por Diaulas Costa Ribeiro
para o caderno Aliás do Estado de S.Paulo
Uma adolescente de 13 anos morreu na míngua de uma transfusão de sangue. A mãe e a menor eram Testemunhas de Jeová e não deram consentimento para o ato médico. O pai teria sido omisso e concorrido para a morte. Um médico da mesma religião teria interferido para que não fosse realizada a transfusão, sendo, assim como os pais, processado. Os três serão julgados pelo Tribunal do Júri por homicídio doloso.
As teses debatidas confrontam o direito à vida e a liberdade de culto e, ainda, o direito à autonomia. O maior desafio é a compatibilização do direito à vida com a autonomia. Do mandamento hipocrático “a saúde do doente é a lei suprema” passamos para “a vontade do paciente é a lei suprema”. Um dos documentos sobre essa mudança, o Relatório Belmont, de 1979, consagrou a autonomia como proteção das pessoas. Trata-se de diretriz para obtenção do consentimento informado, exigido em todo e qualquer ato médico.
A dispensa de consentimento para intervenções médicas decorreu do positivismo do século XIX. Augusto Comte teve sua doutrina incorporada à prática médica para afastar a relevância do subjetivismo do paciente para expressar sintomas e avaliar opções de tratamento, consolidando-se o paternalismo médico.
Freud reintroduziu a palavra do paciente na sua relação com o médico, dando voz a uma ciência que havia se tornado muda. Devemos a ele e à Bioética a valorização do diálogo como fonte da autonomia. Não há, porém, fundamento para se acatar o consentimento nem o dissenso pessoal de incapazes, incluindo os menores de idade, que devem ser representados pelos seus pais, curadores ou outras pessoas indicadas legalmente.
No caso referido, ainda que a menor tomasse a decisão de não aceitar o sangue, caberia à mãe e/ou ao pai superar o dissenso e autorizar o procedimento. Jamais poderiam endossar a decisão da filha, cuja opinião não tinha relevância jurídica, não se podendo transferir para sua memória a opção que resultou na tragédia. Também não pode ser atribuída aos médicos assistentes a responsabilidade pela morte. O dilema de um médico ante a recusa dos pais em casos semelhantes tem sido resolvido no Ministério Público e no Poder Judiciário. Quando realizam transfusões contra a vontade de pacientes Testemunhas de Jeová, têm sido processados por danos morais.
As Testemunhas de Jeová têm Comissões de Ligação com Hospitais (COLIH) para intermediar conflitos entre médicos e pacientes. Essas comissões procuram convencer os profissionais a realizar cirurgias sem sangue ou a não realizar transfusões em casos não cirúrgicos. Mas os membros da COLIH têm responsabilidade penal pelas mortes, quando houver nexo causal entre elas e suas intervenções. Por isso, é acertada a promoção de ação penal contra o médico que interferiu no trabalho de seus colegas para defender os valores de sua própria religião.
Não se pode confundir a posição aqui defendida com aquela inscrita no parágrafo único do art. 41 do Novo Código de Ética Médica, que trata da suspensão de esforço terapêutico de paciente em fase terminal de doença incurável: “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”.
No caso de paciente capaz, que se recusa a receber sangue, remanesce o direito à alta. Mas se perder a capacidade e for internado com risco de morte, a transfusão deverá ser empreendida. Tratando-se de menor, se os pais o retirarem de um hospital para inviabilizar o procedimento, caberá até a busca e apreensão e a suspensão do poder parental, realizando-se a transfusão com intervenção judicial.
Portanto, ainda não há espaço de consenso ético nem jurídico para se permitir a morte de incapazes, tratáveis com transfusão de sangue medicamente indicada. Por mais que a liberdade de culto seja garantia constitucional, no confronto entre dogmas religiosos e valores laicos, deverá prevalecer o valor neutro mais amigo do incapaz, neste caso, a vida.
Portanto, ainda não há espaço de consenso ético nem jurídico para se permitir a morte de incapazes, tratáveis com transfusão de sangue medicamente indicada. Por mais que a liberdade de culto seja garantia constitucional, no confronto entre dogmas religiosos e valores laicos, deverá prevalecer o valor neutro mais amigo do incapaz, neste caso, a vida.
Somente o STF poderá declarar entendimento diferente. As Testemunhas de Jeová podem pedir uma posição do Supremo. Se for declarada constitucional a renúncia à vida a ser vivida, parte desse debate estará superada. A questão residual se limitará à objeção de consciência de cada médico, a ser regulada pelo Conselho Federal de Medicina.
Até as guerras se humanizam quando Deus é deixado fora do campo de batalha. Esse debate, e também outros sobre temas correlatos, precisam ser humanizados.
Até as guerras se humanizam quando Deus é deixado fora do campo de batalha. Esse debate, e também outros sobre temas correlatos, precisam ser humanizados.
Diaulas Costa Ribeiro é promotor de Justiça e professor da Universidade Católica de Brasília.
novembro de 2010
Comentários
Em geral, a pessoa pode ficar sem perceber q tem a doença durante meses, até mesmo anos; mas VINTE anos é muito tempo. Bem possível ter adquirido por outro meio.. E outra coisa, a transfusão sanguínea só é perigosa se o sangue usado tiver sido tratado por pessoas incapazes para tais procedimentos. Se forem respeitados, será tão segura quanto útil em salvar uma vida.
Ah, quase que ia me esquecendo, uma cirurgia pode sim ser feita sem o uso do sangue, mas isso só vale quando o fator sangue não é tão importante (casos onde o sangue do paciente já está presente em quantidade suficiente para manter a vida deste), mas quando este é o fato principal ou perto disso, é imprescindível o uso de sangue (como os pacientes com hemofilia que tenham o baço rompido, vítimas de trânsito onde tenha sido amputados membros e o socorro mesmo rápido não impediu a perda de grandes quantidades de sangue etc.).
E religião é inútil, é uma bestialidade! Sempre pensei que a época da mitologia houvesse passado, mas vi que a mitologia para a nossa época é a religião das outras, e não a da nossa própria. Infelizmente!
Obs.: Independente da sua religião (ou falta dela), crendo ou não em deus, saibam de uma coisa: sigam o que acreditam, mas se o que acreditam começar a influir na minha vida e me incomodar, já não terás mais meu apoio e tbm irei impor o que acredito, afinal se tens o direito, tereis os meus tbm...
Por uma questão de "fé" dos ateus na não-existência de Deus, e também das pessoas que professam que aborto é um direito da mulher, muitas crianças são cruelmente assassinadas ainda no ventre da mãe.
O próprio título denuncia o artigo.
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