por Cynara Menezes
para CartaCapital
Aos 66 anos, Yvonne Bezerra de Mello tem couro duro, acostumada que está às reações mais virulentas ao seu trabalho social e à sua opção de vida. Enquanto seguíamos para o Complexo da Maré, ela não parecia abalada, assustada ou mesmo preocupada com os ataques e ameaças sofridos desde o segundo em que postou nas redes sociais a foto de um negro de 15 anos espancado por justiceiros, orelha parcialmente arrancada, nu e acorrentado com uma trava de bicicleta. A rotina continua a mesma. Todo dia ela percorre o mesmo trajeto para dar aulas no projeto criado na Maré há 17 anos. “Faço e farei com o carro da traseira de um ônibus no trânsito carregado da capital fluminense. Dito isso, o debate sobre o assunto tem servido muito mais a mistificações do que ao esclarecimento das ideias, embora não faltem informações a respeito (especialistas de distintas filiações ideológicas e diferentes nações produziram nos últimos anos diagnósticos interessantes sobre os impostos brasileiros). Os dados, em boa medida, contradizem as versões dominantes sobre onde realmente se localizam as distorções.
No início do mês, a também escultora e linguista dormia em seu apartamento no bairro do Flamengo quando foi alertada pelo porteiro sobre a cena grotesca, a poucos metros do prédio em que mora. “Quando vi aquilo, pensei logo em um quadro de Debret”, descreve. Os bombeiros serraram a corrente que prendia o jovem ao poste, e uma ambulância o levou ao hospital. Yvone Mello achou que sua missão terminara ali. Ao denunciar a violência na internet, surpreendeu-se, no entanto, com as reações enfurecidas à ação humanitária. Em poucos minutos, um enxame de reacionários despejou aquele tipo de frase a respeito das quais é difícil definir o que é pior: se a indigência mental ou a pobreza vocabular. “Leva para casa e cuida desse anjinho!”, “Você defende? Adota! Dá de comer, beber, banho, água, luz... Hipócrita!”, além da infalível “bandido bom é bandido morto”.
A ativista recebeu até ameaças à sua integridade física. “Seu eu encontrar você na rua, cuspo, chuto, te amarro num poste” — coisas desse tipo, conta Yvone.
Em um primeiro momento, fraquejou e chegou a anunciar o abandono das redes sociais, dada a virulência dos ataques. “Depois me dei conta de que as redes são o retrato da sociedade em que vivemos. Tem de tudo.”
Yvonne Mello integra o Brasil que tenta resistir a outro Brasil, mais influente e cada vez mais alimentado pelo ódio. Ela é o avesso de outra personagem notória desse enredo, a jornalista e apresentadora do SBT Rachel Sheherazade, de 40 anos. Disposta a aproveitar os 15 minutos de fama, saiu em defesa dos justiceiros. “A atitude dos vingadores é até compreensível”, disparou. “O contra-ataque aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva. Aos defensores dos direitos humanos que se apiedaram do marginalzinho preso no poste, lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido.”
O comentário sobre o “marginalzinho” não foge ao padrão de Sheherazade, “descoberta” por Silvio Santos em uma retransmissora do SBT na Paraíba, mas o clima de ódio instalado no Brasil, cujo objetivo e inviabilizar qualquer avanço social, amplificou suas declarações. Em reação, o Sindicato dos Jornalistas repudiou sua declaração por violar o código de ética da profissão e o PSOL decidiu encaminhar ao Ministério Público por “apologia do crime”. Acuada, a apresentadora escorou-se na velha defesa da “liberdade de expressão” e deu várias entrevistas para se justificar. “Sou uma pessoa do bem, estou do lado do bem. Defendo as pessoas do bem que foram abandonada à própria sorte”, afirmou, da bancada do jornal.
Mas não se deixe enganar. Sheherazade foi a grande vencedora do embate. A horda que saqueia e depreda o território da opinião pública e confunde ação criminosa com liberdade de expressão saiu em peso em sua defesa. “Também ficaram do seu lado o deputado Marco Feliciano e Silas Malafaia, o “filósofo” Olavo de Carvalho e Paulo Maluf, todas as figuras altamente qualificadas para encarnar a reação.
