Título original: Sagrado e Profano
por Boris Fausto para o Estadão
Ao longo dos últimos dois séculos, o processo de dessacralização do mundo avançou no Ocidente até declinar, em anos mais recentes. Trocando em miúdos, a religião está na ordem do dia. Esse quadro se explica por vários fatores, entre eles a carência material que afeta muitas pessoas, assim como a fragilidade da condição humana, independentemente do nível social.
A ressacralização ocorre também no Brasil, onde o tema da separação entre a Igreja e o Estado, entre o público e o privado, ganhou relevância, sem nunca ter deixado de existir. No plano político, em novembro de 1985 Fernando Henrique Cardoso sofreu um sério abalo em sua candidatura a prefeito de São Paulo quando o apresentador de TV Boris Casoy armou-lhe uma arapuca, perguntando se ele acreditava ou não em Deus. Na recente campanha presidencial, obcecados pela conquista de votos, os dois principais candidatos fizeram uma exuberante demonstração de sua suposta religiosidade e condenaram a prática do aborto, numa atitude francamente regressiva.
Fora do campo eleitoral, as diferentes denominações religiosas, com destaque para os "evangélicos de mercado", não se limitam a louvar o Senhor, mas atacam o demônio - tentação onipresente - e os que não acreditam em Deus. Isso sem falar de personagens que na televisão alcançam boa audiência, como é o caso de José Luiz Datena. Volta e meia, ele desfere furiosos ataques às pessoas que "não têm Deus no coração", associando o ateísmo a crimes horrendos praticados em São Paulo, a ponto de provocar a intervenção do Ministério Público Federal.
Do outro lado da moeda, o anticlericalismo - que não se confunde necessariamente com o ateísmo - ganhou força nos últimos anos do século 19 e nos primeiros anos do século 20 graças à afirmação do cientificismo laico republicano e do surgimento do anarquismo.
Mas o desequilíbrio entre os ataques aos "inimigos de Deus", de um lado, e a sustentação do ateísmo, de outro, salta aos olhos. O fundamentalismo religioso de várias espécies sempre esteve na ofensiva contra os descrentes. Por sua vez, passados os tempos do anarquismo os ateus recolheram-se quase sempre ao silêncio, pois suas concepções eram e são tidas como vergonhosas aos olhos da maioria.
O censo realizado no ano 2000, ainda que defasado, revela um dado curioso. O porcentual da população residente que se declara "sem religião" subiu de 4,7% em 1991 para 7,4% em 2010. Um aumento só comparável ao dos evangélicos, que foram de 9% para 15,4%.
Convém lembrar que o item "sem religião" não é sinônimo de ateísmo, pois nele estão incluídas, presumivelmente, além dos ateus convictos, as pessoas que não acreditam em nenhuma religião, mas nem por isso deixam de acreditar em Deus, assim como os agnósticos.
Vou me restringir ao grupo dos agnósticos, no qual me incluo. Se é de senso comum que ateu ou ateia é alguém que não acredita em Deus, a maioria das pessoas ignora o sentido da expressão "agnóstico". Simplificando, os agnósticos se aproximam dos ateus, mas não se identificam com eles por fazerem restrições ao império exclusivo da ciência e deixar uma fresta de dúvida sobre questões metafísicas que o ateísmo rejeita. Dou um exemplo pessoal. Tenho total repulsa pelos fundamentalistas religiosos de todo tipo, mas não me identifico com o ateísmo militante, mesmo quando sustentado por figuras brilhantes como Richard Dawkins, o autor Deus - Um Delírio (Companhia das Letras, 2006).
É significativo constatar que, em meio aos ataques dirigidos aos "sem Deus", surgiu também no Brasil uma contraofensiva organizada, mas à moda brasileira. Quero me referir à Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), que reúne em frente única duas concepções aproximadas, porém distintas. Há poucos dias, em Porto Alegre, a entidade tentou colocar nos ônibus de uma empresa cartazes ousados em defesa do ateísmo, mas a empresa acabou recuando no último momento, segundo notícias da imprensa.
Destaco, que a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos expressa uma iniciativa de divulgar o ateísmo e o agnosticismo, saltando assim da esfera individual e privada para a esfera pública. Entre os vários objetivos da entidade, me chamou a atenção o de "combater o preconceito e a desinformação a respeito do ateísmo e do agnosticismo", isso não só porque o combate a qualquer preconceito deve ser louvado, como também porque a desinformação sobre ateus e agnósticos é muito grande. Para ficar em um exemplo de casa, vi muita gente se embasbacar diante da resposta de minha mulher a uma pergunta sobre sua religião: "Eu sou agnóstica, de formação católica". Desconfio que haja muita gente assim, mas encerrada no armário, entre os que optam no censo por uma denominação religiosa, até porque crer ou descrer totalmente é muito difícil.
por Boris Fausto para o Estadão
Ao longo dos últimos dois séculos, o processo de dessacralização do mundo avançou no Ocidente até declinar, em anos mais recentes. Trocando em miúdos, a religião está na ordem do dia. Esse quadro se explica por vários fatores, entre eles a carência material que afeta muitas pessoas, assim como a fragilidade da condição humana, independentemente do nível social.
