Título original: Cadastro Thanatos
por Luiz Felipe Pondé para Folha
Certa vez, como nos conta Gustav Janouch, em seu livro "Conversações com Kafka", ele reclamou que não estava entendendo nada que Kafka falava (os dois tinham o hábito de conversar caminhando por Praga).
Kafka teria respondido algo assim: "Hoje estou tão pessimista que deve ser a misericórdia de Deus que está protegendo você. Pois, se me entendesse, sendo você ainda muito jovem, o que estou dizendo lhe destruiria".
Será que Deus vai protegê-lo hoje, caro leitor?
Você é daquele tipo de pessoa que pensa no que come todos os dias? Conta calorias? Parabéns se você for, porque ganhará desconto no seguro saúde.
Muita gente acha que Aldous Huxley, em seu livro "Admirável Mundo Novo", se enganou, porque o mundo não marchou em direção a regimes totalitários.
Eu acho que ele acertou em tudo, inclusive na possibilidade de governos totalitários. Veja o caso da China. Se as pessoas tiverem comida e iPads elas estarão dispostas a abrir mão de tudo, mesmo dessa bobagem chamada democracia. Pisarão em qualquer cabeça por um iPad, como antes pisavam por qualquer outra bobagem.
É isso que as "cheerleaders" dos saques em Londres (essa farra das redes sociais) não entendem. Além do problema do governo centralizador, o equívoco em achar que Huxley errou está em não perceber que a chave do controle das vidas não está em formas centralizadoras de governo, mas em não percebermos que somos nós mesmos que pedimos controle sobre nossas vidas em troca de formas variadas de felicidade e segurança.
O que Huxley entendeu, e nós, não, é que a ganância pela felicidade (a saúde total é apenas uma de suas formas mais bregas) nos levaria ao admirável mundo novo.
Meu Deus, por que temos de ser uma espécie assim tão infeliz? Por um lado, a vida é dura o bastante para querermos (com razão) ser felizes, mas, por outro lado, a busca pela felicidade nos faz de gado alegre. Escolha maldita: ser infeliz, morrer jovem ou virar gado e ter uma dieta balanceada. E para tal, estaremos dispostos a ter fiscais de nossos hábitos cotidianos de saúde em nossas cozinhas.
Nessas horas, sinto o pessimismo tomar conta de mim como um líquido negro e viscoso a entrar pela minha boca e pelo meu nariz, fazendo-me engasgar. Vejo o mundo como um parque zoológico de pessoas sorridentes e saudáveis, todas felizes em ter um "retorno" financeiro em troca de abrir suas casas e suas vidas para profissionais de "qualidade de vida" avaliarem suas refeições diárias.
Você ouve o interfone tocar? É ela, a avaliadora de sua qualidade de vida. Sorria e acima de tudo tenha em mãos as provas de que colabora com a sua própria saúde. Não seja um inimigo de sua própria felicidade fisiológica. Seja pró-ativo.
Imagino alguém bonito, simpático, espiritualizado, provavelmente um budista light, checando os nutrientes na alimentação da sua família. Talvez você possa agendar a visita via internet -afinal hoje em dia ninguém tem tempo pra nada, não é?
Imagine o número de empregos para as novas xamãs do mundo, as nutricionistas...
Se, desde cedo, você tomar as decisões alimentícias corretas para seus filhos, provavelmente a apólice de seguro saúde deles sairá bem mais em conta. Meus olhos se enchem de lágrimas ao perceber como o mundo melhora a cada passo.
A lógica de fundo é que ninguém racional quer morrer cedo, logo, só uma pessoa irracional, contraproducente, antissocial e, por fim, passível de alguma forma de punição, seria capaz de não ver isso tudo como um passo justo para "agregar valor" a nossa vida.
Aliás, uma pessoa assim, intratável, talvez, devesse num futuro próximo ser multada, porque ela não só onera os custos de seguro saúde da família como os da empresa de seguro saúde e, por fim, os do próprio Estado. Quem sabe devêssemos "evoluir" para a proibição de contas bancárias, crédito ao consumidor ou mesmo passaporte?
Quem sabe o Ministério da Saúde poderia criar um cadastro de pessoas inadimplentes em cuidados com a própria qualidade de vida. O nome poderia ser CTH (Cadastro Thanatos).
"Sem 'abusar' da comida, bebida, sexo, não vale a pena viver muito"
julho de 2010
Artigos de Luiz Felipe Pondé.
por Luiz Felipe Pondé para Folha
Certa vez, como nos conta Gustav Janouch, em seu livro "Conversações com Kafka", ele reclamou que não estava entendendo nada que Kafka falava (os dois tinham o hábito de conversar caminhando por Praga).
Kafka teria respondido algo assim: "Hoje estou tão pessimista que deve ser a misericórdia de Deus que está protegendo você. Pois, se me entendesse, sendo você ainda muito jovem, o que estou dizendo lhe destruiria".