Algumas das “pessoas do bem” defendidas por Sheherazade e responsáveis pelos ataques aos “marginalzinho” não se mostraram, porém, tão do bem. Os algozes, soube-depois, integram uma turma de valentões autointitulada “Justiceiros do Flamengo”, dedicada a amedrontar e espancar qualquer um que julguem suspeito. Um dos suspeitos possui longa ficha criminal por furto, ameaça, lesão corporal e até estupro. Foram atuados por corrupção de menores e liberados.
“E a apresentadora será punida pela violência? Duvido”, pergunta e responde ao mesmo tempo Yvonne Mello, enquanto cruzamos a Linha Vermelha. “Este é o problema da impunidade. No Brasil, todo mundo acha que pode fazer tudo, pois nada acontece.”
Não foi a primeira vez que a educadora pulou da cama para socorrer garotos em situação de rua. Em julho de 1998, Yvone Mello denunciou a célebre Chacina da Candelária, quando oito jovens sem-teto foram assassinados por policiais militares. Naquela época, ela fazia uma experiência de “escola sem portas nem janelas” com 200 crianças do Centro do Rio, e tinha dado fichas telefônicas aos guris para que entrassem em contato em caso de urgência.
Acordou no meio da noite com o toque do telefone. Do outro lado, uma voz desesperada: “Tia, mataram nós todos”. Ninguém foi punido. Sete anos depois, um dos sobreviventes, Sandro Barbosa do Nascimento, sequestraria um ônibus na tragédia carioca do “Ônibus 174”. Durante as negociações do sequestro, que resultou na morte de uma refém e na de Nascimento (em circunstâncias não esclarecidas, por asfixia, dentro da viatura policial), ele chegou a gritar: “Chame a tia Yvonne”.
“Eu só soube depois, na época ninguém tinha celular. Fico pensando se poderia ter evitado aquelas mortes”, lamenta. A educadora não sabe se existem outros sobreviventes. “Acho que morreram todos.”
Nascida Rossigneux, Yvonne Mello foi criada pela mãe, funcionária pública, em um pequeno apartamento no Leme, onde dividia o quarto com o irmão. O pai, comandante da Marinha, “pouco aparecia”. Credita à mãe, ainda viva, o interesse pelas crianças abandonadas. “Ela levava órfãos para passar o fim de semana com a gente. Esse convívio, saber que tem pessoas com uma vida mais difícil do que a nossa, é muito importante.”
Casou-se pela primeira vez quando estudava Filologia e Linguística na Sorbonne, e foi morar na Suécia, onde conheceu a social-democracia. “Eu me defino como social-democrata e parlamentarista.” De volta ao Brasil, em 1989, começou o seu projeto de educar meninos de rua e, em 1996, chegou a se candidatar vereadora pelo PP, o atual partido de Bolsanaro e Maluf, mas não foi eleita. “Foi bom para saber como funciona o sistema e ver que não é a minha praia. Não gostei de ter de dar coisas para conseguir votos, ter de fazer churrasco em comunidade para ser eleita.”
Viúva de Álvaro Bezerra de Mello, vice-presidente da rede de hotéis Othon, seu segundo marido, desde 1997 se dedica ao projeto Uerê e ao trabalho de capacitar professores da rede pública em 20 favelas a aplicar sua pedagogia para crianças em zonas de conflito. A garotada do Maré vive em uma região disputada por duas facções rivais, o Comando Vermelho e o Terceiro Comando. O líder do pedaço é o traficante chamado de “Menor P” e, quando chegamos ao lugar, às 8 da manhã, adolescentes armados vendiam drogas nas proximidades.
Yvonne Mello conta nunca ter tido problemas com traficantes. “Não me meto. O problema do tráfico é da Segurança Pública, o meu é educar”, explica. “Quando o bicho pega e tem tiroteio, a gente manda fechar [a escola]”.
