Pular para o conteúdo principal

Fé e sagrado não são experiências próprias e exclusivas da religião

Título original: Religião e ética

por Sérgio Telles, psicanalista e escritor, para o Estadão

Filósofo francês
Derrida (1930-2004)
Não li "Religião para Ateus" (Ed. Intrínseca), de Alain de Botton, e sim a recente resenha que lhe dedicou Terry Eagleton, filósofo e crítico literário inglês. Eagleton diz que, ao contrário de Marx e Nietzsche, que diretamente combatiam a religião, muitos filósofos, como Maquiavel, Voltaire, Rousseau, Diderot, Tolland, Gibbon, Matthew Arnold, Auguste Comte e o contemporâneo Habermas, compartilham a descrença nos dogmas religiosos, mas, ainda assim, consideram que a religião é útil para manter sob controle a ralé, a plebe, o populacho, a massa, a chusma... De forma irônica, Eagleton resume a postura desses pensadores, entre os quais inclui Botton, num mote - "eu mesmo não acredito, mas, do ponto de vista político, é mais prudente que você acredite". A seu ver, uma contraditória forma de pensar por aqueles que, enquanto filósofos, deveriam zelar pela integridade do intelecto.

Se Eagleton está correto em sua leitura, Botton e demais autores citados parecem incorrer no erro decorrente de uma indiscriminação entre os campos da religião e da ética, confusão sobre a qual Jacques Derrida [foto] se debruçou no Seminário de Capri, em 1994.

A maioria das pessoas pensa que os valores mais elevados da humanidade - o amor, o respeito ao outro, a abdicação da agressividade, o desejo de estabelecer a paz na comunidade - estão depositados e resguardados na religião. Por esse motivo, qualquer crítica que se lhe faça é entendida como um ataque a esses valores fundamentais para a civilização. Ao não se discriminar o que é próprio da religião e o que é próprio da ética, conclui-se apressada e erroneamente que o não religioso, o ateu, é um ser aético e antimoral.

No empenho de estabelecer o que é estritamente do domínio do religioso, Derrida pinça duas experiências especificas - a da fé e a do sagrado. À primeira vista, seriam elas exclusivas da religião. Mas Derrida mostra que não é bem assim. Em primeiro lugar, se entendemos a religião como a prática ligada ao trato com o divino e suas revelações, logo percebemos que a fé não se restringe a esse campo. A fé se faz imprescindível em qualquer contato entre os homens. É preciso ter fé no outro, é preciso crer no que ele diz, acreditar que ele fala a verdade. De forma semelhante, o sagrado também não se limita ao divino, pois a consideração à vida e ao outro deve ter essa conotação. A vida, diz Derrida, é algo que deve permanecer "indene, sã, a salvo, intocável, sagrada".

Na medida em que evidencia que a fé não é uma experiência própria e exclusiva da religião e sim algo inerente e indispensável no relacionamento humano, Derrida desfaz a incompatibilidade entre fé e razão, oposição tradicional mantida com grande vigor desde o Iluminismo por aqueles que julgam nela se apoiar a possibilidade do pensamento científico. Derrida afirma o contrário. É justamente por ter fé na palavra do outro que a transmissão de conhecimento se faz possível.

Qualquer relação humana se baseia na possibilidade de aliança com o outro, na crença de ouvir dele a verdade e, em retribuição, para ele também falar a verdade, de ter com ele uma "fé jurada". Esses atos de grande importância nas relações pessoais geram quase automaticamente a figura necessária de uma testemunha, aquele que garante e dá credibilidade às sempre frágeis e incertas promessas e alianças entre os homens. Ninguém melhor do que um deus para cumprir essa função.

O que Derrida propõe é que aquilo que aparece simbolizado, idealizado e "purificado" na religião, e que se acredita ser específico dela, na verdade são aspectos essenciais das relações entre os homens. Aponta para uma religião não "religiosa" no sentido comum, "ateologizada", fruto de necessidades humanas. Nesse sentido, o título do livro de Botton, uma religião para ateus, parece apontar para a mesma direção, mas por vias não coincidentes.

