do Jornal do Campus
da USP
Meyer disse que Estado brasileiro nunca se manteve neutro |
Ainda assim, na reta final ante o primeiro turno das eleições presidenciais, muitas questões ainda deixam o povo brasileiro hesitante. Vamos eleger um presidente religioso? Como fica a laicidade do Estado, nesse caso? Devemos esperar menos de um candidato que fala abertamente sobre suas crenças? Como governaria um presidente ateu? E um evangélico? Nos últimos anos, com a ascensão de grupos políticos cunhados em igrejas, a relação Estado–religião tem recebido especial atenção.
Os primeiros equívocos começam com o próprio conceito do que é um Estado laico, conforme o que afirma a Constituição. Seu artigo 5º diz que a liberdade de consciência é inviolável e que ninguém será privado de direitos por sua crença religiosa. Dessa forma, um Estado laico (o nosso, inclusive), seria um governo onde há o respeito por todas as práticas religiosas, desde que estas não atentem contra a ordem pública.
Da mesma forma que as autoridades não apoiariam somente uma religião, não haveria impedimento ou barreiras para nenhuma outra forma de expressão espiritual. Por outro lado, a legislação também afirma que é assegurada a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.
Em outras palavras, isso significa que, apesar de sua laicidade, há uma valorização da religião do Estado brasileiro, apesar de não haver uma preferência expressa por um tipo religioso específico. Isso quer dizer que, no modelo de laicidade adotado, a relação com a religião permanece, ainda que por debaixo dos panos.
“A laicidade do Estado é um processo, uma construção social e política”, afirma a professora Lídice Meyer, que ministra Ciências da Religião na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Historicamente, a Constituição de 1891 foi a primeira a oficializar a separação entre o Estado e a Igreja Católica, tornando o Brasil um país laico. Todas as demais constituições que se seguiram mantiveram a neutralidade religiosa. Neutralidade, esta, porém, vista apenas no papel”, explica.
De forma geral, podemos observar que em diversas situações na democracia brasileira houve influência direta da Igreja Católica nas questões governamentais, através de concordatas com o Estado do Vaticano. A dificuldade no emplacamento de leis pró-direitos LGBT, ou na legalização do aborto, bem como o descaso com crenças tidas como profanas, são apenas exemplos da influência cristã na maneira de governar.
Mais recentemente, devido à dificuldade encontrada pelo Estado em suprir necessidades na área das políticas públicas, o governo estabeleceu parcerias com igrejas para colaboração em programas de distribuição de leite, cestas básicas e combate às drogas. “Vê-se, portanto, que a tão pregada laicidade do Estado Brasileiro está ainda por se constituir. Não basta a separação entre a igreja e o Estado apenas”, pontua a professora.
Ainda dentro desse debate, surge outro tema bastante discutido em meio ao clima eleitoral: o ensino religioso deve ser uma disciplina obrigatória no currículo escolar público? Que tipo de consequências essa decisão acarretaria na prática? “Sem dúvida, não há problema algum em levar ao ensino público a discussão sobre as relações entre igreja e Estado, religião e política”, afirma o professor Ricardo Mariano, doutor em Sociologia da Religião pela USP.
A questão que permanece em aberto, porém, é se a escola pública deve se transformar num espaço de formação e pregação político-ideológica. “Tanto a forma de laicidade que pretende reduzir o espaço da religião na esfera pública, quanto a outra forma que pretende estender sua influência a todos os âmbitos da política e do Estado, todas elas, no fim, são normativas, políticas, ideológicas”, pontua.
Em outras palavras, é preciso pensar se o espaço escolar é o ambiente mais adequado para abrir este tipo de debate, uma vez que sua diretoria acadêmica e seus mestres sempre estarão sujeitos às suas próprias visões político-ideológicas, podendo passar esses conceitos de forma enviesada aos estudantes. “A laicidade do Estado não é algo dado de uma vez por todas; está em debate, sob pressão e julgamento de um sem-número de agentes laicos e religiosos interessados em demarcá-la e configurá-la conforme seus valores e interesses.”