Na escola de instalações simples, mas toda colorida, em contraste com os tijolos sem pintura das casas da favela, os alunos estudam até o 9º ano como uma espécie de reforço à escola tradicional. Na metodologia criada pela ativista, ouvir é mais importante do que anotar. No início das aulas, lê e comenta as notícias do dia com a turma. “As escolas municipais são cinza e as salas têm 50 alunos, isso não pode. Aqui temos no máximo 30.”
Inspirada pela experiência da infância, a educadora defende o fim das escolas particulares para promover o convívio entre classes sociais. “Mudar o status quo pressupõe estreitamento de classes. Meu sonho é uma escola pública obrigatória para todos, para que as classes sociais se conheçam. Aqui, quando alguém tem um pouco mais de dinheiro, tira o filho da escola pública para colocar na particular”, critica. “A maior parte só aceita filantropia. Ou você faz caridade e é santa ou luta contra o status quo é maldita.”
Pergunto a Yvonne qual seria, em sua opinião, a solução para o problema da violência e para os meninos de rua, qua acredita terem aumentado desde a Chacina da Candelária. “O que tem de ser feito é evitar que eles cheguem à rua, pois quando vão é muito difícil recuperá-los. Infelizmente, no Brasil não existe política direcionada para a infância e a adolescência.”
Corte rápido para o artigo de Sheherazade na Folha de S.Paulo de terça-feira 11. A jornalista chama o Estatuto da Criança e do Adolescente de “Estatuto da Impunidade” e defende a tese de que a criminalidade não é consequência da pobreza, mas do “coitadismo” e da legislação permissiva. Aproveita para atacar o projeto de lei para acabar com os “autos de resistência”, um modo de as polícias esconderem os assassinatos a sangue-frio, principalmente de jovens negros na periferia. Para a apresentadora do SBT e quem hierarquiza seres humanos, o Estado não é responsável pelos menores de rua e deveria abandoná-los à própria sorte. Ou melhor, tirá-los de circulação.
Os 20 anos entre a Chacina da Candelária e o caso do jovem preso ao poste expõem a decadência civilizatória do país. Embora provavelmente uma porção relevante da sociedade apoiasse a eliminação de pretos, pobres e favelados, esse tipo de opinião ficava restrito a círculos de amigos. A Chacina da Candelária provocou uma comoção nacional e internacional e colocou do mesmo lado diversas camadas sociais.
Desta vez parece haver uma ruptura, “povo contra povo”, como diz Yvonne Mello. Antes protegida e aplaudida, a educadora agora sofre ataques. Antes raros, personagens como Sheherazade se sentem livres para defender crimas, sob aplauso de quem parece abominar a estar disposto a evitar qualquer possibilidade de igualdade, mesmo se ela não passar de um sonho ainda distante.
“Esses momentos de percepção coletiva do temor ou insegurança favorecem o aparecimento de justiceiros. Isso é perigossímos”, adverte a antropóloga e doutora em Estudos da Segurança Jaqueline Muniz, do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro. “O medo é péssimo conselheiro e pode levar a cruzadas moralistas que prometem o impossível: a justiça em tempo real, imediata, necessariamente violadora de direitos, extrajudicial, autoritária. Muitos não percebem que o “el vingador” de hoje vai se tornar o “el tirano” de amanhã, cobrando pela suposta proteção. O justiceiro primeiro será seu pit Bull, depois vai querer seu sócio e por último seu patrão.”
A principal razão para o aumento dos roubos, diz a pesquisadora, é a falta de efetivo nas ruas, com o contingente de policiais excessivamente voltado para as UPPs.
Para Jaqueline Muniz, a apresentadora Sheherazade piora o quadro ao promover justiçamentos, porque estimula o medo na população, um clima de “salve-se quem puder”, em vez de esclarecer. “A jornalista não se comportou como uma formadora de opinião, mas como o arauto de uma cruzada moralista. Ela não é despachante da vontade coletiva.”
Por se tratar de uma concessão pública, incitar o ódio seria razão para uma emissora de tevê perder os direitos de transmissão, mas o SBT se antecipou em nota e se isentou de responsabilidade pelas opiniões de seus âncoras.
