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Notas de um ateu: Carnaval virou procissão do crioulo doido



Na sexta-feira, perguntei a Sirlene, diarista de casa, se a igreja dela permite que se festeje o Carnaval. Ela é uma evangélica que gosta de dançar, frequenta forró.

Sirlene respondeu que sua igreja não se opõe ao Carnaval porque não é de fanáticos. Mas ainda assim ela disse que não iria ao Carnaval, por não gostar.

Enredos cristianizam
em São Paulo a festa
pagã do Carnaval
Ela quis saber se eu ia ver o desfile. Respondi que “talvez”, porque, falei, não sigo religião alguma, nem em Deus acredito.

Com certeza inabalável, ela falou: “Eu não acredito que você não crê em Deus”.

Outras pessoas de meu convívio também acham impossível eu não ter Deus no coração. É curioso, porque elas acreditam em um ser invisível, mas não no que diz uma pessoa de carne e osso, eu.

Recentemente, um vizinho me disse: “Você acredita em Deus, só que ainda não sabe”. Ri, e mudamos de assunto.

Suponho que, no inconsciente, essas pessoas acham que sou suficientemente bom (ou não tão mal) para não ser ateu. De certa forma é um elogio a mim e também um preconceito contra os ateus em geral.

Este ano eu e minha mulher fomos ao Carnaval, no desfile de sábado para domingo em São Paulo, de modo que a jovem japonesa Mayo, um intercambista que ficará no Brasil até junho, conhecesse a festa mais famosa do Brasil.

Das escolas dessa noite, gostei mais da Vai-Vai, que apresentou o enredo “Je suis Vai-Vai, bem-vindo à França”.

Me chamou a atenção a forte presença da religião cristã nos enredos, como o da Escola de Samba Tucuruvi, que foi “Celebrando a religiosidade, Tucuruvi Canta Festas de Fé”.

O samba fala em rainha do mar, em uma referência a Yemanhá, no “Padin Ciço” e na Nossa Senhora Aparecida.

O samba da Vai-Vai, entre menção à "Liberdade, Igualdade, Fraternidade", deu um jeito de dizer que “Alan Kardec é a luz e encanto”. Explica-se: Kardec, o criador de uma vertente do espiritismo, nasceu na França, mas nesse país são poucos os seguidores dessa religião, diferentemente do que ocorre no Brasil.

O enredo da Dragões da Real foi “Supresa! Adivinha o que eu trouxe para você?”. O seu samba faz referência à “oração” , destacando que “pelos altares desta vida, em nome da fé eu vou!”.

O enredo da A X-9 foi “Açaí Guardiã do Amor de Iaçã ao esplendor de Belém do Pará”.

Também no samba dessa escola há o aparecimento de Nossa Senhora.

“Na procissão de fé do Círio de Nazaré / Hoje clamo em oração / Oh! Virgem santa, abençoai meu pavilhão”, diz um trecho do samba.

Houve carros alegóricos com destaque para santos cristãos e pagãos e igrejas. Uma encenação mostrou o nascimento de Jesus.

Até há pouco tempo, a Igreja Católica condenava firmemente o Carnaval, que seria a festa do diabo. Hoje quem faz essa pregação são as igrejas evangélicas.

Somente em 2010, a Justiça do Rio derrubou uma lei que proibia as escolas de samba de usarem imagens sacras.

Em 1989, a Beija-Flor teve de cobrir no desfile um Cristo Redentor porque a Arquidiocese do Rio de Janeiro proibiu a exibição da imagem. Em 2002, a escola ocultou uma Nossa Senhora de Aparecida entre os passistas.

Agora, sob nova direção, a Arquidiocese do Rio percebeu que o desfile de imagens sacras no Carnaval ajuda a divulgar o catolicismo.

Em janeiro deste ano (2016), o próprio cardeal-arcebispo do Rio, dom Orani Tempesta, levou uma imagem de São Sebastião para a capela instalada na quadra da Escola de Samba Portela. O cardeal aproveitou a oportunidade para falar sobre o que há em comum entre o samba e a mensagem de Deus.

Confesso que gostava mais do Carnaval menos cristãos, de antigamente, escrachado e crítico, inclusive com relação aos políticos. Um tem atual é o crescente preconceito que sofrem as religiões de matriz africana por parte de evangélicos.

O Carnaval destes tempos está muito bem comportado e sem criatividade. Muito "oficial", como se fosse mais um programa da Rede Globo, e, no fim, acaba sendo.

A japonesa Mayo gostou do desfile, mas não entendeu nada. Eu também não entendi.

Saí do sambódromo do Anhembi, no domingo de manhã, com a impressão de ter visto um procissão organizada pelo crioulo doido.

Com foto de Fernanda Guimarães.

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