por Massimo Faggioli
para o jornal L'Unità
Ainda não se sabe se o massacre de Newtown irá mudar a atitude do norte-americano médio com relação às armas: os anteriores, principalmente a partir de Columbine High School, em 1999, não conseguiram.
Nos Estados Unidos, contam-se mais de 15 mil mortes por armas de fogo a cada ano (os números variam), e ele é um país desde sempre acostumado à violência. As estatísticas dizem que, nos EUA, há menos violência do que nas décadas anteriores, e que nos país circulam mais armas, mas essas mesmas armas estão nas mãos de uma parte numericamente descendente de norte-americanos: uma minoria, mas cada vez mais armada.
Também por esse motivo, o caso de Newtown não é uma exceção à regra, mas exatamente a regra de uma América em que o fetiche pela arma (não só pistolas e fuzis, mas também, recentemente, arcos e flechas supertecnológicos) tende a se ocultar em camadas restritas da população.
Reduzir a gênese do atentado à mentalidade perturbada do agressor equivaleria a ignorar um dos elementos típicos do cenário moral norte-americano. No seu "Democracia na América", Alexis de Tocqueville descrevera a viagem à conquista do novo mundo como a aventura into the wild do homem norte-americano armado com "uma Bíblia, um machado e um jornal".
Desde então, o mundo norte-americano mudou muito, mas não se atenuou a radical diferença com o mundo europeu quanto à percepção moral da violência e da posse de armas. Mas, ao lado dessa diferença entre a mentalidade norte-americana e a do resto do mundo sobre as armas nas mãos da população civil, cresceu também a distância entre os dois extremos da moral norte-americana, fruto da polarização cultural do país: a pro-guns e anti-abortion de um lado, e a anti-guns e pro-abortion de outro.
De um lado, os liberais acreditam na necessidade de um maior controle sobre a circulação das armas no território dos EUA e na total liberdade de escolha das mulheres acerca do aborto; de outro, os ativistas antiabortistas estão entre os mais aficionados àquela interpretação à segunda emenda da Constituição norte-americana que dá aos cidadãos o direito de portar armas.
Mas a jurisprudência constitucional sobre a segunda alteração é afetada por um fundamentalismo jurídico que passou da Bíblia para a Constituição – também graças aos juízes católicos da Suprema Corte, hoje nada menos do que seis dentre nove.
Esquece-se de que aquela emenda pretendia dar aos cidadãos o direito de se armar não para se defender do crime ou das violências domésticas, mas sim dos abusos do governo em uma América desde sempre desconfiada do poder, especialmente o do governo federal.
Os Estados Unidos da América são um país excepcional com relação ao mundo inteiro quanto à intensidade do sentimento religioso e quanto ao fascínio pela violência e pela morte: as duas coisas estão ligadas. O apego à Bíblia e ao fuzil muitas vezes andam juntos: não é por acaso que o Moisés de Hollywood, Charlton Heston, tornou-se o mais famoso porta-voz da National Rifle Association, o lobby capaz de fazer eleger deputados e senadores, e capaz de impedir qualquer tentativa de aprovar leis sobre o controle das armas.
O presidente dos Estados Unidos, sumo pontífice da religião norte-americana, tomado pela emoção, é a imagem da impotência desse pontífice de ter razão não só do lobby da NRA, mas também daquela grande fatia de norte-americanos que veem no direito de portar armas a última linha de defesa simbólica contra o governo, a política, os intelectuais, os gays, os meios de comunicação, o cosmopolitismo.
Aquelas crianças mortas, as lágrimas dos seus pais e de todos os pais dos EUA são os sacrifícios humanos que a América deixa se impor pela religião do fuzil. Até agora, as Igrejas norte-americanas foram tímidas sobre a questão das armas, muito mais tímidas do que sobre outras questões pro-life: é hora de que o controle das armas comece a fazer parte da "cultura da vida" na América religiosa. Até então, a religião das armas continuará ceifando vítimas.
Massimo Faggioli é historiador italiano, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. A tradução do texto acimam foi feita por Moisés Sbardelotto para IHU Online.
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Fuzis americanos citam a Bíblia: 'Eu sou a luz do mundo'
janeiro de 2010
para o jornal L'Unità
Nos EUA o apego à Bíblia e o ao fuzil andam juntos |
Nos Estados Unidos, contam-se mais de 15 mil mortes por armas de fogo a cada ano (os números variam), e ele é um país desde sempre acostumado à violência. As estatísticas dizem que, nos EUA, há menos violência do que nas décadas anteriores, e que nos país circulam mais armas, mas essas mesmas armas estão nas mãos de uma parte numericamente descendente de norte-americanos: uma minoria, mas cada vez mais armada.