Segundo especialistas, o limite entre o exercício da liberdade de expressão e a propagação do discurso de ódio é tênue, pois espreme entre dois preceitos constitucionais: a própria liberdade de expressão e o direito à diversidade. “É um desafio muito grande, e a definição acaba sendo dada apenas quando o conflito se apresenta na Justiça”, diz Rosane Leal, professora de Direito da Universidade Federal de Santa Maria e autora de vários estudos sobre a escalada do discurso de ódio nas redes sociais desde a época do hoje esquecido Orkut.
A internet, diz a professora, é um terreno fértil para a proliferação dese discurso, pois, ao contrário de jornais, revistas e tevês, a vítima ou o Ministério Público não pode pedir para suprimir o conteúdo. “Na internet é impossível. Quando se retira de um site, aparece em outro. Ou seja, maximiza a violação e a perpetua. Além disso, o anonimato confere uma espécie de salvo-conduto para se falar qualquer coisa”, avalia Rosane Leal.
A internet amplificou os males, é fato. Mas o Brasil continua a ver o mesmo dilema. Precisa escolher entre Sheherazade e Yvonne Mello. Barbárie e civilização.
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Sheherazade é primária selvagem, diz jornalista
fevereiro de 2014
para CartaCapital
Revista diz que justiceiros de Sheherazade têm de ser combatidos pela solidariedade de Yvonne |
No início do mês, a também escultora e linguista dormia em seu apartamento no bairro do Flamengo quando foi alertada pelo porteiro sobre a cena grotesca, a poucos metros do prédio em que mora. “Quando vi aquilo, pensei logo em um quadro de Debret”, descreve. Os bombeiros serraram a corrente que prendia o jovem ao poste, e uma ambulância o levou ao hospital. Yvone Mello achou que sua missão terminara ali. Ao denunciar a violência na internet, surpreendeu-se, no entanto, com as reações enfurecidas à ação humanitária. Em poucos minutos, um enxame de reacionários despejou aquele tipo de frase a respeito das quais é difícil definir o que é pior: se a indigência mental ou a pobreza vocabular. “Leva para casa e cuida desse anjinho!”, “Você defende? Adota! Dá de comer, beber, banho, água, luz... Hipócrita!”, além da infalível “bandido bom é bandido morto”.
A ativista recebeu até ameaças à sua integridade física. “Seu eu encontrar você na rua, cuspo, chuto, te amarro num poste” — coisas desse tipo, conta Yvone.
Em um primeiro momento, fraquejou e chegou a anunciar o abandono das redes sociais, dada a virulência dos ataques. “Depois me dei conta de que as redes são o retrato da sociedade em que vivemos. Tem de tudo.”
Yvonne disse que violência contra negro a fez lembrar deum quadro de Debret |
O comentário sobre o “marginalzinho” não foge ao padrão de Sheherazade, “descoberta” por Silvio Santos em uma retransmissora do SBT na Paraíba, mas o clima de ódio instalado no Brasil, cujo objetivo e inviabilizar qualquer avanço social, amplificou suas declarações. Em reação, o Sindicato dos Jornalistas repudiou sua declaração por violar o código de ética da profissão e o PSOL decidiu encaminhar ao Ministério Público por “apologia do crime”. Acuada, a apresentadora escorou-se na velha defesa da “liberdade de expressão” e deu várias entrevistas para se justificar. “Sou uma pessoa do bem, estou do lado do bem. Defendo as pessoas do bem que foram abandonada à própria sorte”, afirmou, da bancada do jornal.
Mas não se deixe enganar. Sheherazade foi a grande vencedora do embate. A horda que saqueia e depreda o território da opinião pública e confunde ação criminosa com liberdade de expressão saiu em peso em sua defesa. “Também ficaram do seu lado o deputado Marco Feliciano e Silas Malafaia, o “filósofo” Olavo de Carvalho e Paulo Maluf, todas as figuras altamente qualificadas para encarnar a reação.