Freud também concebia a religião como fruto de necessidades humanas, atendendo a anseios arcaicos por um pai poderoso que garantisse amor e proteção contra os perigos existentes e a ameaça onipresente da morte. Na religião, são reencontrados os pais fortes da infância e dos quais não se quer abrir mão, na relutância em se assumir a própria autonomia na vida adulta.

Ao fazer a discriminação entre religião e ética, persiste uma questão. Muitos pensam que a ética decorre de preceitos religiosos, seria ela um depurado leigo dos mandamentos divinos. Entretanto, Freud mostrou que a ética decorre de procedimentos humanos necessários para a sobrevivência. Cada homem deve conter sua sexualidade e sua agressividade para que seja possível a convivência em comum, para que o grupo social sobreviva. No correr do tempo, essa contenção se codifica em normas de conduta que regem as relações humanas.

O filósofo Philip Kitcher diz algo semelhante no artigo Ethics without Religion, ao enfatizar a importância de compreender as raízes históricas de nossas práticas éticas. Afastando-se da ideia de que mandamentos semelhantes possam ter sido enunciados por diferentes deuses em épocas e culturas diversas, pensa que tais mandamentos teriam surgido como soluções práticas para problemas sociais. Posteriormente teriam sido absorvidos pelos diferentes contextos religiosos, o que lhes teria dado uma força suplementar. Ou seja, a ética não decorreria de preceitos divinos revelados e sim da codificação de procedimentos e condutas impostos pela necessidade de viver em grupo. Essas regras humanas teriam sido absorvidas pela religião e transformadas em mandamentos divinos.

Mostra Kitcher que entender a natureza humana da ética nos possibilita ter uma ideia do trajeto percorrido e do estágio que atingimos - de hordas de primatas às nossas complexas sociedades -, dando-nos forças para continuar melhorando um projeto jamais acabado, em permanente processo de aprimoramento.

Os que defendem a religião como necessária para a estabilidade social, como Eagleton diz que fazem Botton e outros filósofos citados, esquecem que ela muitas vezes coloca em risco o laço social. No momento em que dogmas diferentes entram em choque, impera a violência, instala-se a intransigência e intolerância.

Ateus têm de aprender com religiões como unir pessoas, diz Botton.
novembro de 2011

Trecho do livro 'Religião para Ateus', de Alain de Botton.
novembro de 2011

Ateísmo.    Alain de Botton.

Comentários

Rita Candeu disse…
muito bom!!!!
Anônimo disse…
Eu já sabia disso tudo por mim mesmo.
Anônimo disse…
PARA MIM, QUE VIVO DA CIENCIA, ESSE TRECHO - NAO DIZ TUDO - MAS APONTA BEM PORQUE ABANDONEI O ATEÍSMO:

"Derrida desfaz a incompatibilidade entre fé e razão, oposição tradicional mantida com grande vigor desde o Iluminismo por aqueles que julgam nela se apoiar a possibilidade do pensamento científico. Derrida afirma o contrário. É justamente por ter fé na palavra do outro que a transmissão de conhecimento se faz possível."

BASTA ESSE TRECHO PARA QUALQUER DEÍSTA RELIGIOSO SE CONVENCER QUE TOMOU O RUMO CERTO. O RESTO DAS COLOCAÇÕES DO AUTOR É PURO PONTO DE VISTA PRA AGRADAR "AQUELA MORAL" E "AQUELA ÉTICA" QUE ME É MAIS CONVENIENTE, ENTENDÍ?... rs
Anônimo disse…
É aquela o homem fez deus sua imagem e semelhança.
blackbrain disse…
Assisti um TedTalk desse Alain de Botton e achei terrìvel do meu ponto de vista ateísta.

http://www.ted.com/talks/alain_de_botton_atheism_2_0.html

Não me surpreende que os anônimos acima tenham interpretado como um argumento para uma suposta superioridade da religião sobre o ateísmo.

Também li MUITAS críticas a esse Terry Eagleton nos sites de divulgação científica que acompanho.
Anônimo disse…
Fé, pode ser interpretada como acreditar em si mesmo tambem, tenho fé que consigo com meus méritos, instalar uma maquina de secar roupa hoje na minha lavanderia. Isso é a fé que da coragem verdadeira. Fé de ilusão seria esperar um milagre da dita maquina aparecer instalada, sozinha.
A.Porto disse…
Na china não se usa a religião para manter o povo cativo.
Lá o partido comunista manda e desmanda e é liderado por ateus, não famosos.
Mas é muito perigoso criticar a china.
Nunca ví um ateu se importar com direitos humanos na china.
Anônimo disse…
Não alimente o troll.
A melhor frase do troll.