Também por esse motivo, o caso de Newtown não é uma exceção à regra, mas exatamente a regra de uma América em que o fetiche pela arma (não só pistolas e fuzis, mas também, recentemente, arcos e flechas supertecnológicos) tende a se ocultar em camadas restritas da população.
Reduzir a gênese do atentado à mentalidade perturbada do agressor equivaleria a ignorar um dos elementos típicos do cenário moral norte-americano. No seu "Democracia na América", Alexis de Tocqueville descrevera a viagem à conquista do novo mundo como a aventura into the wild do homem norte-americano armado com "uma Bíblia, um machado e um jornal".
Desde então, o mundo norte-americano mudou muito, mas não se atenuou a radical diferença com o mundo europeu quanto à percepção moral da violência e da posse de armas. Mas, ao lado dessa diferença entre a mentalidade norte-americana e a do resto do mundo sobre as armas nas mãos da população civil, cresceu também a distância entre os dois extremos da moral norte-americana, fruto da polarização cultural do país: a pro-guns e anti-abortion de um lado, e a anti-guns e pro-abortion de outro.
De um lado, os liberais acreditam na necessidade de um maior controle sobre a circulação das armas no território dos EUA e na total liberdade de escolha das mulheres acerca do aborto; de outro, os ativistas antiabortistas estão entre os mais aficionados àquela interpretação à segunda emenda da Constituição norte-americana que dá aos cidadãos o direito de portar armas.
Mas a jurisprudência constitucional sobre a segunda alteração é afetada por um fundamentalismo jurídico que passou da Bíblia para a Constituição – também graças aos juízes católicos da Suprema Corte, hoje nada menos do que seis dentre nove.
Esquece-se de que aquela emenda pretendia dar aos cidadãos o direito de se armar não para se defender do crime ou das violências domésticas, mas sim dos abusos do governo em uma América desde sempre desconfiada do poder, especialmente o do governo federal.
Os Estados Unidos da América são um país excepcional com relação ao mundo inteiro quanto à intensidade do sentimento religioso e quanto ao fascínio pela violência e pela morte: as duas coisas estão ligadas. O apego à Bíblia e ao fuzil muitas vezes andam juntos: não é por acaso que o Moisés de Hollywood, Charlton Heston, tornou-se o mais famoso porta-voz da National Rifle Association, o lobby capaz de fazer eleger deputados e senadores, e capaz de impedir qualquer tentativa de aprovar leis sobre o controle das armas.
O presidente dos Estados Unidos, sumo pontífice da religião norte-americana, tomado pela emoção, é a imagem da impotência desse pontífice de ter razão não só do lobby da NRA, mas também daquela grande fatia de norte-americanos que veem no direito de portar armas a última linha de defesa simbólica contra o governo, a política, os intelectuais, os gays, os meios de comunicação, o cosmopolitismo.
Aquelas crianças mortas, as lágrimas dos seus pais e de todos os pais dos EUA são os sacrifícios humanos que a América deixa se impor pela religião do fuzil. Até agora, as Igrejas norte-americanas foram tímidas sobre a questão das armas, muito mais tímidas do que sobre outras questões pro-life: é hora de que o controle das armas comece a fazer parte da "cultura da vida" na América religiosa. Até então, a religião das armas continuará ceifando vítimas.
Massimo Faggioli é historiador italiano, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. A tradução do texto acimam foi feita por Moisés Sbardelotto para IHU Online.
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Fuzis americanos citam a Bíblia: 'Eu sou a luz do mundo'
janeiro de 2010
Comentários
As armas são ferramentas de dissimulação. Com a nossa politica de abate do cidadão comum, apenas incentivamos a criminalidade , que ja não teme nenhuma represalia e age com total liberdade.
Como deixaram armas entrarem na escola ? Antes que se façam comparações primeiro repensem a nossa segurança publica, sabidamente ineficiente.
Agora compare o Japão com os EUA em relação a criminalidade, é obvio que um controle bem feito em relação as armas faz toda a diferença.
frequentemente me sinto abismado com o nível dos 'comentários' que vejo na sequência de suas notícias, matérias ou artigos. No nível do rancor, da violência verbal, da falta de bom senso, do sentimentalismo, textos vingativos, irracionais que refletem posições egocêntricas, retrógradas, mediocres.
Hoje, um senhor postou que o HIV mata mais que as armas. Mas que comparação canhestra, desumana, míope, rancorosa e preconceituosa.
