Centenas de protestantes foram mortos pela nobreza católica francesa, no Massacre da Noite de São Bartolomeu, em 1572 |
por Eduardo Szklarz
para SuperinteressanteAs três grandes religiões monoteístas — cristianismo, judaísmo e islamismo — pregam a paz, a tolerância, a compaixão e o amor ao próximo, mas deixaram suas marcas em guerras e banhos de sangue ao longo da história. Para alguns pesquisadores, uma explicação estaria na própria lógica do monoteísmo: se apenas o "meu" Deus é verdadeiro, os "outros" certamente são falsos — e seus seguidores, infiéis. "As religiões são diferentes, mas todas elas exigem a mesma exclusividade", diz o historiador britânico Christopher Catherwood, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
Foi assim com os judeus, os primeiros monoteístas, que reivindicaram uma aliança especial com Deus há 4 mil anos. Sua noção de "povo eleito" foi atacada por João Crisóstomo e outros patriarcas da Igreja Católica, que no século 4 qualificaram os seguidores do judaísmo de filhos do Diabo e inimigos da raça humana. Em 325, o 1º Concílio de Nicéia culpou-os pela morte de Jesus — uma acusação só retirada em 1965, no Concílio Vaticano 2º, e que insuflou 2 mil anos de injúrias e matanças. Durante a Inquisição, por exemplo, milhares de judeus foram colocados na fogueira; outros tantos se converteram em massa à fé cristã, já que o batismo era a única chance de salvação.
No século 7, foi a vez de o islã tentar impor a primazia de seu Deus sobre os demais. Os exércitos de Maomé partiram da Arábia para invadir o Oriente Médio, o norte da África e a Espanha. "O objetivo da expansão não era tanto econômico ou político, como no imperialismo ocidental do século 19, mas a conquista em nome da fé, que eles acreditavam ser a verdadeira", diz Catherwood. Reconhecidos como "povos do livro", judeus e cristãos puderam manter sua fé desde que pagassem altos tributos — e, dependendo do governo em exercício, sofriam perseguições.
Assim, quando o papa Urbano 2º lançou as cruzadas para tentar recuperar a Terra Santa, em 1096, os espanhóis já vinham lutando contra os muçulmanos havia quase 400 anos. Urbano prometeu apagar para sempre os pecados de quem embarcasse na empreitada, que fracassou depois de transformar Jerusalém em um cemitério a céu aberto. "Cabeças, mãos e pés se amontoavam nas ruas", escreveu Raymond de Aguiles, um dos cruzados.
Em 1215, o 4º Concílio de Latrão proibiu os judeus de exercer funções públicas e os obrigou a usar um distintivo de identificação sobre as roupas — medidas que seriam reeditadas no século 20 por Adolf Hitler e o regime nazista. É certo que o Holocausto foi executado no auge da sociedade moderna e racional. Mas a força motriz do genocídio — o antissemitismo — se nutriu dos mitos religiosos arraigados durante séculos na Europa.
Cristãos e islâmicos pregam a paz, mas promovem matança entre eles |
Cristãos ortodoxos, os sérvios até hoje celebram o ano de 1389 — quando Lazar, chefe das tropas sérvias, morreu enfrentando os muçulmanos e virou mártir. O líder sérvio Slobodan Milosevic invocou esse sacrifício em seus discursos de 1989, acendendo a chama dos confrontos que levariam a uma matança desenfreada.
Nas palavras do historiador americano Mark Juergensmeyer, da Universidade da Califórnia, a linguagem religiosa tem o poder de "trasladar o conflito humano a uma dimensão cósmica". Traduzindo: no dia-a-dia, não matamos gente; mas, se Deus ordena, podemos. Nesse caso, a violência não seria um ato selvagem, mas o cumprimento da vontade divina.
O século 20 viu crescer uma devoção militante nas principais religiões, chamada popularmente de fundamentalismo. "Alguns fundamentalistas não hesitam em fuzilar devotos numa mesquita ou matar médicos que fazem aborto. A maioria não é violenta, mas rejeita conquistas da modernidade, como a democracia, o pluralismo, a tolerância religiosa e a separação entre religião e Estado", diz a pesquisadora inglesa Karen Armstrong, autora do livro "Em Nome de Deus".
