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A pior tragédia do adultério se dá quando o traído é inocente

Título original: Francesa

por Luiz Felipe Pondé para Folha

Lia eu o livro do marxista Terry Eagleton, "O Debate sobre Deus" (ed. Nova Fronteira, 232 págs., R$ 39,90), recém-publicado entre nós, quando topei com sua crítica ao cineasta Clint Eastwood.

Eagleton é um bom pensador, mas ninguém é perfeito. Seu livro é muito bom e merece ser lido, mas o que ele diz sobre Eastwood é uma grande bobagem.

Bobagem, aliás, comumente repetida por gente de bem, mas contaminada pelo que há de pior nos maus hábitos da esquerda: falar mal de algo que não conhece.

Eastwood não é um cineasta machão (como supõem Eagleton e quase toda a esquerda, que nada entende de ser humano, porque pensa o tempo todo na bobagem de luta de classes e oprimido x opressor). Pelo contrário, talvez ele seja um dos artistas que melhor entendem o desespero humano (masculino ou feminino), assim como suas virtudes mais sagradas, como a coragem, o autossacrifício e a generosidade.

Recentemente, revi seu maravilhoso filme "As Pontes de Madison" (1995), um longa feito para as mulheres, como muitos dizem.

Provavelmente ele pegou muita mulher por conta desse filme. Mulheres comumente não resistem a homens que parecem entendê-las. Uma das coisas mais lindas na mulher é a sua capacidade de erotizar o intelecto masculino.

Concordo que "As Pontes de Madison" seja um filme sobre o desejo feminino atado à rotina esmagadora de um casamento sem amor, mas nem tanto. Ele vai muito além de um drama especificamente feminino.

Sua personagem feminina principal, Francesca, vivida por Meryl Streep, não representa apenas as mulheres entediadas de casamentos conservadores (apesar de que sim, também as representa), mas sim todos os homens e mulheres que abrem mão de suas vidas afetivas em nome da família sem reclamar.

Se é verdade que Gustave Flaubert (1821-80), autor do clássico "Madame Bovary" (1857), disse um dia a famosa frase "Emma Bovary sou eu" (referindo-se à personagem principal de seu romance como representante universal da infelicidade humana), acho que muitos homens poderiam dizer, parafraseando esse grande romancista francês do século 19, "Francesca sou eu".

É um erro comum pensarmos que as angústias femininas não são universais. Tal erro é comum principalmente nas feministas, que, na realidade, não entendem nada de mulher nem de homem. Essa tendência a achar que os fantasmas femininos são "coisa de mulher", assim como menstruação e menopausa, é comum mesmo em gente capaz.

Vejamos. No filme em questão, ao final, Francesca (casada e mãe de dois filhos) abre mão de ir embora com Kinkaid, fotógrafo da "National Geographic", vivido pelo próprio Eastwood, e que se tornará seu amante por alguns dias, mas de quem ela jamais se esquecerá (nem ele se esquecerá dela).

No marasmo de uma vida interiorana americana, Francesca vive por poucos dias o pecado do adultério. Não se faz de vítima, mas sabe que peca. Peço aos inteligentinhos que nada entendem do conceito de pecado que vão brincar no parque.

O adultério é um pecado, principalmente quando há amor envolvido; talvez, somente quando há amor envolvido. E pecado aqui significa a consciência de que você não é dono de si mesmo. Suas reações, pensamentos e esquemas rotineiros de enfrentamento da vida entram em colapso. E dói.

E mais: é pecado porque o adultério faz você ver que existe alguém dentro de você que é despertado do sono por outra pessoa que não aquela que divide honestamente e cotidianamente o dia a dia da sua vida.

Aquela pessoa que envelhece com você ao longo de uma vida de "pequenos detalhes" (como diz nossa heroína Francesca) que, ao serem somados, representam uma parceria de confiança, retribuição e generosidade. A grandeza da pecadora Francesca só pode ser medida contra seu sacrifício em nome dos filhos e do fiel e dedicado marido.

A alma de um pecador é a sua consciência de que faz algo contra alguém que não merece. A pior tragédia do adultério se dá quando o traído é inocente.

Ao contrário do que muitas mulheres casadas pensam, muitos homens sacrificam suas vidas afetivas em nome delas e dos filhos, em silêncio. A virtude é sempre discreta.

Beleza artificial é uma batalha discreta contra o vazio do corpo e da alma.
novembro de 2011

Artigos de Pondé.

Comentários

Cada vez que leio esse Pondé sinto-me um completo porcaria: burro por ser de esquerda, ruim por ser homem, desqualificado por ser ateu, inútil por estar vivo ou porque vou morrer, porque isso e porque aquilo.
Mas se fosse de direita, ou mulher, o gay, ou reloigioso daria na mesma porque Pondé é superior, entende tudo, sabe tudo.
Não é a toa que o colunista dono de uma única idéia-força (eu sei tudo e sou o melhor) tem espaço garantido no PIG.
Conheço o tipo.
gutenberg j disse…
Bela reflexão.

