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Não grite 'assassina' à mulher que abortar por causa do zika


por Debora Diniz

Eu queria que você me escutasse: por favor, não grite “eugenia!” Essa é uma palavra maldita, carrega um passado de pânico e anuncia um futuro no qual nenhuma de nós quer viver. É verdade, os nazistas foram eugênicos. Eles foram até mais do que isso: houve práticas de exceção e de extermínio, uma força totalitária contra a qual os indivíduos não tinham vontade ou voz. Nem eu nem você jamais esqueceremos o horror da eugenia que obrigou mulheres a abortarem, que fez experimentos em crianças com deficiência, que exterminou os velhos. Essa história de abuso deve ficar para sempre em nossa lembrança.

A epidemia fragiliza ainda mais a mulher
Não tem nada de eugênico no que vivemos agora com a epidemia do zika no Brasil e o início da conversa sobre o aborto em caso de a mulher ser infectada pelo vírus. Não há Estado totalitário, não há máquinas de extermínio ou solução final; ao contrário, há clamores de mulheres desamparadas para que se reconheça, em cada uma de nós, a soberania da vontade sobre como planejar a família. Se há excessos de autoritarismo, é no atual regime político em que somos proibidas de decidir sobre como, quando e em que condições queremos ter filhos — hoje, o útero é propriedade de quem nos governa com a força da lei penal.

Parece exagerado falar assim, mas não é. Vivemos uma epidemia sem precedentes. A Organização Mundial de Saúde classificou o risco de alterações neurológicas no feto pelo zika vírus como uma hipótese científica com graves repercussões à saúde pública. Há poucos dias, decretou estado de emergência global. O que significa o adjetivo “grave” ou o substantivo “emergência” aqui? Que há um dano causado injustamente às mulheres e aos seus futuros filhos por uma negligência persistente do Estado brasileiro em não ter eliminado o mosquito que carrega o vírus. Duas vezes na história, fomos capazes de eliminar o Aedes aegypti, nos anos 1950 e 1970. O mosquito voltou e metamorfoseou-se em uma nova doença cujas consequências são permanentes em futuras crianças — descrevemos como “microcefalia”, mas a verdade é que estamos diante de um novo quadro clínico ainda sem contornos bem definidos pela medicina.

A gravidez transformou-se em uma espera desamparada para as mulheres, semelhante a um permanente estado de maus-tratos. Novamente, sem risco de exagero, as mulheres vivem uma tortura psicológica pelo medo do mosquito: o Ministério da Saúde recomenda alterar os modos de vestir (mangas compridas no agreste nordestino), fechar janelas e portas (alto verão), ou substituir perfumes por repelentes. São nove meses de desamparo e, se o filho nascer com alterações provocadas pela síndrome neurológica do zika, um longo percurso de necessidades de vida serão demandas dessa mulher para cuidar de si e da criança.

Faço parte de um grupo de ativistas que anunciou uma possível judicialização para fazer frente à negligência do Estado brasileiro. Há um quadro de profundo desamparo com graves ameaças à saúde e à dignidade das mulheres. O direito ao aborto em caso de infecção pelo zika vírus é só uma peça de um amplo marco de fragilização dos direitos sexuais e reprodutivos. É preciso que o Estado brasileiro garanta irrestrito acesso aos métodos contraceptivos, o teste imediato para a virologia do zika em mulheres grávidas, com especial atenção para as regiões de maior prevalência da epidemia. Não podemos esquecer que há uma geografia da epidemia que mimetiza a desigualdade racial e de renda do país. É do nordeste pós-colonial que ouvimos as histórias de desamparo das mulheres.

É por que isso que lhe pedi no início: não grite sua rejeição, tente me ler pensando que somos mulheres muito diferentes, não acreditamos nos mesmos deuses ou sentidos para a vida. Essa mulher nordestina com risco de zika na gravidez, cuja avó foi trabalhadora em um engenho de cana-de-açúcar, vive há mais de quatro décadas com doenças transmitidas pelo mosquito. A novidade é que agora o mosquito que atormentou sua mãe e sua avó ameaça seus filhos. Se você me lê, é porque, como eu, também está distante da realidade dela — da falta de assistência em saúde, de escolas, de saneamento adequado ou de transporte público. Somos mulheres muito diferentes, e as escolhas reprodutivas são uma parte íntima de quem somos.

Eu sei que a questão do aborto provoca sentimentos intensos e dogmáticos em muitas pessoas. Eu me exercitei para acomodar minhas crenças originais e ensaiar um respeito à diversidade de escolhas. Por isso, novamente peço cuidado antes de gritar a essa mulher “assassina!” Nenhuma mulher que aborta é uma assassina — essa é uma acusação que ignora a delicadeza das escolhas reprodutivas, a intimidade de seus sentidos, e o quanto é melhor para todos nós que a liberdade seja o fundamento da vida conjunta. Mas há algo ainda mais particular na conversa sobre o aborto em caso de infecção pelo zika: diferente das outras situações de aborto, essa mulher já é, socialmente, uma futura mãe.

Ela não escondeu a gravidez porque planejava um aborto, ela é uma mulher grávida, uma futura mãe que talvez já tenha iniciado o enxoval do filho. A epidemia a fragiliza até mesmo sobre como se apresentar ao mundo da casa e da rua. Talvez não a mim e a você, pois estamos muito distantes dela. É preciso lembrar sempre que uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto no Brasil — essa é a magnitude do aborto ilegal, inseguro e escondido. O aborto pelo zika vírus também pede proteção do Estado e legalidade, além de sensibilidade extra, sabe por quê? Estamos falando de uma mulher que se confrontará com um rearranjo de seus próprios planos de família e existência. Ela quer ser publicamente protegida, mas não publicamente incriminada como eugênica ou assassina.

A epidemia do zika trouxe perturbação e medo às mulheres grávidas. Nem todas escolherão o aborto, muitas manterão a gravidez. Hoje, não há escolha, é preciso repetir. Nosso pedido judicial é de proteção ao planejamento familiar, à maternidade e à infância — é preciso garantir, em regime de urgência, proteção às mulheres e a seus filhos com deficiência. Estamos falando sobre a necessidade de um Estado social forte, com políticas de proteção que garantam à mulher e à futura criança condições de viver uma boa vida. A isso chamamos políticas de inclusão e proteção social. É assim que falar em direitos das mulheres em tempos de epidemia de zika é falar de planejamento familiar, mas também em direitos de proteção social à infância. Não há como dissociar as escolhas reprodutivas das mulheres da saúde pública ou do bem-estar das futuras gerações.

Por isso, não grite “eugenia” ou “assassina”. A melhor forma de cuidar dessas mulheres é lutando por um Estado garantidor de liberdades e proteções: o direito ao aborto é uma miúda peça nessa arquitetura de necessidades, o direito à proteção social das crianças é parte dessa luta. Não podemos aceitar que a epidemia retire das mulheres as escolhas sobre como desejam viver a maternidade e o cuidado de seus filhos. A melhor escolha é sempre íntima, silenciosa, e não necessita de nossa concordância moral. É assim que lhe peço: não grite, escute. Se não conseguir escutar a dor de cada uma dessas mulheres, exercite o silêncio. As mulheres sentirão o amparo de sua presença, mesmo que distante.

Este texto da antropóloga Debora Diniz foi publicado originalmente no blog #AGORAÉQUESÃOELAS. O título é de autoria deste site.



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