Algumas das “pessoas do bem” defendidas por Sheherazade e responsáveis pelos ataques aos “marginalzinho” não se mostraram, porém, tão do bem. Os algozes, soube-depois, integram uma turma de valentões autointitulada “Justiceiros do Flamengo”, dedicada a amedrontar e espancar qualquer um que julguem suspeito. Um dos suspeitos possui longa ficha criminal por furto, ameaça, lesão corporal e até estupro. Foram atuados por corrupção de menores e liberados.
“E a apresentadora será punida pela violência? Duvido”, pergunta e responde ao mesmo tempo Yvonne Mello, enquanto cruzamos a Linha Vermelha. “Este é o problema da impunidade. No Brasil, todo mundo acha que pode fazer tudo, pois nada acontece.”
Não foi a primeira vez que a educadora pulou da cama para socorrer garotos em situação de rua. Em julho de 1998, Yvone Mello denunciou a célebre Chacina da Candelária, quando oito jovens sem-teto foram assassinados por policiais militares. Naquela época, ela fazia uma experiência de “escola sem portas nem janelas” com 200 crianças do Centro do Rio, e tinha dado fichas telefônicas aos guris para que entrassem em contato em caso de urgência.
Acordou no meio da noite com o toque do telefone. Do outro lado, uma voz desesperada: “Tia, mataram nós todos”. Ninguém foi punido. Sete anos depois, um dos sobreviventes, Sandro Barbosa do Nascimento, sequestraria um ônibus na tragédia carioca do “Ônibus 174”. Durante as negociações do sequestro, que resultou na morte de uma refém e na de Nascimento (em circunstâncias não esclarecidas, por asfixia, dentro da viatura policial), ele chegou a gritar: “Chame a tia Yvonne”.
“Eu só soube depois, na época ninguém tinha celular. Fico pensando se poderia ter evitado aquelas mortes”, lamenta. A educadora não sabe se existem outros sobreviventes. “Acho que morreram todos.”
Nascida Rossigneux, Yvonne Mello foi criada pela mãe, funcionária pública, em um pequeno apartamento no Leme, onde dividia o quarto com o irmão. O pai, comandante da Marinha, “pouco aparecia”. Credita à mãe, ainda viva, o interesse pelas crianças abandonadas. “Ela levava órfãos para passar o fim de semana com a gente. Esse convívio, saber que tem pessoas com uma vida mais difícil do que a nossa, é muito importante.”
Casou-se pela primeira vez quando estudava Filologia e Linguística na Sorbonne, e foi morar na Suécia, onde conheceu a social-democracia. “Eu me defino como social-democrata e parlamentarista.” De volta ao Brasil, em 1989, começou o seu projeto de educar meninos de rua e, em 1996, chegou a se candidatar vereadora pelo PP, o atual partido de Bolsanaro e Maluf, mas não foi eleita. “Foi bom para saber como funciona o sistema e ver que não é a minha praia. Não gostei de ter de dar coisas para conseguir votos, ter de fazer churrasco em comunidade para ser eleita.”
Yvonne se dedica à educação de meninos de rua |
Yvonne Mello conta nunca ter tido problemas com traficantes. “Não me meto. O problema do tráfico é da Segurança Pública, o meu é educar”, explica. “Quando o bicho pega e tem tiroteio, a gente manda fechar [a escola]”.
Na escola de instalações simples, mas toda colorida, em contraste com os tijolos sem pintura das casas da favela, os alunos estudam até o 9º ano como uma espécie de reforço à escola tradicional. Na metodologia criada pela ativista, ouvir é mais importante do que anotar. No início das aulas, lê e comenta as notícias do dia com a turma. “As escolas municipais são cinza e as salas têm 50 alunos, isso não pode. Aqui temos no máximo 30.”
Inspirada pela experiência da infância, a educadora defende o fim das escolas particulares para promover o convívio entre classes sociais. “Mudar o status quo pressupõe estreitamento de classes. Meu sonho é uma escola pública obrigatória para todos, para que as classes sociais se conheçam. Aqui, quando alguém tem um pouco mais de dinheiro, tira o filho da escola pública para colocar na particular”, critica. “A maior parte só aceita filantropia. Ou você faz caridade e é santa ou luta contra o status quo é maldita.”