Fico a me perguntar então qual a eficácia de sua linha de 'combate'. Sim, porque você também encara seu ofício na internet como uma linha de combate, não é? É preciso fazer as pessoas raciocinarem, refletirem, não acha?
frequentemente fico abismado com as declarações, a guisa de comentários, que encontro na sequência de suas notícias, artigos e matérias em geral. Textos chulos, raivosos, de baixo nível, egocêntricos, desumanos mesmo.
Hoje, por exemplo, a respeito da recente matança em mais um colégio nos EUA (ver artigo acima), um senhor de meia idade postou que o 'HIV mata mais que as armas'. Mas que comparação tacanha, vil, medíocre, sem bom senso, irracional, preconceituosa.
Fico então a me perguntar se não seria necessário um novo enfoque, que privilegie a humanidade latente em todos, sejamos de qualquer religião ou de nenhuma religião. É preciso estimular as pessoas a pensarem, refletirem. Não acha?
Não gosto de armas, mas não vejo na proibição do uso ou na sua restrição algo útil. Um exemplo é o Brasil, onde o porte de arma é complexo de ser obtido, além de caro, e a violência não é menor do que nos EUA (pelo contrário, é maior [1]).
Mas temos sim sérios problemas quanto à questão cultural. Algo que você possa usar para tirar a liberdade de outra pessoa implica em sensação de poder. E prazer pelo poder é algo que nenhum ser humano - em minha opinião - está imune.
Sou totalmente contra as campanhas de desarmamento no Brasil, por motivos já conhecidos, como o fato de a maioria absoluta dos crimes serem cometidos com o uso de armas não legalizadas e pelo fato de deixar a população cada vez mais a mercê daqueles que não ligam para a lei e têm acesso fácil a armamento. Aí fica na mão do Estado proteger as pessoas. Mas os quinhentos e tantos anos de Brasil estão aí para mostrar que o Estado é extremamente ineficiente nesta função. Creio que outros países tenham histórias semelhantes.
A questão do controle sobre as armas é complicado, principalmente em relação à cultura. Como a cultura é disseminada principalmente pelos meios de comunicação em massa, imaginem se o governo cria uma lei proibindo a veiculação de armas de fogo em filmes, revistas ou games, para impedir que isso influencie as pessoas? Seria uma afronta à liberdade de expressão ou não.
Ao meu ver uma melhoria poderia ser um controle maior sobre a venda e o registro de armas, mas sem burocracias que impedissem que as pessoas tivessem acesso à estes objetos. Da mesma forma como há o controle e registro da posse de veículos automotores. Neste caso, controlar não implica em impedir, já que qualquer um pode ter um carro, tendo passado por treinamento e pagando tributos sobre ele.
Não possuo armas de fogo, não gosto de armas de fogo, mas isto não me dá o direito de achar correto que quem precise ou queira não possa ter.
[1] http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/12/121218_armas_brasil_eua_violencia_mm.shtml
Ruggero
Assim como no Brasil, desde a lei do desarmamento? Caruê, em que País você vive? Com relação ao Japão, como é a lei sobre armas lá? Os japoneses são proibidos de ter armas?
A verdadeira causa está em um mundo, que vem sendo doutrinado a milênios, de que existe uma "moral absoluta" derivada de um ser imaginário...
Todas as atrocidades que aconteceram nos colégios americanos, foram provocadas por pessoas regidas por esta moral.
"Tirem todas as armas de fogo dos homens e eles se matarão a facadas.
Tirem todas as facas e eles se matarão a pedradas.
Tirem todas as pedras e eles se matarão a socos e pontapés.
Cortem os pés e as mãos e eles continuarão se matando a cabeçadas e dentadas.
Seria então a solução, arrancar suas as cabeças?"
Essa é pra pensar...
Um forte abraço
Ferreira
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=fdofmd7yj04
Ruggero
Ruggero
Existe uma tribo em que quando os homens tem algum desentendimento suas mulheres escondem as facas para que não haja morte no grupo.
Esta é para pensar...
A LEI do desarmamento não foi ganha, a industria armamentista convenceu o povo de que devemos ter este direito. Embora culturalmente não tenhamos uma população armada, esta população desarmada escolheu assim, a contra gosto do governo que agora busca meios alternativos para retirar as armas das ruas. Como campanhas na qual vc entrega sua arma ilegal sem qualquer represaria.
Vemos aqui, assim como nas ruas, a maioria com sentimentos revanchistas, egoístas, etc. Veja como reagem quando é postada uma matéria sobre a prisão de acusados de crimes sexuais: A maioria manifesta desejo de revanche atroz, esperando que o acusado seja barbarizado na prisão. Também fazem ameaças a quem defende relacionamentos amorosos entre adultos e menores, agindo iguaizinhos aos puritanos religiosos mais histéricos.
