Trecho d'O Livro da Astrologia: Um guia para céticos, curiosos e indecisos, de Carlos Orsini
Alguém certa vez disse numa rede social, e não faz muito tempo, que criticar a astrologia, nos dias atuais, é “chutar cachorro morto”. Essa é uma impressão, creio, bastante comum entre cientistas e jornalistas científicos: imagino que praticamente todo divulgador de ciência já cometeu pelo menos um artigo desmontando pelo menos um dos muitos aspectos – sem trocadilho – da falácia astrológica e, dando o serviço por terminado, foi cuidar de coisas mais relevantes, como a fobia contra os transgênicos ou a negação da mudança climática.
O problema, no entanto, é que, quando o assunto é astrologia, o serviço nunca está realmente terminado. Cícero (106 AEC-46 AEC) já havia exposto a prática ao ridículo ainda nos tempos da República Romana, e no século XVI uma bula papal chegou a ser escrita condenando-a. A despeito disso, horóscopos continuam a povoar jornais e revistas cada vez mais claudicantes, mais ou menos como a orquestra a tocar no Titanic enquanto os passageiros se estapeavam pelos botes salva-vidas. O jornal da sua cidade pode não ter uma página de ciência, ou nem mesmo uma seção de quadrinhos, mas certamente tem coluna de horóscopo. E esses horóscopos são apenas a ponta do iceberg.
Mas, afinal, o que é “astrologia”? Há tantas linhas, versões e escolas, sideral ou tropical, chinesa ou indiana, uraniana ou clássica, que é tentador usar uma definição operacional: astrologia é o que os astrólogos fazem. Mas isso não ajuda muito, então podemos tentar algo assim: trata-se da crença de que a posição aparente no céu dos planetas, da Lua e do Sol no momento do nascimento pode ser usada para determinar as características gerais da personalidade de uma pessoa, tendências de temperamento e de comportamento, e para indicar as principais dificuldades que a pessoa provavelmente encontrará em sua vida.
Essa crença representa o que costumo chamar de “superstição socialmente sancionada”, no sentido de que não costuma prejudicar a imagem dos aderentes entre os extratos sociais que se supõem mais “esclarecidos” e “antenados”. Muito pelo contrário: uma pitada de astrologia, estrategicamente posicionada na conversa, pode até aumentar seu charme pessoal em meio a amplos setores da assim chamada intelligentsia.
Essa sanção social tácita acaba tendo consequências – financeiras, emocionais, pessoais, até mesmo em questões de saúde – que podem ser temerárias (como no caso, amplamente divulgado, de uma atriz que optou por ter o filho prematuro para que ele nascesse no momento astrológico “correto”) ou, mesmo, trágicas, envolvendo decisões cruciais como a escolha de uma carreira ou o destino de um relacionamento.
No entanto, o que esse uso social-sofisticado da astrologia parece requerer, e de modo um tanto quanto obsessivo, é justificação. Nenhum intelectual simplesmente diz que acredita em astrologia. Ele (ou ela) faz questão de se explicar, muitas vezes em tom de proselitismo.
Entre as explicações oferecidas há a pessoal (“funciona para mim”), a gravitacional (“se a Lua influencia as marés, e nós somos 80% água...?”), a tradicionalista (“astrologia era a arte dos reis da Babilônia”), a sabe-com-quem-está-falando (“Kepler e Newton faziam horóscopos”) a semiótica (“não dá para interpretar arte medieval e renascentista sem saber astrologia”) e a psicanalítica (“Jung! Jung!”). Se o debate se aprofundar, o nome do mui caluniado psicólogo e estatístico francês Michel Gauquelin (1928-1991) certamente virá à tona.
De todas as desculpas, a que chamei de “semiótica” consegue ser uma das mais impressionantes, ao menos na superfície, e, também, uma das mais rasas: se não é possível desfrutar por completo de uma pintura como “Primavera”, de Botticelli, sem ser capaz de reconhecer a rica metáfora astrológica codificada na imagem, também não dá para entender direito a literatura de Homero sem conhecer mitologia grega, mas daí não se deduz que os deuses do Olimpo existem e influenciam nossas vidas.
Embora seja impossível negar o papel que a astrologia desempenhou num determinado estágio do desenvolvimento da filosofia e da ciência na Europa – principalmente durante o Renascimento – usar esse pedigree para argumentar em favor de sua validade atual faz tanto sentido quanto dizer que homens adultos devem dormir em berços, porque em berços dormiam nos primórdios de suas vidas.