Ai como estou bandida.
George disse…
A china não é apenas uma questao de religião. As atrocidades cometidas lá não possuem sua "culpa" depositada sob os ombros do ateísmo, mas sim de uma ideologia política que vem se moldando há séculos.

Agora, quer um exemplo de atrocidades diretamente ligadas à religião e que não se importaram nem um pouco com os direitos humanos? Inquisição e Nazismo.

A.Porto, procure conhecer melhor o assunto que você deseja citar antes de fazer qualquer comentário. É bom para o intelecto de qualquer pessoa ^^
Anônimo disse…
Concordo com muito do que ele diz. Fé não é exclusivo da religião. Acreditar em si mesmo também é fé, acreditar naquilo que você faz, na sua busca por conhecimento, numa nova tentativa de emprego.
Não sou ateu, acredito sim que há um poder por trás do universo. Mas sou um apaixonado pela ciência. É uma pena que os ateus e não religiosos em geral estejam seguindo por este caminho de atacar frontalmente a religião. Creio que é esse o caminho. O melhor seria um esforço maior em divulgar a ciência. Promover um maior raciocínio lógico diminuiria o fanatismo religioso. Mas o que eu estou vendo e percebendo é que o fanatismo também não é exclusivo da relgião. Alguns ateus também estão seguindo pelo mesmo caminho. O mesmo radicalismo e intolerância.
Quando era adolescente tinha uma visão idílica da ciência. Até que houve um congresso sobre evolução. Na época o famoso Stephen Jay Gold era vivo e participou do congresso. Cada um expôs as suas teorias evolucionistas. O dr. Jay Gold defendia que os cães evoluíram dos gatos.
Em dado momento os ânimos se alteraram, ergueram-se as vozes e começaram ofensas mútuas. Só faltaram sair no "mano a mano".
O Brasil está numa situação não muito confortável.
Corrupção generalisada em todos os setores da sociedade, uma máquina estatal cara, burocrática e ineficiente, atraso tecnólogico, mau aparelhamento do exército, altos índices de violência (pior que países em guerra), sistema de saúde caótico, educação precária, falta de segurança, desemprego e sub-emprego.
Enquanto isso a sociedade não se mobiliza para nada. Os grupos que estão se organizando aqui são os ateus, os gays e os evangélicos.
Os gays só se preocupam com questões de sexualidade, o evangélicos só querem impor a religião deles e converter todo mundo e os ateus só se preocupam com símbolos religiosos.
Fala sério, tem tanta coisa pra se preocupar nesse país.
Valdo.

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Dawkins é criticado por ter 'esperança' de que Musk não seja tão estúpido como Trump

Tibetanos continuam se matando. E Dalai Lama não os detém

O Prêmio Nobel da Paz é "neutro" em relação às autoimolações Stephen Prothero, especialista em religião da Universidade de Boston (EUA), escreveu um artigo manifestando estranhamento com o fato de o Dalai Lama (foto) se manter neutro em relação às autoimolações de tibetanos em protesto pela ocupação chinesa do Tibete. Desde 16 de março de 2011, mais de 40 tibetanos se sacrificaram dessa dessa forma, e o Prêmio Nobel da Paz Dalai Lama nada fez para deter essa epidemia de autoimolações. A neutralidade, nesse caso, não é uma forma de conivência, uma aquiescência descompromissada? Covardia, até? A própria opinião internacional parece não se comover mais com esse festival de suicídios, esse desprezo incandescente pela vida. Nem sempre foi assim, lembrou Prothero. Em 1963, o mundo se comoveu com a foto do jornalista americano Malcolm Wilde Browne que mostra o monge vietnamita Thich Quang Duc colocando fogo em seu corpo em protesto contra a perseguição aos budistas pelo

TJs perdem subsídios na Noruega por ostracismo a ex-fiéis. Duro golpe na intolerância religiosa