Nesta matéria, vemos claramente que os leitores não perceberam que a crítica é voltada à cultura estadunidense, ao tipo de valores morais.
Enfim, isso demonstra que em países como USA e BRA, mesmo ateus e pessoas sem religião estão profundamente influenciados por princípios e valores fundamentalmente religiosos.
Não há esperança de mudança, nem a curto e nem a médio prazo. Lamentavelmente...
Sr. Caruê; no japão existe pena de morte e até mesmo o castigo com varas. Não se esqueça que não estamos falando de um Pais "catequizado".
Com relação às tribos indígenas, seria maravilhoso que pudéssemos viver tal como eles. Em sua opinião isto é realmente possível? Como poderíamos transformar isso em realidade?
Na questão do desarmamento; como vivemos em um País muuuito atrasado; creio que temos penas brandas demais para os criminosos; principalmente aqueles ditos "incorrigíveis"; daí concordo com o Sr. que o Japão seria um ótimo exemplo a ser seguido - de novo: lá tem pena de morte.
Em minha singela e humilde opinião, dificultar o acesso as armas ao cidadão de bem; ao mesmo tempo em que se criam mais e mais mecanismos jurídicos para "facilitar" a vida dos criminosos, é mais perfeito exemplo de como induzir/incentivar indiretamente o crime. Isso é apenas mais um dos absurdos que infelizmente ocorrem em nosso País.
Bom, essa é apenas minha opinião, respeito quem pensa diferente e até aprecio ouvir o contrário.
Abraços a todos
Ferreira
Quanto aos "abortistas", vale lembrar que independente dos motivos para abortar, não se trata de matar uma criança, mas esperar que os hipócritas reconheçam isso seria utópico demais!
Ademais, diante do exposto no artigo principal, tal frase retrata perfeitamente o sentimento dos "pró-vida":
"Vocês, teístas, já preferem que a criança nasça e cresça para que vocês matem."
#FATO
Quantos paradoxos, não?
O meu objetivo ao citar as tribos indígenas é dificultar o acesso as armas para homens tomados por uma insanidade causem um dano menor. Este homem louco provavelmente teria feito menos vitimas com uma arma de menor poder.
Precisamos sobretudo de um judiciário rápido e forte o bastante para punir os criminosos de colarinho branco, os peixes grandes.
...Mas a jurisprudência constitucional sobre a segunda alteração é afetada por um fundamentalismo jurídico que passou da Bíblia para a Constituição – também graças aos juízes católicos da Suprema Corte, hoje nada menos do que seis dentre nove...
Obrigado
Antônio Ferreira
Leia mais em http://www.paulopes.com.br/2012/12/igrejas-dos-eua-tem-sido-timidas-em-combater-apego-as-armas.html#ixzz2FW1fa4MX
Paulopes informa que reprodução deste texto só poderá ser feita com o CRÉDITO e LINK da origem.
Ruggero
E agora eu chego ao ponto que tem a ver com o post em questão: se as pessoas procurassem mais se inteirar das leis, dos direitos e deveres de cada um, ao invés de perder tempo em igrejas, provavelmente votariam em políticos preparados para um mandato que visasse a um controle eficiente e severo de armas, sem ficar fazendo as vontade$ da indústria bélica.
Basta de as pessoas deixarem as vidas de seus filhos sujeitas à 'vontade' de um mito grotesco! Essa matança nos EUA e outras partes do mundo só acabará quando pararem de pedir proteção e se tornarem, eles, cidadãos, agentes protetores.
Ruggero
Armas foram feitas para MATAR sim, mas isso não quer dizer q é sua unica utilidade.
Pegamos o kendo(estilo de luta japones que utiliza espadas), seu principal objetivo era ensinar a se matar com uma espada, entretanto passou a ser uma forma de luta marcial para se desenvolver o corpo e a mente!
Arma de fogo é lazer para muitas pessoas, fazendo bem para o corpo e mente tambem!
O problema não é o porte de armas, e sim a pessoa que usa a arma, alguns usarão sua arma somente como uma ferramente para se vingar de algo e outros como lazer.
Mtos falam sobre acidentes que podem ocorrer, mas acidentes simplismente ocorrem, seu filho pode morrer de escurregar e bater a cabeca( e isso acontece mto mais vezes do que filhos q atiram no amigo).
O problema nao é ter armas, e sim para o que usa-las!
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