Pular para o conteúdo principal

Única certeza moral de Hitchens é que foi o homem que criou Deus

Titulo original: 'Últimas Palavras' é diário sobre a evolução do câncer de Christopher Hitchens

por Antonio Gonçalves Filho para Estadão

Capa do livro "Ultimas Palavras", de Christopher Hitchens
Lançado no Brasil o livro que o
notório ateu escreveu no hospital
A proximidade da morte fez com que o polêmico escritor inglês Christopher Hitchens (1949-2011) reexaminasse um princípio que guiou boa parte de sua vida, baseado num dito atribuído ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche (e por vezes a Goethe): Was mich nicht umbringt macht mich stärker (O que não me mata me fortalece). Como, então, poderia Hitchens ainda acreditar nisso após uma sessão de quimioterapia, ele que disse a seus leitores, ao descobrir um câncer no esôfago, em 2010, que desejaria ver a morte com uma lupa, consciente e desperto até o fim para estar frente a frente com a "indesejável das gentes"? Hitchens, obviamente, sucumbiu — como todos, aliás. Lembrou do poeta Kingsley Amis, pai de seu amigo Martin Amis, quando chegou sua hora e ele disse para Philip, irmão de Martin: "Mate-me, seu maldito idiota".

O filho não obedeceu. Kingsley, vítima de um derrame, teve de esperar passivamente pelo fim. Hitchens, idem. Antes, fez sua última provocação, citando uma frase de Alan Lightman (de seu romance Sonhos de Einstein, 1933) no oitavo, último e incompleto capítulo de seu derradeiro livro, "Últimas Palavras", que chega às livrarias dia 15: "Os filhos nunca escapam das sombras dos pais. Nenhuma pessoa é completa. Nenhuma pessoa é livre."

Nem mesmo Hitchens, que descartou a santidade de madre Teresa de Calcutá — classificada por ele como uma fundamentalista representante do lado mais reacionário da Igreja —, ou disse que Deus não era grande, conseguiu ter forças suficientes para imprecar contra a presença da morte em seu leito de hospital. E é dessa impotência que trata "Últimas Palavras". Seus detratores ficaram contentes com a rendição. Houve até uns perversos que colocaram mensagens na internet desejando que o câncer chegasse à boca de Hitchens para o manter calado e levá-lo ao inferno.

Hitchens pergunta, no livro, que tipo de "primata desgraçado" é esse que deseja expor na internet seus pontos de vista para atingir seus filhos inocentes — passando, como o pai, por maus momentos. Se alguém sustenta que Deus concede cânceres sob medida, escreveu Hitchens, então deve estar preparado para ter um filho com leucemia. Esses infortúnios nada têm a ver com Deus. São "medonhamente aleatórios", não uma "punição" contra as "blasfêmias" de Hitchens — mais desabafos contra a intolerância de fundamentalistas do que raiva contra a divindade.

O homem que cunhou a expressão "fascismo com face islâmica" para se referir a fanáticos muçulmanos que derrubaram as torres gêmeas em setembro de 2001, defendeu a Guerra do Iraque e a política intervencionista do presidente Bush no Afeganistão, tinha uma única certeza moral: não foi Deus quem criou o homem, mas o contrário. É o que defende em "Deus Não É Grande", seu mais notável best-seller. Pode-se até discordar dele, mas é impossível não levar em consideração seus argumentos, defendidos com tal paixão que fez Gore Vidal nomear Hitchens seu sucessor. Este, contrário à tese conspiratória de Gore, que associou os ataques terroristas a um acordo com Bush para intervir no Iraque, declinou da coroa de herdeiro e investiu contra Vidal num artigo debochado da revistaVanity Fair, para a qual escreveu seu diário de morte agora publicado.

