por Nirlando Beirão
A ilustração no topo do texto é um dos muitos cartoons que a imprensa da época publicou sobre o "julgamento do macaco".
Clarence Darrow, agnóstico famoso
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para Carta Capital
Dayton, Tennessee, era, 90 anos atrás, um povoado de 1,8 mil almas fervorosamente assistidas por nove igrejas e um punhado de iracundos pregadores dispostos a irrigar seu rebanho com a crença de uma superioridade moral baseada na adesão incondicional à Palavra de Deus.
Espreguiçando-se “num vale sorridente”, como anotou H. L. Mencken, Dayton trazia em si aquele charme rural, aprazível, que disfarçava uma estufa de superstições, preconceitos e hipocrisia capaz de explodir em ódio contra quem quer que rejeite a autoridade literal da Bíblia e de seus porta-vozes. Um vilarejo, observou Mencken, no qual não havia salão de dança ou de jogo e onde o esporte mais praticado era o rezar. “A oração tem o poder de realizar muita coisa”, ironizou Mencken. “Pode curar diabetes, encontrar carteiras perdidas e proteger as esposas das agressões dos maridos.”
O processo instaurado no dia 25 de maio de 1925 contra um professor de Ciência de 24 anos da Rhea County High School, que tendia perigosamente a desacreditar a narrativa do Gênesis e a contestar que a terra é plana e infestada de espíritos do mal, teria passado despercebido como um daqueles episódios típicos de uma América puritana, racista, ignorante, se não fosse pelo simbolismo que o julgamento ganhou e pela concentração decelebrities que Dayton, casta e pura, de repente acolheu.
Para pontificar na defesa de John T. Scopes (foto), cujos óculos de aros acadêmicos prenunciavam um sinistro liberal, acorreu Clarence Darrow, o carismático criminalista identificado com as causas progressistas e humanitárias, que tinha no currículo a defesa de negros, sindicalistas e homossexuais – ou seja, na versão da caipirada local, o Belzebu em pessoa.
Para exacerbar a acusação, recrutou-se outro figurão de prestígio, William Jennings Bryan, que, após três frustradas tentativas de chegar à Presidência dos Estados Unidos por um Partido Democrata ainda muito distante do engajamento social de Franklin Delano Roosevelt, tinha se convertido ao mais descabelado fundamentalismo religioso, insuflando pelo país afora multidões de crédulos com o timbre catastrófico de profeta do Apocalipse. Para Bryan, seria um acerto de contas com Darrow – “aquele ateu e agnóstico” – que vivia ridicularizando seu fanatismo.
Uma enxurrada de jornalistas também inundou Dayton com seu elenco de estrelas, a começar por aquele H. L. Mencken, que botou a serviço do Baltimore Evening Sun a sua verve embebida em sarcasmo – mas que, ao final de 11 dias de suarenta batalha forense, num ambiente que lembrava apropriadamente a fornalha do Inferno, permitiu-se brindar Bryan não mais com o artifício do deboche, e sim com a santa indignação que quem testemunhou no acusador um desfile de “imbecilidades peculiares” e de “insensatez teológica”. “Chegou herói, saiu bufão”, apostrofou o jornalista.
Foi Mencken, aliás, quem batizou aquela “orgia religiosa” (palavras dele) de The Monkey Trial (O Julgamento do Macaco) – uma vez que ficou óbvio que ali não se tratava de julgar um iniciante professor do curso secundário e, sim, de condenar Charles Darwin in absentia, a Teoria da Evolução, a Origem das Espécies, 65 anos depois de sua publicação – na concepção primária e abjeta dos fundamentalistas, punir na figura de um mestre-escola, aquela ideia de que “o homem vem do macaco”, que não foi esculpido do barro, 6 mil anos atrás, pela mão de uma divindade barbuda e quase sempre vingativa.
Nesse contexto, o infiel Scopes saiu do foco do debate e das câmeras, assim como o próprio juiz John T. Raulston, um magistrado medíocre que se juntou sem constrangimento ao coro de Hosanah dos acusadores, cerceando a defesa e deixando claro que a sentença estava decretada antes mesmo do julgamento. O apelo midiático do The Monkey Trial, na verdade, estava na coreográfica esgrima entre Darrow e Bryan, dois astros dos tribunais, Bryan empenhado em denunciar o solerte ataque dos inimigos da fé, Darrow previamente convencido de que as pérolas de sua reconhecida eloquência seriam recebidas por aquela plateia de caipiras como se ele as despejasse – Mencken comparou – em tubulações de esgoto no Afeganistão. Mas Darrow tinha uma causa a defender – e mesmo a sua previsível derrota no covil provinciano haveria de expor fora dali o ridículo hediondo da intolerância e do fundamentalismo.
