por Mac Margolis para o Estadão
Para Christopher Hitchens (foto), o combativo jornalista britânico que morreu de câncer no início do mês, a América Latina não era exatamente sua especialidade. O maior polemista da língua inglesa do nosso tempo estava mais do que distraído travando batalhas com os maiores ícones e lendas globais, de Madre Teresa aos profetas do "islamofacismo". Poucos foram os tiranos, pícaros e farsantes de gabarito internacional que escapavam de sua ácida eloquência.
É uma pena, pois nos raros intervalos em que voltava o foco para o sul desse hemisfério, trouxe luzes extraordinárias e tiradas das mais originais. Mas, pela astúcia e pelo brilho retórico, a erudição e o puro espírito de porco com que o autor de "Deus não é grande" e "Hitch 22" tratava o mundo, vale a pena relembrar alguns lampejos latinos.
De longe, seu tratado mais extenso sobre a América Latina veio pela investigação da vida de Henry Kissinger. O autor intelectual da desventura americana no Camboja já estava em plena reabilitação perante a opinião pública quando Hitchens chamou-o de criminoso de guerra. Destacada na folha corrida consta seu papel de eminência parda no golpe de 11 de setembro de 1973 contra Salvador Allende, no Chile, um crime em que "tramou e planejou pessoalmente o assassinato de uma autoridade constitucional em uma nação democrática com que os EUA não estavam em guerra".
Mas foi outro 11 de setembro, o de 2001, que o mudou de vez. Fornido no caldeirão do socialismo cavalheiro da Grã-Bretanha, Hitchens tinha o viés agudo de esquerdista.
Odiava o falcão americano Kissinger, escrevia para jornais trotskistas e, assim como seu amigo Salman Rushdie, se comoveu pela causa sandinista durante a guerra civil da Nicarágua. Essa foi uma das poucas barcas furadas em que Hitchens embarcou. Aprumou-se aos poucos na década de 90, quando apoiou a intervenção da Otan na Bósnia e espinafrou a esquerda americana pela sua defesa de Bill Clinton, que chamou de "mentiroso, capanga e estuprador". A ruptura definitiva com a esquerda veio no 11 de Setembro. Ele preparava uma palestra sobre os crimes de Kissinger quando os aviões da Al-Qaeda bateram contra as Torres Gêmeas. Hitchens comprou briga com os companheiros da esquerda. Acusou-os de cegueira moral ao não condenar o "islamofacismo" da hora e defendeu a invasão americana do Iraque.
Seria a segunda "furada" de Hitchens. Nesse momento, baixou nele o santo de George Orwell, outro socialista que deu uma guinada para a direita ao assistir à barbárie de Stalin. Mas Hitchens nunca se comoveu pelo canto facial dos ultraconservadores americanos que dominavam as ondas de rádio. E jamais hesitou em denunciar a tortura dos prisioneiros da guerra do Iraque.
Muitos intelectuais escandalizaram-se com a sua conversão. Mas é dessa época que Hitchens também mirou com seu olhar preciso e mortal as disfunções das latitudes sul-americanas, a exemplo da Venezuela de Hugo Chávez. Hitchens, em visita a Caracas, relata como Chávez denunciou como montagem a filmagem da chegada dos astronautas americanos à Lua - imagens em que a bandeira dos EUA aparece ondeando. "O império ianque chegou à Lua? Há vento na Lua?"
Foi a deixa perfeita para Hitchens: "Enquanto Chávez sorria com seu trunfo de lógica, um desconforto tomou conta da conversa", escreveu. "Mesmo sua garimpagem macabra no caixão de Simón Bolívar foi inicialmente justificada pela teoria de que uma autópsia comprovaria que ele teria sido envenenado - provavelmente por malévolos colombianos. Isto daria licença póstuma para que a Venezuela continuasse a abrigar a gangue narcocriminosa das Farc, um empreendimento além das fronteiras que pouco ajuda a promover a fraternidade regional."
E foi só. Talvez houvesse fanáticos e tiranos demais pelo mundo para Hitchens se desviar pelos descaminhos da democracia latino-americana. Mas não custa imaginar o que o polemista titular do jornalismo internacional faria com líderes que amordaçam economistas para acabar com a inflação (Cristina Kirchner), reeditam leis para converter inimigos políticos em bandidos (Evo Morales) ou exumam um cadáver secular para legitimar uma revolução sem rumo. Christopher Hitchens deixa saudades.