O título dessa transcrição é de autoria do site. O Livro da Astrologia: Um guia para céticos, curiosos e indecisos está à venda na Amazon.
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Com 3.500 anos, astrologia é a mais antiga pseudociência
Alguém certa vez disse numa rede social, e não faz muito tempo, que criticar a astrologia, nos dias atuais, é “chutar cachorro morto”. Essa é uma impressão, creio, bastante comum entre cientistas e jornalistas científicos: imagino que praticamente todo divulgador de ciência já cometeu pelo menos um artigo desmontando pelo menos um dos muitos aspectos – sem trocadilho – da falácia astrológica e, dando o serviço por terminado, foi cuidar de coisas mais relevantes, como a fobia contra os transgênicos ou a negação da mudança climática.
Horóscopos são apenas a ponta do iceberg |
Mas, afinal, o que é “astrologia”? Há tantas linhas, versões e escolas, sideral ou tropical, chinesa ou indiana, uraniana ou clássica, que é tentador usar uma definição operacional: astrologia é o que os astrólogos fazem. Mas isso não ajuda muito, então podemos tentar algo assim: trata-se da crença de que a posição aparente no céu dos planetas, da Lua e do Sol no momento do nascimento pode ser usada para determinar as características gerais da personalidade de uma pessoa, tendências de temperamento e de comportamento, e para indicar as principais dificuldades que a pessoa provavelmente encontrará em sua vida.
Essa crença representa o que costumo chamar de “superstição socialmente sancionada”, no sentido de que não costuma prejudicar a imagem dos aderentes entre os extratos sociais que se supõem mais “esclarecidos” e “antenados”. Muito pelo contrário: uma pitada de astrologia, estrategicamente posicionada na conversa, pode até aumentar seu charme pessoal em meio a amplos setores da assim chamada intelligentsia.
Essa sanção social tácita acaba tendo consequências – financeiras, emocionais, pessoais, até mesmo em questões de saúde – que podem ser temerárias (como no caso, amplamente divulgado, de uma atriz que optou por ter o filho prematuro para que ele nascesse no momento astrológico “correto”) ou, mesmo, trágicas, envolvendo decisões cruciais como a escolha de uma carreira ou o destino de um relacionamento.
No entanto, o que esse uso social-sofisticado da astrologia parece requerer, e de modo um tanto quanto obsessivo, é justificação. Nenhum intelectual simplesmente diz que acredita em astrologia. Ele (ou ela) faz questão de se explicar, muitas vezes em tom de proselitismo.
Entre as explicações oferecidas há a pessoal (“funciona para mim”), a gravitacional (“se a Lua influencia as marés, e nós somos 80% água...?”), a tradicionalista (“astrologia era a arte dos reis da Babilônia”), a sabe-com-quem-está-falando (“Kepler e Newton faziam horóscopos”) a semiótica (“não dá para interpretar arte medieval e renascentista sem saber astrologia”) e a psicanalítica (“Jung! Jung!”). Se o debate se aprofundar, o nome do mui caluniado psicólogo e estatístico francês Michel Gauquelin (1928-1991) certamente virá à tona.
De todas as desculpas, a que chamei de “semiótica” consegue ser uma das mais impressionantes, ao menos na superfície, e, também, uma das mais rasas: se não é possível desfrutar por completo de uma pintura como “Primavera”, de Botticelli, sem ser capaz de reconhecer a rica metáfora astrológica codificada na imagem, também não dá para entender direito a literatura de Homero sem conhecer mitologia grega, mas daí não se deduz que os deuses do Olimpo existem e influenciam nossas vidas.
Embora seja impossível negar o papel que a astrologia desempenhou num determinado estágio do desenvolvimento da filosofia e da ciência na Europa – principalmente durante o Renascimento – usar esse pedigree para argumentar em favor de sua validade atual faz tanto sentido quanto dizer que homens adultos devem dormir em berços, porque em berços dormiam nos primórdios de suas vidas.
O título dessa transcrição é de autoria do site. O Livro da Astrologia: Um guia para céticos, curiosos e indecisos está à venda na Amazon.
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Com 3.500 anos, astrologia é a mais antiga pseudociência
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