Hoje em dia, conforme notamos nos comentários, alguém que tenha um norte para pensar, que não seja a falta de norte da esquerda, é sempre criticado.
Está claro o que Pondé diz sobre Eastwood e sobre o pecado. Uma sociedade descristianizada, sem o senso de responsabilidade (só direitos), sem o senso de sacrifício (tudo eu!), sem a noção de pecado (temos o direito de ser feliz, até por decreto), torna um texto cristalino como esse incompreensível. Assim como é incompreensível para muitos o altruísmo. São os altos e baixos que fazem a vida, e é o senso moral ou de pecado que nos dão critérios para avaliar o que fazemos. Se os outros não importam mais, sinceramente, viramos monstros, ou formigas.
gutenberg j disse…
Bela reflexão.

Hoje em dia, conforme notamos nos comentários, alguém que tenha um norte para pensar, que não seja a falta de norte da esquerda, é sempre criticado.
Está claro o que Pondé diz sobre Eastwood e sobre o pecado. Uma sociedade descristianizada, sem o senso de responsabilidade (só direitos), sem o senso de sacrifício (tudo eu!), sem a noção de pecado (temos o direito de ser feliz, até por decreto), torna um texto cristalino como esse incompreensível. Assim como é incompreensível para muitos o altruísmo. São os altos e baixos que fazem a vida, e é o senso moral ou de pecado que nos dão critérios para avaliar o que fazemos. Se os outros não importam mais, sinceramente, viramos monstros, ou formigas.
marlom2312 disse…
Pondé gosta de fazer polêmica, e todo mundo parece cair nas armadilhas que ele coloca nos seus textos e ficam brabinhos(do jeito que ele quer) sem entender as idéias e boas críticas por trás . Eu o acho muito inteligente(ele certamente conhece o homem) e ele definitivamente tem algumas coisas a ensinar. Não concordo muito com o que ele diz sobre política, mas também não levo muito a sério, nem ele leva muito a sério que eu sei.
Leandro Correia disse…
Gosto de ler os textos do Pondé para me situar, mas dizer "ele certamente conhece o homem" acho um tanto exagerado. Fiz esta tira em homenagem a este "grande" teólogo - http://cartumavesso.blogspot.com/2012/01/filosofia-barata.html.
Anônimo disse…
Muito bom o texto do professor Pondé, apenas parece que os ares de 2012 o deixaram um pouco bonzinho demais, essa história de sacrifício????
Nós humanos estamos sempre interessados. Os motivos da dona de casa comportada não fugir com o mocinho bonitão, não ficou claro, pode ter sido medo, ou a transa não foi tão legal assim, talvez o maridão caipira tenha mais pegada. Mas essa de sacrifício, sei não, o Pondé tá ficando bonzinho....
Ginaldo Gonçalves Farias.
Anônimo disse…
Toda vez que leio um artigo do Ponde´(que não seja pra desqualificar o sentimento daqueles que lutam pra minimizar o sofrimento dos animais neste planeta)me sinto agradecida por haver alguém que saiba expressar de forma brilhante as ideias que, de certa forma, ampliam horizontes, sem se preocupar em parecer "inteligentinho de esquerda". Gosto muito.
Fausto disse…
Ele esta mais pra "inteligentão da direita", hehehe.
Anônimo disse…
"Muitos não sabem quanto tempo e fadiga custa a aprender a ler. Trabalhei nisso 80 anos e não posso dizer que o tenha conseguido."
Goethe

Fica a dica!
Anônimo disse…
Acho que já somos uma legião. Gosto muito!
Marcela Picanço disse…
Boa. ele sempre consegue atinguir o objetivo.
Anônimo disse…
Admirável Pondé. Custei a encontrar "um só" texto seu que gostasse, e olha que por presente de um neto acadêmico de medicina, de volta do Chile, ganhei um exemplar de Guia Politicamente Incorreto da Filosofia. Este, entretanto, sugeriu-me franca atenção - e peço aos neófitos em questões de gênero que vão brincar no parque(parafraseando Pondé)-; pois eu fui (sou) do tempo que homem que é homem NÃO chora mesmo. Tive pai, tive marido e não confessaria em público, é óbvio, se tivesse tido amantes; pessoas inteligentes sabem ler nas entrelinhas, e isso é perigoso quando se adentra em idade avançada. Tive filhos, tive alunos, filhos e netos de alunos. É pródiga em recompensas felizes, quando se ama, a existência. Amor incondicional independe de gênero sexual, de condição anatomico-fisiológica sexual, do que a natureza ou a cultura nos oferece como capacidade de reprodução e réplica. Amor, se o substituirmos pelo viver, da grande nacional poeta, "ultrapassa todo entendimento". Creio que Pondé está atingindo, como sempre sói acontecer entre nós humanos, aquela despretensão que é calma e livre da competição aflitiva pra demonstrar erudição ou gênio; aquilo que os antigos chamavam feliz vida, cuja arte comedida de analisar sem pregões o viver, se chama sabedoria. Seu texto é belo, como belo é este enunciado de cima atribuído a Goethe. Fazia tempo, desde quando José Geraldo Gouveia disse que o blogue se tornara chato, que eu não lia coisa tão poética. Trabalhei também nisso 76 anos e não posso dizer que o tenha conseguido. Ah, a idade! Ia esquecendo de dizer qual foi a beleza que vi no texto de Pondé (espero que os inteligentezinhos não tenham voltado do parque!);..."Ao contrário do que muitas mulheres casadas pensam, muitos homens sacrificam suas vidas afetivas em nome delas e dos filhos, em silêncio. A virtude é sempre discreta". Porque há muitos que suportam o remorso,por suas habituais existencias de traidores, coitados, sem saber sequer que foram ao menos uma vez, também traídos.

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