Mac Margolis correspondente da revista 'Newsweek' no Brasil e edita o site www.brazilfocus.com.
Hitchens praticava a insubmissão a qualquer poder autoritário.
dezembro de 2011
Mais sobre Hitchens.
Hitchens comprou briga com
companheiros da esquerda
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É uma pena, pois nos raros intervalos em que voltava o foco para o sul desse hemisfério, trouxe luzes extraordinárias e tiradas das mais originais. Mas, pela astúcia e pelo brilho retórico, a erudição e o puro espírito de porco com que o autor de "Deus não é grande" e "Hitch 22" tratava o mundo, vale a pena relembrar alguns lampejos latinos.
De longe, seu tratado mais extenso sobre a América Latina veio pela investigação da vida de Henry Kissinger. O autor intelectual da desventura americana no Camboja já estava em plena reabilitação perante a opinião pública quando Hitchens chamou-o de criminoso de guerra. Destacada na folha corrida consta seu papel de eminência parda no golpe de 11 de setembro de 1973 contra Salvador Allende, no Chile, um crime em que "tramou e planejou pessoalmente o assassinato de uma autoridade constitucional em uma nação democrática com que os EUA não estavam em guerra".
Mas foi outro 11 de setembro, o de 2001, que o mudou de vez. Fornido no caldeirão do socialismo cavalheiro da Grã-Bretanha, Hitchens tinha o viés agudo de esquerdista.
Odiava o falcão americano Kissinger, escrevia para jornais trotskistas e, assim como seu amigo Salman Rushdie, se comoveu pela causa sandinista durante a guerra civil da Nicarágua. Essa foi uma das poucas barcas furadas em que Hitchens embarcou. Aprumou-se aos poucos na década de 90, quando apoiou a intervenção da Otan na Bósnia e espinafrou a esquerda americana pela sua defesa de Bill Clinton, que chamou de "mentiroso, capanga e estuprador". A ruptura definitiva com a esquerda veio no 11 de Setembro. Ele preparava uma palestra sobre os crimes de Kissinger quando os aviões da Al-Qaeda bateram contra as Torres Gêmeas. Hitchens comprou briga com os companheiros da esquerda. Acusou-os de cegueira moral ao não condenar o "islamofacismo" da hora e defendeu a invasão americana do Iraque.
Seria a segunda "furada" de Hitchens. Nesse momento, baixou nele o santo de George Orwell, outro socialista que deu uma guinada para a direita ao assistir à barbárie de Stalin. Mas Hitchens nunca se comoveu pelo canto facial dos ultraconservadores americanos que dominavam as ondas de rádio. E jamais hesitou em denunciar a tortura dos prisioneiros da guerra do Iraque.
Muitos intelectuais escandalizaram-se com a sua conversão. Mas é dessa época que Hitchens também mirou com seu olhar preciso e mortal as disfunções das latitudes sul-americanas, a exemplo da Venezuela de Hugo Chávez. Hitchens, em visita a Caracas, relata como Chávez denunciou como montagem a filmagem da chegada dos astronautas americanos à Lua - imagens em que a bandeira dos EUA aparece ondeando. "O império ianque chegou à Lua? Há vento na Lua?"
Foi a deixa perfeita para Hitchens: "Enquanto Chávez sorria com seu trunfo de lógica, um desconforto tomou conta da conversa", escreveu. "Mesmo sua garimpagem macabra no caixão de Simón Bolívar foi inicialmente justificada pela teoria de que uma autópsia comprovaria que ele teria sido envenenado - provavelmente por malévolos colombianos. Isto daria licença póstuma para que a Venezuela continuasse a abrigar a gangue narcocriminosa das Farc, um empreendimento além das fronteiras que pouco ajuda a promover a fraternidade regional."
E foi só. Talvez houvesse fanáticos e tiranos demais pelo mundo para Hitchens se desviar pelos descaminhos da democracia latino-americana. Mas não custa imaginar o que o polemista titular do jornalismo internacional faria com líderes que amordaçam economistas para acabar com a inflação (Cristina Kirchner), reeditam leis para converter inimigos políticos em bandidos (Evo Morales) ou exumam um cadáver secular para legitimar uma revolução sem rumo. Christopher Hitchens deixa saudades.
Mac Margolis correspondente da revista 'Newsweek' no Brasil e edita o site www.brazilfocus.com.
dezembro de 2011
Mais sobre Hitchens.
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