O coup de théâtre do “velho diabo” – old devil, tal como Darrow passou para a posteridade – aconteceu na tarde de 20 de julho, que precederia a sentença já sabida. “A defesa deseja chamar o senhor Bryan como testemunha.” A frase ecoou como um petardo na sala. Perplexidade do juiz, constrangimento da defesa. William Jennings Bryan, o Savonarola de Dayton, resigna-se a subir à tribuna. Clarence Darrow acerca-se. “O senhor tem um considerável conhecimento sobre a Bíblia, não tem, Mr. Bryan?” Bryan vacilou: “É, tenho tentado”. “Não tenho dúvidas a esse respeito”, respondeu Darrow. “Cinquenta anos”, eu acho, disse Bryan.
O massacre iria durar duas horas. O senhor acredita que Jonas foi engolido por uma baleia? Se foi, quanto tempo ele ficou na barriga dela? O senhor acredita que Josué fez o Sol parar no céu? Se fez, não teria acontecido alguma coisa à Terra? Qual é a idade da Terra, senhor Bryan? O senhor crê que o mundo foi criado em seis dias? – e assim o sulfuroso Darrow saiu cutucando um confuso Bryan, cuja única resposta passou a ser um irritado e genérico “eu acredito na Bíblia, Mr. Darrow”. Os enviados da imprensa gargalhavam.
Os vencedores acabaram ficando com o mico. A repercussão mundial do julgamento inibiu a ofensiva criacionista que do Tennessee ameaçava se alastrar pelo Deep South – Geórgia, Alabama, Mississippi. John T. Scopes foi condenado pela heresia de pregar a ciência, não o dogma, mas um agora envergonhado juiz Raulston reduziu a multa a 100 dólares – que organizações de direitos civis trataram de pagar. Scopes mudou-se para Chicago, onde ganhou uma bolsa para estudar Geologia. Só em 1967 a Corte Suprema do Tennessee baniu a lei antievolução. William Bryan não teve como saborear o duvidoso triunfo: morreu seis dias após a sentença, de ataque cardíaco.
Noventa anos depois, nos EUA do Tea Party, de Sarah Palin, dos televangelistas carolas da Fox News e das infindáveis seitas de cristãos born again, tem muita gente que, assim como aqueles jecas de Dayton, vive o dilema Bíblia vs. o macaco. Com cega adesão à Bíblia.
Em 1925, uma pequena cidade dos EUA condenou um professor por ensinar a teoria da evolução |
Espreguiçando-se “num vale sorridente”, como anotou H. L. Mencken, Dayton trazia em si aquele charme rural, aprazível, que disfarçava uma estufa de superstições, preconceitos e hipocrisia capaz de explodir em ódio contra quem quer que rejeite a autoridade literal da Bíblia e de seus porta-vozes. Um vilarejo, observou Mencken, no qual não havia salão de dança ou de jogo e onde o esporte mais praticado era o rezar. “A oração tem o poder de realizar muita coisa”, ironizou Mencken. “Pode curar diabetes, encontrar carteiras perdidas e proteger as esposas das agressões dos maridos.”
O processo instaurado no dia 25 de maio de 1925 contra um professor de Ciência de 24 anos da Rhea County High School, que tendia perigosamente a desacreditar a narrativa do Gênesis e a contestar que a terra é plana e infestada de espíritos do mal, teria passado despercebido como um daqueles episódios típicos de uma América puritana, racista, ignorante, se não fosse pelo simbolismo que o julgamento ganhou e pela concentração decelebrities que Dayton, casta e pura, de repente acolheu.
Julgamento do professor de ciência John Scopes teve grande repercussão |
Para exacerbar a acusação, recrutou-se outro figurão de prestígio, William Jennings Bryan, que, após três frustradas tentativas de chegar à Presidência dos Estados Unidos por um Partido Democrata ainda muito distante do engajamento social de Franklin Delano Roosevelt, tinha se convertido ao mais descabelado fundamentalismo religioso, insuflando pelo país afora multidões de crédulos com o timbre catastrófico de profeta do Apocalipse. Para Bryan, seria um acerto de contas com Darrow – “aquele ateu e agnóstico” – que vivia ridicularizando seu fanatismo.