Pergunto a Yvonne qual seria, em sua opinião, a solução para o problema da violência e para os meninos de rua, qua acredita terem aumentado desde a Chacina da Candelária. “O que tem de ser feito é evitar que eles cheguem à rua, pois quando vão é muito difícil recuperá-los. Infelizmente, no Brasil não existe política direcionada para a infância e a adolescência.”
Corte rápido para o artigo de Sheherazade na Folha de S.Paulo de terça-feira 11. A jornalista chama o Estatuto da Criança e do Adolescente de “Estatuto da Impunidade” e defende a tese de que a criminalidade não é consequência da pobreza, mas do “coitadismo” e da legislação permissiva. Aproveita para atacar o projeto de lei para acabar com os “autos de resistência”, um modo de as polícias esconderem os assassinatos a sangue-frio, principalmente de jovens negros na periferia. Para a apresentadora do SBT e quem hierarquiza seres humanos, o Estado não é responsável pelos menores de rua e deveria abandoná-los à própria sorte. Ou melhor, tirá-los de circulação.
Os 20 anos entre a Chacina da Candelária e o caso do jovem preso ao poste expõem a decadência civilizatória do país. Embora provavelmente uma porção relevante da sociedade apoiasse a eliminação de pretos, pobres e favelados, esse tipo de opinião ficava restrito a círculos de amigos. A Chacina da Candelária provocou uma comoção nacional e internacional e colocou do mesmo lado diversas camadas sociais.
Desta vez parece haver uma ruptura, “povo contra povo”, como diz Yvonne Mello. Antes protegida e aplaudida, a educadora agora sofre ataques. Antes raros, personagens como Sheherazade se sentem livres para defender crimas, sob aplauso de quem parece abominar a estar disposto a evitar qualquer possibilidade de igualdade, mesmo se ela não passar de um sonho ainda distante.
Discurso de ódio de Sheharazade estimula o aparecimento de grupos de justiceiros |
A principal razão para o aumento dos roubos, diz a pesquisadora, é a falta de efetivo nas ruas, com o contingente de policiais excessivamente voltado para as UPPs.
Para Jaqueline Muniz, a apresentadora Sheherazade piora o quadro ao promover justiçamentos, porque estimula o medo na população, um clima de “salve-se quem puder”, em vez de esclarecer. “A jornalista não se comportou como uma formadora de opinião, mas como o arauto de uma cruzada moralista. Ela não é despachante da vontade coletiva.”
Por se tratar de uma concessão pública, incitar o ódio seria razão para uma emissora de tevê perder os direitos de transmissão, mas o SBT se antecipou em nota e se isentou de responsabilidade pelas opiniões de seus âncoras.
Segundo especialistas, o limite entre o exercício da liberdade de expressão e a propagação do discurso de ódio é tênue, pois espreme entre dois preceitos constitucionais: a própria liberdade de expressão e o direito à diversidade. “É um desafio muito grande, e a definição acaba sendo dada apenas quando o conflito se apresenta na Justiça”, diz Rosane Leal, professora de Direito da Universidade Federal de Santa Maria e autora de vários estudos sobre a escalada do discurso de ódio nas redes sociais desde a época do hoje esquecido Orkut.
A internet, diz a professora, é um terreno fértil para a proliferação dese discurso, pois, ao contrário de jornais, revistas e tevês, a vítima ou o Ministério Público não pode pedir para suprimir o conteúdo. “Na internet é impossível. Quando se retira de um site, aparece em outro. Ou seja, maximiza a violação e a perpetua. Além disso, o anonimato confere uma espécie de salvo-conduto para se falar qualquer coisa”, avalia Rosane Leal.
A internet amplificou os males, é fato. Mas o Brasil continua a ver o mesmo dilema. Precisa escolher entre Sheherazade e Yvonne Mello. Barbárie e civilização.
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Sheherazade é primária selvagem, diz jornalista
fevereiro de 2014
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