Em Hitch 22 (Nova Fronteira), autobiografia nada precoce, publicada há dois anos, Hitchens não se vê como um sucessor de Vidal, mas um seguidor da herança intelectual de George Orwell, a quem dedicou o livro "A Vitória de Orwell", publicado em 2010 pela Companhia das Letras. É certo que o volume esbarra numa hagiografia do autor de "1984" e "A Revolução dos Bichos", tratando-o como um pós-colonialista libertário e engajado em defesa dos humilhados e ofendidos. Como Hitchens decepcionou seus amigos de esquerda ao defender a Guerra do Iraque, ele se viu, de alguma forma, espelhado no drama de Orwell, que dedurou 84 militantes comunistas durante a Guerra Fria, ele que defendeu a ira dos militantes contra o colonialismo inglês (Dias na Birmânia) e denunciou a condição de vida dos mineiros de Lancashire (em Wigan Pier).

A desilusão de Hitchens com o comunismo começou bem antes, ao visitar Cuba, em 1968, e confrontar um cineasta do regime. O inglês, questionando como podia o cinema ser livre e ao mesmo tempo bater continência para o comandante Castro, recebeu uma cara feia de resposta e foi chamado de contra-revolucionário. Foi seu primeiro atrito com a esquerda. E Hitchens tinha apenas 19 anos, como conta em Hitch 22. Sua independência ideológica pode ser igualmente atestada em "O Julgamento de Kissinger" (2002, Boitempo Editorial), que acusa o ex-secretário de Estado de Nixon de ser cúmplice de milhares de assassinatos de civis na Guerra do Vietnã, sugerindo que ele, como encarregado de supervisionar as ações militares dos EUA, deveria ser julgado como o ex-presidente Milosevic pela Corte Internacional de Haia.

Menos centrado em sua atividade intelectual, "Últimas Palavras" [Editora Globo, 96 págs., R$ 24)  não deixa, porém, de revelar a angústia de Hitchens ao ouvir sua voz de barítono transformada num agudo guincho infantil — ou talvez suíno, como diz — quando o câncer se tornou mais agressivo. Hitchens sempre teve orgulho dela. Era com a voz (que lembrava a de Richard Burton) que conquistava o público em debates com outras figuras públicas — por exemplo, como o ator Charlton Heston, representante da direita americana, que sucumbiu logo à primeira pergunta de Hitchens, uma bem simples: que países fazem fronteira com o Iraque? Heston foi reprovado no quiz show. Hitchens, amigo de Salman Rushdie, Ian McEwan e Martin Amis, só não suportava mesmo uma coisa: a arrogância dos ignorantes, que parece crescer a cada dia.

Hitchens mostra em livro que enfrentou a morte com humor.
setembro de 2012

Christopher Hitchens.

Comentários

Anônimo disse…
Se
alguém sustenta que Deus concede
cânceres sob medida então deve estar
preparado para ter um filho com
leucemia.

Crhistopher hitchens.
Eliezer disse…
É, eu tambem partilho da crença que quem inventou Deus foi o homem e não ao contrario, é só ler o Velho Testamento Biblico, que ta claro lá!!
Anônimo disse…
Realmente, George Orwell teve muitos atritos com os comunistas na época e em seus próprios livros "A revolução dos bichos" e principalmente "1984" ele aponta o mal que o totalitarismo pode fazer as pessoas.
Tanto Orwell quanto Hitchens foram livres pensadores na medula da palavra, não tendo medo de causar polêmica com suas opiniões e feitos.
Por fim, o episódio dele com o cineasta cubano demonstra o quão falso são os ideais de liberdade que nos são vendidos pelos comunistas. Não que o capitalismo o tenha, na verdade nenhum dos dois os tem.

Winston Smith
Felipe... disse…
Ainda bem que ele escreveu esse diário, porque sabia que os crentes iriam querem converter ele.
Christopher Hitchens é cara. Tô louco para ler esse livro.
Anônimo disse…
Os tolos e os fanáticos estão sempre seguros de si mas os sábios são cheios de dúvidas.....
Anônimo disse…
os brasileiros têm mania de mudar o título do livro... por que não deixar como no original: "Mortality"?!?
Paulo Lopes disse…
Também acho que a editora deveria respeitar o nome original, "Mortalidade".