Jornalista defende liberdade de expressão de clérigo e skinhead

Título original: Uma questão de hombridade por Hélio Schwartsman para Folha "Oponho-me a qualquer tentativa de criminalizar discursos homofóbicos"  Disputas eleitorais parecem roubar a hombridade dos candidatos. Se Fernando Haddad e José Serra fossem um pouco mais destemidos e não tivessem transformado a busca por munição contra o adversário em prioridade absoluta de suas campanhas, estariam ambos defendendo a necessidade do kit anti-homofobia, como aliás fizeram quando estavam longe dos holofotes sufragísticos, desempenhando funções executivas. Não é preciso ter o dom de ler pensamentos para concluir que, nessa matéria, ambos os candidatos e seus respectivos partidos têm posições muito mais próximas um do outro do que da do pastor Silas Malafaia ou qualquer outra liderança religiosa. Não digo isso por ter aderido à onda do politicamente correto. Oponho-me a qualquer tentativa de criminalizar discursos homofóbicos. Acredito que clérigos e skinheads devem ser l

Proibido o livro do padre que liga a umbanda ao demônio

Padre Jonas Abib foi  acusado da prática de  intolerância religiosa O Ministério Público pediu e a Justiça da Bahia atendeu: o livro “Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de Cura e Libertação”, do padre Jonas Abib (foto), terá de ser recolhido das livrarias por, nas palavras do promotor Almiro Sena, conter “afirmações inverídicas e preconceituosas à religião espírita e às religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, além de flagrante incitação à destruição e ao desrespeito aos seus objetos de culto”. O padre Abib é ligado à Renovação Carismática, uma das alas mais conservadoras da Igreja Católica. Ele é o fundador da comunidade Canção Nova, cuja editora publicou o livro “Sim, Sim!...”, que em 2007 vendeu cerca de 400 mil exemplares, ao preço de R$ 12,00 cada um, em média. Manuela Martinez, da Folha, reproduz um trecho do livro: "O demônio, dizem muitos, "não é nada criativo". (...) Ele, que no passado se escondia por trás dos ídolos, hoje se esconde no

Condenado por estupro, pastor Sardinha diz estar feliz na cadeia

Pastor foi condenado  a 21 anos de prisão “Estou vivendo o melhor momento de minha vida”, diz José Leonardo Sardinha (foto) no site da Igreja Assembleia de Deus Ministério Plenitude, seita evangélica da qual é o fundador. Em novembro de 2008 ele foi condenado a 21 anos de prisão em regime fechado por estupro e atentado violento ao pudor. Sua vítima foi uma adolescente que, com a família, frequentava os cultos da Plenitude. A jovem gostava de um dos filhos do pastor, mas o rapaz não queria saber dela. Sardinha então disse à adolescente que tinha tido um sonho divino: ela deveria ter relações sexuais com ele para conseguir o amor do filho, e a levou para o motel várias vezes. Mas a ‘profecia’ não se realizou. O Sardinha Jr. continuou não gostando da ingênua adolescente. No texto publicado no site, Sardinha se diz injustiçado pela justiça dos homens, mas em contrapartida, afirma, Deus lhe deu a oportunidade de levar a palavra Dele à prisão. Diz estar batizando muita gen

Veja os 10 trechos mais cruéis da Bíblia

Profecias de fim do mundo

O Juízo Final, no afresco de Michangelo na Capela Sistina 2033 Quem previu -- Religiosos de várias épocas registraram que o Juízo Final ocorrerá 2033, quando a morte de cristo completará 2000. 2012 Quem previu – Religiosos e teóricos do apocalipse, estes com base no calendário maia, garantem que o dia do Juízo Final ocorrerá em dezembro, no dia 21. 2011 Quem previu – O pastor americano Harold Camping disse que, com base em seus cálculos, Cristo voltaria no dia 21 de maio, quando os puros seriam arrebatados e os maus iriam para o inferno. Alguns desastres naturais, como o terremoto seguido de tsunami no Japão, serviram para reforçar a profecia. O que ocorreu - O fundador do grupo evangélico da Family Radio disse estar "perplexo" com o fato de a sua profecia ter falhado. Ele virou motivo de piada em todo o mundo. Camping admitiu ter errado no cálculo e remarcou da data do fim do mundo, que será 21 de outubro de 2011. 1999 Quem previu – Diversas profecias