Será que Deus vai protegê-lo hoje, caro leitor?
Você é daquele tipo de pessoa que pensa no que come todos os dias? Conta calorias? Parabéns se você for, porque ganhará desconto no seguro saúde.
Muita gente acha que Aldous Huxley, em seu livro "Admirável Mundo Novo", se enganou, porque o mundo não marchou em direção a regimes totalitários.
Eu acho que ele acertou em tudo, inclusive na possibilidade de governos totalitários. Veja o caso da China. Se as pessoas tiverem comida e iPads elas estarão dispostas a abrir mão de tudo, mesmo dessa bobagem chamada democracia. Pisarão em qualquer cabeça por um iPad, como antes pisavam por qualquer outra bobagem.
É isso que as "cheerleaders" dos saques em Londres (essa farra das redes sociais) não entendem. Além do problema do governo centralizador, o equívoco em achar que Huxley errou está em não perceber que a chave do controle das vidas não está em formas centralizadoras de governo, mas em não percebermos que somos nós mesmos que pedimos controle sobre nossas vidas em troca de formas variadas de felicidade e segurança.
O que Huxley entendeu, e nós, não, é que a ganância pela felicidade (a saúde total é apenas uma de suas formas mais bregas) nos levaria ao admirável mundo novo.
Meu Deus, por que temos de ser uma espécie assim tão infeliz? Por um lado, a vida é dura o bastante para querermos (com razão) ser felizes, mas, por outro lado, a busca pela felicidade nos faz de gado alegre. Escolha maldita: ser infeliz, morrer jovem ou virar gado e ter uma dieta balanceada. E para tal, estaremos dispostos a ter fiscais de nossos hábitos cotidianos de saúde em nossas cozinhas.
Nessas horas, sinto o pessimismo tomar conta de mim como um líquido negro e viscoso a entrar pela minha boca e pelo meu nariz, fazendo-me engasgar. Vejo o mundo como um parque zoológico de pessoas sorridentes e saudáveis, todas felizes em ter um "retorno" financeiro em troca de abrir suas casas e suas vidas para profissionais de "qualidade de vida" avaliarem suas refeições diárias.
Você ouve o interfone tocar? É ela, a avaliadora de sua qualidade de vida. Sorria e acima de tudo tenha em mãos as provas de que colabora com a sua própria saúde. Não seja um inimigo de sua própria felicidade fisiológica. Seja pró-ativo.
Imagino alguém bonito, simpático, espiritualizado, provavelmente um budista light, checando os nutrientes na alimentação da sua família. Talvez você possa agendar a visita via internet -afinal hoje em dia ninguém tem tempo pra nada, não é?
Imagine o número de empregos para as novas xamãs do mundo, as nutricionistas...
Se, desde cedo, você tomar as decisões alimentícias corretas para seus filhos, provavelmente a apólice de seguro saúde deles sairá bem mais em conta. Meus olhos se enchem de lágrimas ao perceber como o mundo melhora a cada passo.
A lógica de fundo é que ninguém racional quer morrer cedo, logo, só uma pessoa irracional, contraproducente, antissocial e, por fim, passível de alguma forma de punição, seria capaz de não ver isso tudo como um passo justo para "agregar valor" a nossa vida.
Aliás, uma pessoa assim, intratável, talvez, devesse num futuro próximo ser multada, porque ela não só onera os custos de seguro saúde da família como os da empresa de seguro saúde e, por fim, os do próprio Estado. Quem sabe devêssemos "evoluir" para a proibição de contas bancárias, crédito ao consumidor ou mesmo passaporte?
Quem sabe o Ministério da Saúde poderia criar um cadastro de pessoas inadimplentes em cuidados com a própria qualidade de vida. O nome poderia ser CTH (Cadastro Thanatos).
Artigos de Luiz Felipe Pondé.
Comentários
Viva o rock'n'roll alcoolátra e inconsequente!
O 'outro', com essa agenda contemporânea de saúde e felicidade, devem ser justamente os 'malditos'. Quantos poetas que se encaixam nessa categoria que se ensinam nas aulas de Literatura de hoje. Aliás, há aulas de literatura? De Literatura mesmo?
Mais uma coisa. Achei péssima a seguinte parte do texto: "Será que Deus vai protegê-lo hoje, caro leitor?" Será que ele queria nos chocar com algo???????
Assim, é de se esperar uma certa 'subestimação' do leitor, por parte do Pondé. E penso que isso venha mais por causa de questões contratuais, essas coisas.
Em suma, mais uma merda que vem de Organizações Globo, Folha e congêneres. Filosofia de boteco.
Ah, gostaria de lembrar que não sou uma maníaca por qualidade de vida.
