pode...
Unknown disse…
É mesmo muito triste, mas ñ é novo, abandono de incapazes sempre ocorreram.

Trata-se de um ato bem "humano". Para pessoas como a mim, ñ serve.

Sou realmente humanista, cuidei de meu sogro, cuidarei de minha sogra, cuidarei de minha mãe, de meu companheiro caso tal desgraça ocorra, cuido de animais de rua, independente do retorno e simplesmente, porque, meus princípios me exigem.

É um valor que nos é transmitido ainda quando criança, depois de adultos só a lei pra dar jeito. :(

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