A ressacralização ocorre também no Brasil, onde o tema da separação entre a Igreja e o Estado, entre o público e o privado, ganhou relevância, sem nunca ter deixado de existir. No plano político, em novembro de 1985 Fernando Henrique Cardoso sofreu um sério abalo em sua candidatura a prefeito de São Paulo quando o apresentador de TV Boris Casoy armou-lhe uma arapuca, perguntando se ele acreditava ou não em Deus. Na recente campanha presidencial, obcecados pela conquista de votos, os dois principais candidatos fizeram uma exuberante demonstração de sua suposta religiosidade e condenaram a prática do aborto, numa atitude francamente regressiva.
Fora do campo eleitoral, as diferentes denominações religiosas, com destaque para os "evangélicos de mercado", não se limitam a louvar o Senhor, mas atacam o demônio - tentação onipresente - e os que não acreditam em Deus. Isso sem falar de personagens que na televisão alcançam boa audiência, como é o caso de José Luiz Datena. Volta e meia, ele desfere furiosos ataques às pessoas que "não têm Deus no coração", associando o ateísmo a crimes horrendos praticados em São Paulo, a ponto de provocar a intervenção do Ministério Público Federal.
Do outro lado da moeda, o anticlericalismo - que não se confunde necessariamente com o ateísmo - ganhou força nos últimos anos do século 19 e nos primeiros anos do século 20 graças à afirmação do cientificismo laico republicano e do surgimento do anarquismo.
Mas o desequilíbrio entre os ataques aos "inimigos de Deus", de um lado, e a sustentação do ateísmo, de outro, salta aos olhos. O fundamentalismo religioso de várias espécies sempre esteve na ofensiva contra os descrentes. Por sua vez, passados os tempos do anarquismo os ateus recolheram-se quase sempre ao silêncio, pois suas concepções eram e são tidas como vergonhosas aos olhos da maioria.
O censo realizado no ano 2000, ainda que defasado, revela um dado curioso. O porcentual da população residente que se declara "sem religião" subiu de 4,7% em 1991 para 7,4% em 2010. Um aumento só comparável ao dos evangélicos, que foram de 9% para 15,4%.
Convém lembrar que o item "sem religião" não é sinônimo de ateísmo, pois nele estão incluídas, presumivelmente, além dos ateus convictos, as pessoas que não acreditam em nenhuma religião, mas nem por isso deixam de acreditar em Deus, assim como os agnósticos.
Vou me restringir ao grupo dos agnósticos, no qual me incluo. Se é de senso comum que ateu ou ateia é alguém que não acredita em Deus, a maioria das pessoas ignora o sentido da expressão "agnóstico". Simplificando, os agnósticos se aproximam dos ateus, mas não se identificam com eles por fazerem restrições ao império exclusivo da ciência e deixar uma fresta de dúvida sobre questões metafísicas que o ateísmo rejeita. Dou um exemplo pessoal. Tenho total repulsa pelos fundamentalistas religiosos de todo tipo, mas não me identifico com o ateísmo militante, mesmo quando sustentado por figuras brilhantes como Richard Dawkins, o autor Deus - Um Delírio (Companhia das Letras, 2006).
É significativo constatar que, em meio aos ataques dirigidos aos "sem Deus", surgiu também no Brasil uma contraofensiva organizada, mas à moda brasileira. Quero me referir à Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), que reúne em frente única duas concepções aproximadas, porém distintas. Há poucos dias, em Porto Alegre, a entidade tentou colocar nos ônibus de uma empresa cartazes ousados em defesa do ateísmo, mas a empresa acabou recuando no último momento, segundo notícias da imprensa.
Destaco, que a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos expressa uma iniciativa de divulgar o ateísmo e o agnosticismo, saltando assim da esfera individual e privada para a esfera pública. Entre os vários objetivos da entidade, me chamou a atenção o de "combater o preconceito e a desinformação a respeito do ateísmo e do agnosticismo", isso não só porque o combate a qualquer preconceito deve ser louvado, como também porque a desinformação sobre ateus e agnósticos é muito grande. Para ficar em um exemplo de casa, vi muita gente se embasbacar diante da resposta de minha mulher a uma pergunta sobre sua religião: "Eu sou agnóstica, de formação católica". Desconfio que haja muita gente assim, mas encerrada no armário, entre os que optam no censo por uma denominação religiosa, até porque crer ou descrer totalmente é muito difícil.
Boris Fausto é historiador, professor aposentado do departamento de Ciência Política da USP.
Caminhão religioso persegue ônibus ateu em cidade americana.
dezembro de 2010
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dezembro de 2010
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