Dizer que cristianismo é da paz é meia verdade |
por Valerie Tarico
Com a possível exceção do budismo, as religiões mais poderosas do mundo transmitem mensagens contraditórias sobre a violência.
Se os países cristãos adotassem a Bíblia como lei, a maioria das pessoas estaria qualificada para a pena de morte. O mesmo pode ser dito do Alcorão e da Torá.
Cristãos, muçulmanos e judeus que afirmam ter religião de paz estão dizendo uma meia verdade ou uma mentira ingênua.
O que se verifica é que os crentes saudáveis e felizes se focam nos textos sagradas e práticas espirituais que incentivam a paz. E os crentes amargos, raivosos, temerosos e propensos à justiça com as próprias mãos são atraídos para os trechos das escrituras sagradas que sancionam a violência e a incentivam.
Assim, em si, as religiões não desencadeiam a violência. Mas negar que elas estejam atreladas diretamente a atos de agressão é o mesmo que negar que não existe nenhuma ligação entre o álcool e as armas e a violência. É fingir que as religiões são inertes ou que nossos mais profundos valores e crenças sobre a realidade não têm nenhum impacto sobre o nosso comportamento.
Do ponto de vista psicológico, as religiões muitas vezes usam o nome de um deus em impulsos que têm raízes pré-verbais subconscientes. Elas provocam experiências como de misticismo, euforia, domínio, submissão, amor e alegria.
Reivindicam o crédito para as emoções morais (vergonha, culpa, desgosto, empatia, etc.) que nos inclinam em direção à justiça e ao altruísmo.
De forma semelhante, as religiões provocam reações de auto-proteção, como raiva e medo —emoções mais prováveis para o impulso da violência.
Tenho um exemplo em meu campo de atividades, o da saúde mental.
Em 5 de novembro de 2009, Nidal Malik Hasan, psiquiatra muçulmano do exército norte-americano, atirou e matou treze de seus colegas soldados na base militar de Fort Hood, ferindo outros trinta. Seu caso mostra como a religião pode combinar com outros ingredientes para produzir uma poção letal.
A partir de um redemoinho de conjectura e da repercussão na imprensa surgiu a imagem de um homem que estava sozinho, que parecia ter carência afetiva e que estava profundamente perturbado com as histórias de horror contadas pelos seus pacientes.
Outros terapeutas estão sob a mesma carga emocional, mas por isso a sua saúde mental ficam sob risco. Muitos deles buscam apoio de profissionais, da família e amigos e limitam o número de pacientes com casos traumáticos.
Sabe-se que Hasan buscou esses tipos de respaldos, mas ele acabou se aprofundando nas pregações do Islã, adquirindo sentimento de alienação e raiva.
Hasan deve ter experimentado um conflito angustiante de lealdades, mas, por fim, a raiva venceu, e, em última análise, os dogmas do Islã assumiram maior importância do que qualquer valor que ele tinha como psiquiatra, e o resultado foram a carnificina.
Os assassinos do massacre do jornal Charlie Hebdo cresceram em um gueto de imigrantes na periferia de Paris, em um lugar impregnado de patriarcado, bravata e ressentimento, um lugar mais propenso a promover amargura do que a esperança.
Eu diria que, como o álcool, a religião desobstrui violência em vez de causa-la, e que isso ocorre somente quando outros fatores criaram condições favoráveis para a agressão.
Eu também poderia argumentar que em melhores circunstâncias religião desobstrui a generosidade e a compaixão, ajudando a melhor o comportamento.
Apesar do fato de que a violência é repetidamente endossada em textos sagrados, a maioria dos cristãos, muçulmanos e judeus nunca comete atos de violência no serviço de sua religião.
Da mesma forma, milhões de pessoas consomem álcool sem insultar, bater, chutar, fuzilar ninguém. Somos — na maioria — bebedores e crentes pacíficos.
No entanto, sabemos que, se não houvesse o consumo de álcool, as estatísticas de agressões apontariam índices menores.
Também sabemos que o Islã é um dos fatores preponderantes dos atentados de homens-bomba e da condenação à morte de blasfemos e apóstatas ou nos casos em que vítima de estupro é apedrejada até morrer.
Igualmente, quando ouvimos que um médico de obstetrícia foi baleado ou que o adolescente gay foi espancado até morrer, sabemos que o cristianismo provavellmente faz parte do mix das causas da violência.
Em geral, como o autor do Evangelho disse, é muito mais fácil ver o cisco no olho do próximo que enxergar a trave em nossa própria visão.
A cultura americana é banhado no cristianismo, e até mesmo para a maioria dos americanos seculares, no momento mais preocupada com o radicalismo de muçulmanos, não percebe os males causados pela crença majoritária no país.
Como exemplo pode se pegar, de acordo com denúncias da imprensa europeia e australiana, os horrores que os missionários norte-americanos têm perpetrado na África.
Os ministros cristãos americanos de igrejas que se multiplicaram na Nigéria e Congo espancam, queimam e desfiguram crianças com ácido sob a alegação de que estão possuídas pelo demônio.
Os missionários americanos, afinal, ensinam que a Bíblia — a palavra literal e perfeita de Deus — diz: “A feiticeira não deixarás viver.” (Êxodo 22:18).
Quando pastores e padres, em nome de Jesus e do Espírito Santo, afirmam que crianças se transformaram em bruxas, elas são abandonadas pelos seus pais. As crianças sortudas acabam obtendo refúgio em abrigos.
Em Uganda, a “Família”, uma organização evangélica americana com membros do Congresso, ajudou o presidente Yoweri Museveni a adotar uma forma de cristianismo politizado.
No dia 24 de fevereiro de 2014, Museveni assinou lei estabelecendo pena de até catorze anos para gay e prisão perpétua a quem for reincidente na “homossexualidade agravada”. A lei também pune quem não denunciar as pessoas suspeitas de serem gays.
Esses horrores não fizeram com que diminuíssem as doações dos americanos aos missionários empenhados em fazer conversões tanto quanto os homens-bomba.
Este texto foi publicado originalmente no blog da americana Valerie Tarico, psicóloga e autora de livros sobre religião.
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