É por isso que eu desprezo Paulo Coelho e aprecio Clarice Lispector - porque ela jamais ensejou dar "conselhos" aos leitores dela (ainda que circule por aí uma infinidade de textos apócrifos errônea e grotescamente atribuídos a ela). Da mesma forma, Luis Fernando Verissimo jamais cometeu essa estupidez (ainda que seja outro que sofre com textos ridículos colocados na boca dele).
Na verdade nenhum escritor decente e sensato na história da humanidade almejou ter uma "fórmula" de felicidade aplicável a todas as pessoas do planeta (ou mesmo de seu país/região). Só os boçais têm essa pretensão.
Esse texto do Pondé parece uma crônica da Martha Medeiros. Martha é uma cronista/poetisa aqui de Porto Alegre. Como poetisa ela capta com inegável talento a alma feminina e constrói bons versos em seus livros. Como cronista no jornal Zero Hora, ela resvala em lugares-comuns e superficialidades típicas de uma mulher cujas preocupações se alternam entre questões estéticas e shopping centers.
Outro dia eu chamei atenção para o fato de que Pondé escreve estritamente para o universo onde vive - a classe média. Isso fica evidente nos conceitos que ele emprega e nas causas que ele defende (ou combate).
Agora o "filósofo" anuncia aos menos atentos:
Se, desde cedo, você tomar as decisões alimentícias corretas para seus filhos, provavelmente a apólice de seguro saúde deles sairá bem mais em conta.
Ora, "apólice de seguro saúde"? Ainda que queira se referir a um plano de saúde privado simples, quantas pessoas Pondé imagina que têm isso no Brasil?
O problema da classe média, ou melhor, do pensamento médio-classista (porque nem todos da classe média vivem numa redoma), é que uma parcela significativa de seus representantes desconhece solemente a realidade social da maior parte dos brasileiros.
E mesmo desconhecendo, mesmo vivendo em ambientes assépticos e gabinetes refrigerados, mesmo alimentando um saber acadêmico equidistante da realidade prática, eles ainda têm a incrível pretensão de traduzir as questões sociais do nosso país (e às vezes até de outras nações, como Pondé fez semana passada em relação aos conflitos na Inglaterra).
Pondé julga ser um alienista, mas não passa de um alienado.
E não há no texto desconhecimento da realidade social do país.
Pq esse "projeto de saúde e felicidade" é incutido ao pobre através de forte propaganda(vide Globo repórter por exemplo) e muito pouco de prático é feito.
Ou seja,o pobre apenas deseja isso sem poder ter,ou tendo muito pouco.
E na verdade o ponto do texto não é esse,o ponto do texto é "viva e morra como bem desejar,ninguém tem o direito de decidir isso por vc".
Discordo: o que vem de tais entidades é justamente o discurso autoritário "pró-alimentação-saudável-e- seguro saúde mais econômico-com saúde pública mais equilibrada" contra o qual escreveu esta coluna, nosso Pondé.
Outro Anonimo replicou dizendo: "Pq esse "projeto de saúde e felicidade" é incutido ao pobre através de forte propaganda(vide Globo repórter por exemplo) e muito pouco de prático é feito.
Ou seja,o pobre apenas deseja isso sem poder ter,ou tendo muito pouco.
E na verdade o ponto do texto não é esse,o ponto do texto é "viva e morra como bem desejar,ninguém tem o direito de decidir isso por vc"."
Com tal réplica concordo em gênero, número e grau!
E sublinho também o seguinte feliz comentário: "Gosto de quando o Pondé é assim, bem rock'n'roll. Sinto falta dos roqueiros que usavam heroína, maconha e álcool como bem entendessem e trepavam feito loucos. Hoje em dia nós temos ASSEXUADOS CARETAS como os Jonas Brothers, Justin Bieber, entre outros.
Viva o rock'n'roll alcoolátra e inconsequente!"
Mas, observo que não gosto de qualquer tipo de rock, mas tão-somente dos mais toscos e barulhentos: punk, metal e grunge. Grunge é foda!!!
Saia às ruas e verá: todos estão acima do peso, com suas barriguinhas à mostra; lanchonetes tipo "Heart Attack Grill" estão sempre lotadas (sendo um dos melhores negócios de franquias no Brasil); os gordos "sem vergonha", nas pizzarias, pedem aquela ultra gordurosa pizza com coca zero ...Crianças, segundo pesquisas recentes, estão cada vez mais sedentárias e obesas.
Por isso: não entendo a revolta de Pondé...
Os cultistas do corpo e da alimentação são os modelos de televisão e revista. Primeiro, por que ganham a vida com seu corpo; segundo, esse ganha-pão se dá por que os gordinhos e gordinhas os elegem (os modelos) como objeto de desejo. Só isso!!!
O meu argumento é sempre o mesmo: o cristianismo prega uma filosofia conformista, onde se evita prazeres aqui (ou pecados, para a Bíblia) e se tem uma vida infeliz e conformada com a opressão enquanto se espera por um pós-vida. Isso não tem nada de positivo.
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