Uma enxurrada de jornalistas também inundou Dayton com seu elenco de estrelas, a começar por aquele H. L. Mencken, que botou a serviço do Baltimore Evening Sun a sua verve embebida em sarcasmo – mas que, ao final de 11 dias de suarenta batalha forense, num ambiente que lembrava apropriadamente a fornalha do Inferno, permitiu-se brindar Bryan não mais com o artifício do deboche, e sim com a santa indignação que quem testemunhou no acusador um desfile de “imbecilidades peculiares” e de “insensatez teológica”. “Chegou herói, saiu bufão”, apostrofou o jornalista.
Foi Mencken, aliás, quem batizou aquela “orgia religiosa” (palavras dele) de The Monkey Trial (O Julgamento do Macaco) – uma vez que ficou óbvio que ali não se tratava de julgar um iniciante professor do curso secundário e, sim, de condenar Charles Darwin in absentia, a Teoria da Evolução, a Origem das Espécies, 65 anos depois de sua publicação – na concepção primária e abjeta dos fundamentalistas, punir na figura de um mestre-escola, aquela ideia de que “o homem vem do macaco”, que não foi esculpido do barro, 6 mil anos atrás, pela mão de uma divindade barbuda e quase sempre vingativa.
Nesse contexto, o infiel Scopes saiu do foco do debate e das câmeras, assim como o próprio juiz John T. Raulston, um magistrado medíocre que se juntou sem constrangimento ao coro de Hosanah dos acusadores, cerceando a defesa e deixando claro que a sentença estava decretada antes mesmo do julgamento. O apelo midiático do The Monkey Trial, na verdade, estava na coreográfica esgrima entre Darrow e Bryan, dois astros dos tribunais, Bryan empenhado em denunciar o solerte ataque dos inimigos da fé, Darrow previamente convencido de que as pérolas de sua reconhecida eloquência seriam recebidas por aquela plateia de caipiras como se ele as despejasse – Mencken comparou – em tubulações de esgoto no Afeganistão. Mas Darrow tinha uma causa a defender – e mesmo a sua previsível derrota no covil provinciano haveria de expor fora dali o ridículo hediondo da intolerância e do fundamentalismo.
Acalorado embate entre os advogados Darrow (defesa) e Bryan virou filme |
O massacre iria durar duas horas. O senhor acredita que Jonas foi engolido por uma baleia? Se foi, quanto tempo ele ficou na barriga dela? O senhor acredita que Josué fez o Sol parar no céu? Se fez, não teria acontecido alguma coisa à Terra? Qual é a idade da Terra, senhor Bryan? O senhor crê que o mundo foi criado em seis dias? – e assim o sulfuroso Darrow saiu cutucando um confuso Bryan, cuja única resposta passou a ser um irritado e genérico “eu acredito na Bíblia, Mr. Darrow”. Os enviados da imprensa gargalhavam.
Os vencedores acabaram ficando com o mico. A repercussão mundial do julgamento inibiu a ofensiva criacionista que do Tennessee ameaçava se alastrar pelo Deep South – Geórgia, Alabama, Mississippi. John T. Scopes foi condenado pela heresia de pregar a ciência, não o dogma, mas um agora envergonhado juiz Raulston reduziu a multa a 100 dólares – que organizações de direitos civis trataram de pagar. Scopes mudou-se para Chicago, onde ganhou uma bolsa para estudar Geologia. Só em 1967 a Corte Suprema do Tennessee baniu a lei antievolução. William Bryan não teve como saborear o duvidoso triunfo: morreu seis dias após a sentença, de ataque cardíaco.
Noventa anos depois, nos EUA do Tea Party, de Sarah Palin, dos televangelistas carolas da Fox News e das infindáveis seitas de cristãos born again, tem muita gente que, assim como aqueles jecas de Dayton, vive o dilema Bíblia vs. o macaco. Com cega adesão à Bíblia.
O vento será tua herança (refilmagem)
A ilustração no topo do texto é um dos muitos cartoons que a imprensa da época publicou sobre o "julgamento do macaco".
Clarence Darrow, agnóstico famoso
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