por João Ubaldo Ribeiro para O Globo
De uns tempos para cá, não sei se me engano, começaram a proliferar normas destinadas a controlar nossa conduta individual. Falei em algumas aqui e cheguei a aventar a hipótese de que uma agência governamental, ou qualquer outra das muitas autoridades a que vivemos subordinados sem saber, venha a estabelecer normas para o uso do papel higiênico e garantir sua observação através da instalação de câmeras nos banheiros de uso público. Nos banheiros domésticos, imagino que seriam suficientes umas visitas incertas de inspetores com gazuas, para tentar flagras os que se asseassem ilegalmente.
Não se trata somente de passatempo para burocratas entediados e sem mais o que fazer. Trata-se de convicção, que, parece grassar truculentamente em toda parte, de que existe algo “certo”, cientificamente certo e, portanto, todos devem comportar-se dentro do certo.
Se nas ciências físicas esse negócio de “certo” já é olhado com um pé atrás, nas ciências humanas, que nunca puderam aspirar ao nível de objetividade daquelas, a existência do “certo” é muito discutível, valores que permeiam toda ação do homem e não são território da ciência e da objetividade.
Agora leio aqui nos jornais que a compulsão pelo certo acaba de atingir novo limite. Desta vez, por um parece do Conselho Nacional de Educação, que opinou que o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, deve ser proibido nas escolas públicas, por se tratar de obra racista. Sei que, entre vocês, há leitores de Monteiro Lobato que acharam que não entenderam o que acabaram de ler. Mas é isso mesmo: não pode “Caçadas de Pedrinho” porque é racista. Ou, por outra, pode, mas somente “quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil”.
Eu não vou nem falar nos milhões de brasileiros de todas as idades e todas as gerações que viveram no mundo mágico criado por um dos maiores escritores universais, um gênio naquilo que fez melhor, motivo de orgulho para todos nós, Monteiro Lobato.
Nem vou dedicar tempo a entender como é que foi que todos esses milhões, lend, despreparados, livros racistas, não vieram mais tarde a abrigar preconceitos e ideias nocivas, instilados solertemente na consciência indefesa de crianças. Monteiro Lobato, com toda a certeza, tem tantos defensores quantos leitores, não precisa de mais uma defesa.
E que diabo é “compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil”? Qual é a compreensão certa de um fenômeno causada exatamente pela diferença de raças? Terá mais razão o que vê na escravidão um fenômeno basicamente econômico e só secundariamente racial? Quem resolveu isso?
Qual a posição oficial do governo? O professor que orientar a leitura de “Caçadas de Pedrinho” terá que saber. Deus ajude as pobres crianças, torturadas com o que era antigamente somente um livro que as transportava para a fantasia, a aventura e o encantamento inocentes.
Agora, ao que parece, o correto é a leitura tutelada, orientada.
Antigamente, a literatura infantil era liberdade, escape, território autônomo em que a imaginação do jovem, ainda não embotada pela experiência, o levava a uma felicidade mais tarde irreproduzível. Agora talvez se diga “você gostou disso, por aquilo; e não gosto disso, porque não é para gostar, está errado”.
A boa literatura dá lições como consequência, não como objetivo. Deve-se ensinar a ler por prazer, de maneira desarmada e aberta – e não há como desconfiar dos clássicos porque são clássicos.
A literatura, como a vida, não é certinha. A ficção até que arruma os acontecimentos, lhe empresta enredos e sentidos que na vida real não têm.
Mas, como a vida, a ficção mostra contradições, reflete dilemas, exibe defeitos, ilumina a existência humana. Quem entra num romance deve entrar sozinho, a viagem é individual e intransmissível.
E até mesmo essa conversa de necessidade de contextualizar o livro é bem discutível. No meu tempo de menino, ninguém precisou contextualizar os livros de Tarzan para aceitar a África dele, assim como não se contextualizava Robin Hood, D’Artgnan, Jorge Amado, Érico Veríssimo ou quem lá fosse que aparecesse num romance, a contextualização era automática, vinha do bom texto.
Finalmente, em que medida os defeitos não são subjetivos, ou seja, não estão apenas na mente e na percepção de que os aponta? Existirá um racismômetro? E, mais ainda, não haverá outras áreas sensíveis? Acho que a adoção de controles é decorrência lógica e questão de justiça. Temos por exemplo a antropologia ultrapassada de Euclides da Cunha, o tal que falou no “mestiço neurastênico do litoral”. E tão presente nele essa visão antropolótica superada (além de ofensiva a grupos raciais: eu mesmo sou mestiço neurastênico do litoral e as mulheres sempre me discriminaram) que o melhor seria mandar um antropólogo correto e moderno reescrever “Os Sertões”, para quê o velho?
Esperemos também alegações de violência contra mulheres (Barba-Azul), machismo (Bolinha), ódio a uma espécie em extinção (o lobo e Chapeuzinho Vermelho), exploração de deficientes verticais (os anões de Branca de Neve), apologia da bruxaria (a Bela Adormecida) e assim por diante.
Olhando para trás, chego a ter um arrepio em ver como escapamos por pouco de termos as personalidades deformadas pela leitura irresponsável dos clássicos, esses repositórios de traições, assassinatos, incestos, preconceitos, guerra, adultérios e tudo mais que o planejamento científico logo eliminará.
Melhor por enquanto ficar longe deles e aguardar instruções das autoridades.
A ilustração é do Marcelo.
> Caso da tentativa de censura a um livro de Monteiro Lobato.
novembro de 2010
Comentários
Se há um defeito que os mortos possuem é o de que não falam. Porque, senão, eu perguntaria ao Saramago se, como "humanista", ele leu com atenção o Mímesis, do Auerbach, em especial os capítulos em que ele discute a Bíblia.
É muito fácil culpar meios de comunicação, empresários, etc. e tal pelas desgraças do país. Mas dar uma contribuição relevante, que não só ajude o país como também o faça ganhar capital, em termos intelectuais, isso esses babacas não querem fazer.
E olha que eu fui um comunista na juventude. Os próprios comunistas, com sua obtusidade, que me ajudaram a ser um ferrenho anti- comunista.
E esses comunistas tarados só não acabaram com os clássicos, quando da Revolução Russa, por causa dos trabalhos do Lucáks, em que ele afirma que os clássicos "dão a percepção do todo", em oposição ao ponto de vista fragmentário das vanguardas.
08/11/10 16:49
Cuidado: aqueles que comem criancinhas não são os comunistas como se difundia tempos atrás, já se sabe que nisso são inocentes. Os verdadeiros comedores de criancinhas são mesmo os pedófilos, especialmente os da ICAR, um verdadeiro antro de depravação.
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