por Daniel Sottomaior
presidente da Atea
para Veja
Imagine acordar um dia e descobrir que o presidente do Brasil decretou que todas as notas do real devem trazer inscrição “deus é ficção” — assim mesmo, com minúscula. E que as repartições públicas do país, do posto de saúde aos tribunais, devem ostentar uma letra “A” estilizada, um símbolo do ateísmo, que defende a ausência da crença em deuses. As sessões do Congresso passam a ser aberta “em nome do ateísmo”, com um livro de Friedrich Nietzsche sobre a mesa.
Mais: as escolas públicas são obrigadas a oferecer a matéria de ateísmo (mas sem proselitismo), e as instituições que promovem a descrença começam a ser financiadas com impostos. A nova Constituição é promulgada “em nome de ausência completa de deuses”. Ah, e o Poder Legislativo, sob influência da bancada ateia, conhecida pelo radicalismo, aprova leis que privilegiam os ateus e faz acordos com países minúsculos cuja única função é promover o fim da religião.Esse cenário, que poderia parecer um pesado para muitos brasileiros, é a dura realidade enfrentada por alguns milhões de ateus no Brasil — só que com o sinal invertido. Em vez de serem obrigados a viver em um Brasil sem deuses, eles têm de lidar com uma República declaradamente teísta e tacitamente cristã.
"Ateus continuam cidadãos de segunda classe" |
Nosso Estado só é laico no papel. Durante quatro séculos, o país foi oficialmente católico e tanto o monarca como seus ministros tinham de jurar lealdade à fé católica. Com a instauração da República, o Estado tornou-se teoricamente laico, mas a Constituição foi promulgada em nome de deus. Nas sessões do Congresso, há sempre uma Bíblia em cima da mesa. Os símbolos religiosos povoam as repartições públicas, e as religiões têm imunidade tributária e são ensinadas em escolas públicas. Para os ateus, a República não trouxe nenhum refresco. Eles continuam cidadãos de segunda classe.
Não faltam bons exemplos de ateus brasileiros admirados por suas qualidades. Mas disse o autor dos Salmos bíblicos: cum impiis non sedebo, não te sentarás com os ímpios. Essa palavra curiosa, “ímpios”, aparece dezenas de vezes na Bíblia, todas elas descrevendo como os canalhas chamados ateus merecem apenas ostracismo e violência. Essa doutrina se entronizou em nossa cultura a ponto de a palavra “ímpio” significar tanto ateu como cruel e desumano.
A identificação de grupos sociais com deficiência estética, intelectual, física ou moral está na raiz de toda ideologia do preconceito e toda prática discriminatória. E não é outra mensagem do livro sagrado (assim como a do Corão): ateus não são boas pessoas. É por isso que, dos piores criminosos, se diz em rede nacional: “Não têm deus no coração”, “Não acreditam em deus”. Em sua coluna de jornal, um religioso já comparou o ateísmo militante com tortura. Na televisão, os jurados dos programas se dizem “contra” quem não acredita em deus.
Sabendo que sofrerão violência física ou moral, que serão despedidos do seu trabalho ou nem serão contratados, com medo de perderem amigos ou de serem expulsos de casa, os ateus preferem se esconder. Mas isso não será assim para sempre. Outros grupos marginalizados, como negros e homossexuais, só começaram a vencer o preconceito e a discriminação por meio do ativismo contínuo. Com os ateus, está a mesma coisa. Hoje, somos a última minoria em busca de sair do armário e proclamar-se com orgulho.
Os ateus são as pessoas mais detestadas do país, o que é confirmado por todas as pesquisas. Em 2008, a Fundação Perseu Abramo constatou que 17% dos brasileiros sentiam “repulsa/ódio” e outros 25% tinham antipatia pelos ateus, campões de rejeição de rejeição em ambas as categorias. Uma pesquisa do CNT/Sensus publicada por Veja em 2007 mostrou que 84% dos brasileiros votariam em um negro para presidente, 57% dariam o voto a uma mulher, 32% aceitariam votar em um homossexual, mas apenas 13% votariam em um candidato ateu.
"Cabe aos ateus organizar-se para afirmar seu lugar" |
É comum que políticos importantes, de Fernando Henrique Cardoso a Dilma Rousseff, depois de uma vida inteira de descrença, sofra súbita conversão às vésperas das eleições. O ateísmo é evitado como o próprio diabo, o que na prática exclui os ateus declarados da participação política.
O resultado é o grande mar de lama que já conhecemos. Não consta que os muitos corruptos condenados pela Lava-Jato ou pelo mensalão sejam majoritariamente ateus. A despeito da crença popular, não são os ateus que preenchem as cadeias. Tampouco são eles que lançam aviões contra edifícios. Uma comparação entre países também derruba o preconceito contra os sem deuses. Segundo o índice global de religiosidade e ateísmo da WIN-Gallup publicado em 2012, entre as nações com mais ateus convictos estão Japão (31%), França (29%), Coreia do Sul (15%), Alemanha (15%), Holanda (14%) e Austrália (10%). Os países com menos ateus, por sua vez, incluem Vietnã, Iraque e Gana, como 0%. O Brasil, de acordo com essa pesquisa, empata com a Nigéria, com 1%. A diferença entre os dois grupos de países deixa claro que não é o ateísmo que corrói o mundo. Ao contrário: quando mais religioso é um país, piores são seus índices sociais. É quase como se deus nem existisse.
Cabe então aos ateus organizar-se para afirmar seu lugar como cidadãos dignos, o que vêm fazendo por meio da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea). Em oito anos, a entidade já reuniu mais de 16.000 membros e incríveis 550.000 fãs em sua rede social. A liberdade de pensamento inclui o direito de criticar livremente tanto o ateísmo como a religião. Por isso, o ateísmo não precisa de defesa. Mas os ateus sim. Afinal de contas, somos todos ateus com a religião dos outros.
"Somos a última minoria em
busca de sair do armário"
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Texto publicado originalmente pela Veja, edição 2491, com o título "Deus é uma ficção".