Para esses radicais, a nossa sociedade racional e pecadora tem levado a uma crise moral. "O fracasso da modernidade seria causado pela ausência de Deus", diz o sociólogo francês Jean-Louis Schlegel. Essa reação ocorre não apenas nas religiões monoteístas mas também no hinduísmo e no budismo.
Apesar das enormes diferenças entre os grupos fundamentalistas, eles geralmente buscam reconduzir sua religião ao caminho "puro e verdadeiro" de seus ancestrais. Por isso, os alvos principais são os seguidores moderados de sua própria crença. Foi o caso dos protestantes americanos que, no início do século 20, quiseram se distinguir dos protestantes liberais e se denominaram "fundamentalistas" — daí o nome. Eles queriam voltar aos fundamentos da tradição cristã, o que incluía interpretar a Bíblia da forma mais literal possível e parar de ensinar a Teoria da Evolução nas escolas — uma campanha que ainda divide os EUA.
Dentro do judaísmo foi criado o grupo ultraortodoxo Naturei Karta, que é contra a existência do moderno Estado de Israel. Para esse grupo, o regime israelense é herético porque sua ideologia fundadora — o sionismo — rejeitaria Deus e a Torá (o livro sagrado). Rabinos do Naturei Karta apoiam o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, que prega a destruição de Israel.
Já o fundamentalismo islâmico vem do grupo Irmandade Muçulmana, fundado em 1928 no Egito. Para ele, o islã entrou em decadência ao adotar o modo de vida ocidental. Portanto, é preciso derrubar os governos moderados e substituí-los por regimes baseados na sharia, a lei islâmica. São essas ideias que inspiram terroristas como os da Al Qaeda.
Mas o radical islâmico que joga um avião contra um prédio não acredita no mesmo Deus que um muçulmano moderado? Como o Deus de um pode condenar esse crime, se o Deus do outro promete transformá-lo em herói?
Aí é que está: o Deus é o mesmo, mas as interpretações de sua mensagem são distintas. O suicídio, por exemplo, sempre foi pecado na tradição islâmica. Hoje, no entanto, é interpretado como martírio pelos fundamentalistas — e usado como arma por terroristas.
Judaísmo, cristianismo e islamismo têm o mesmo deus, mas não se entendem |
Pomos da discórdia
Exemplos de conflitos de fundo religioso
Judeus x Muçulmanos
Onde: Oriente Médio
Quando: Em curso desde 1947
Resultado: Mais de 7,5 mil mortos de 2000 para cá
O conflito começou como disputa territorial por causa da criação do Estado de Israel, mas assumiu caráter religioso. Hoje, fundamentalistas judeus e islâmicos são o maior entrave para a paz. Um não aceita a existência do outro e quer varrer o oponente do mapa para sempre.
Hindus x Muçulmanos
Onde: Índia e Paquistão
Quando: Fim da década de 1950
Resultado: 500 mil mortos
A violência eclodiu com o fim do domínio colonial britânico sobre a Índia, em 1947. Os muçulmanos se negaram a integrar um país com os hindus, foram à guerra e criaram o Paquistão. Outros dois conflitos já ocorreram, por causa da disputa pela região da Caxemira.
Católicos x Protestantes
Onde: Irlanda do Norte
Quando: Décadas de 1960 a 1980
Resultado: Cerca de quatro mil mortos
A rixa histórica entre cristãos irlandeses descambou para a violência embalada por um componente político: de um lado, a maioria protestante (chamada unionista) quer continuar ligada ao Reino Unido; do outro, a minoria católica (nacionalista) almeja pôr fim ao domínio britânico.
Cristãos x Muçulmanos
Onde: Bálcãs
Quando: Décadas de 1980 e 1990
Resultado: Mais de 100 mil mortos
Durante décadas, o ditador comunista Josip Tito manteve as províncias da Iugoslávia unidas à força. Com sua morte, em 1980, o nacionalismo religioso explodiu numa espécie de luta de todos contra todos, incluindo sérvios (ortodoxos), bósnios (muçulmanos) e croatas (católicos).
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