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola

O estudante já vinha sendo intimidado O estudante Ciel Vieira (foto), 17, de Miraí (MG), não se conformava com a atitude da professora de geografia Lila Jane de Paula de iniciar a aula com um pai-nosso. Um dia, ele se manteve em silêncio, o que levou a professora a dizer: “Jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”. Era um recado para ele. Na classe, todos sabem que ele é ateu. A escola se chama Santo  Antônio e é do ensino estadual de Minas. Miraí é uma cidade pequena. Tem cerca de 14 mil habitantes e fica a 300 km de Belo Horizonte. Quando houve outra aula, Ciel disse para a professora que ela estava desrespeitando a Constituição que determina a laicidade do Estado. Lila afirmou não existir nenhuma lei que a impeça de rezar, o que ela faz havia 25 anos e que não ia parar, mesmo se ele levasse um juiz à sala de aula. Na aula seguinte, Ciel chegou atrasado, quando a oração estava começando, e percebeu ele tinha sido incluído no pai-nosso. Aparentemen...

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Eleição de Haddad significará vitória contra religião, diz Chaui

Marilena Chaui criticou o apoio de Malafaia a Serra A seis dias das eleições do segundo turno, a filósofa e professora Marilena Chaui (foto), da USP, disse ontem (23) que a eleição em São Paulo do petista Fernando Haddad representará a vitória da “política contra a religião”. Na pesquisa mais recente do Datafolha sobre intenção de votos, divulgada no dia 19, Haddad estava com 49% contra 32% do tucano José Serra. Ao participar de um encontro de professores pró-Haddad, Chaui afirmou que o poder vem da política, e não da “escolha divina” de governantes. Ela criticou o apoio do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus do Rio, a Serra. Malafaia tem feito campanha para o tucano pelo fato de o Haddad, quando esteve no Ministério da Educação, foi o mentor do frustrado programa escolar de combate à homofobia, o chamado kit gay. Na campanha do primeiro turno, Haddad criticou a intromissão de pastores na política-partidária, mas agora ele tem procurado obter o apoio dos religi...

Conar cede a religiosos e veta Jesus de anúncio da Red Bull

Mostrar Jesus andando no rio é uma 'ofensa ' O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) se curvou diante da censura religiosa e suspendeu o anúncio da Red Bull que apresenta uma versão bem humorada de um dos milagres de Jesus. Ao analisar cerca de 200 reclamações, o órgão concluiu que o anúncio “desrespeita um objeto da fé religiosa”. O “desrespeito” foi Jesus ter dito que, na verdade, ele não andou sobre as águas, mas sobre as pedras que estavam no rio. Religiosos creem em milagres, mas impor essa crença a um anúncio é atentar contra a liberdade de expressão de uma sociedade constituída pela diversidade cultural e religiosa. O pior é que, pela decisão do Conar, a censura se estende aos futuros anúncios da Red Bull, os quais não poderão “seguir a mesma linha criativa”. Ou seja, a censura religiosa adotada pelo Conar “matou”, nesse caso, a criatividade antes mesmo de sua concepção — medida típica de regimes teocráticos. "Jesus...

Verdades absolutas da religião são incompatíveis com a política

por Marcelo Semer para o Terra Magazine   Dogmas religiosos não estão sob o  escrutínio popular No afã de defender Marco Feliciano das críticas recebidas por amplos setores da sociedade, o blogueiro de Veja, Reinaldo Azevedo, disse que era puro preconceito o fato de ele ser constantemente chamado de pastor. Infelizmente não é. Pastor Marco Feliciano é o nome regimental do deputado, como está inscrito na Câmara e com o qual disputou as últimas eleições. Há vários casos de candidatos que acrescentam a sua profissão como forma de maior identificação com o eleitorado, como o Professor Luizinho ou ainda a Juíza Denise Frossard. Marco Feliciano não está na mesma situação –sua evocação é um claro chamado para o ingresso da religião na política, que arrepia a quem quer que ainda guarde a esperança de manter intacta a noção de estado laico. A religião pode até ser um veículo para a celebração do bem comum, mas seu espaço é nitidamente diverso. Na democracia, ...

Caso Roger Abdelmassih

Violência contra a mulher Liminar concede transferência a Abelmassih para hospital penitenciário 23 de novembro de 2021  Justiça determina que o ex-médico Roger Abdelmassih retorne ao presídio 29 de julho de 2021 Justiça concede prisão domiciliar ao ex-médico condenado por 49 estupros   5 de maio de 2021 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico Abdelmassih 26 de fevereiro de 2021 Corte de Direitos Humanos vai julgar Brasil por omissão no caso de Abdelmassih 6 de janeiro de 2021 Detento ataca ex-médico Roger Abdelmassih em hospital penitenciário 21 de outubro de 2020 Tribunal determina que Abdelmassih volte a cumprir pena em prisão fechada 29 de agosto de 2020 Abdelmassih obtém prisão domicililar por causa do coronavírus 14 de abril de 2020 Vicente Abdelmassih entra na Justiça para penhorar bens de seu pai 20 de dezembro de 2019 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico estuprador 19 de novembro de 2019 Justiça cancela prisão domi...

1º Encontro Nacional de Ateus obtém adesão de 25 cidades

Lakatos: "Queremos mostrar a nossa cara " O 1º Encontro Nacional de Ateus será realizado no dia 12 de fevereiro com participantes de 25 cidades em 23 Estados (incluindo o Distrito Federal). A expectativa é de que ele reúna cerca de 5.000 pessoas. A mobilização para realizar o encontro – independentemente do resultado que possa ter – mostra que os ateus brasileiros, principalmente os mais jovens, começam a se articular em todo o país a partir da internet. A ideia da reunião surgiu no Facebook. Pelo IBGE, os ateus e agnósticos são 2% da população. O que representa 3,8 milhões de pessoas, se o censo de 2010, que apurou uma população de 190,7 milhões, mantiver esse índice. “Queremos mostrar a nossa cara”, disse Diego Lakatos (foto), 23, que é o vice-presidente da entidade organizadora do evento, a SR (Sociedade Racionalista). “Queremos mostrar que defendemos um Brasil laico, com direitos igualitários a todas as minorias, independentemente de crença ou da inexis...

Bolsonaro quer que hospitais identifiquem sangue de doador gay

Deputado disse que  gays  correm  mais risco de ter doenças O deputado Jair Bolsonaro (foto), do PP-RJ, informou que apresentará um projeto de lei que, se aprovado, obrigará os hospitais a identificar nas bolsas de sangue a opção sexual do doador, de modo que o paciente possa recusá-lo quando for de gay, se assim ele quiser. Ele justificou o projeto de lei com a informação do Ministério da Saúde segundo a qual os homossexuais correm o risco de contrair doenças de transmissíveis pelo sangue 17 vezes a mais do que os heterossexuais -- a mais grave delas é a síndrome causada pelo vírus HIV. Até o mês passado, homossexuais estavam proibidos de doar sangue. Agora, de acordo com novas regras do ministério, gays com parceiro estável ou que não tenham tido nenhuma relação sexual nos últimos doze meses estão liberados para a doação. Bolsonaro afirmou que os hospitais deixam “tudo misturado” no banco de sangue, não distinguindo os doadores homossexuais, o que, segun...

Jornalista que critica Estado laico desconhece história

de um leitor a propósito de Defensores do Estado laico são ‘intolerantes’, diz apresentadora As aulas de história passaram  bem longe de Rachel Sheherazade Que a apresentadora Rachel Sheherazade metida a Boris Casoy é péssima, isso já é sabido. Os comentários dela são, em sua gigantesca maioria, infelizes, sem nenhum conteúdo ou profundidade. E agora está se mostrando uma Malafaia de saia! Primeiro, é mentira que “laicistas” (como se fosse um grupo formado) perseguem o cristianismo. Não há uma única evidência disso. Ela alega isso para se fazer falsamente de vítima. Pura tática fundada na falácia ad terrorem . Segundo, as aulas de história passaram longe dela. Mas bem longe mesmo! O cristianismo não deu base nenhuma de respeito, liberdade, honestidade e justiça. Durante a idade média, era justamente o contrário que acontecia na maioria das vezes. A separação entre Estado e religião quem deu base para a maioria das liberdades, inclusive de jornalismo e profis...