Há privilégios detrás do desrespeito ao Estado laico |
por Daniel Sottomaior
para Gazeta Online
Tolerância é uma daquelas palavras que, com os anos, ganhou o ar sacrossanto de grande bem social de qualidades prístinas e inatacáveis. Pessoalmente, creio que é um equívoco. A tolerância, assim como o amor, é uma atitude que pertence à esfera pessoal e por isso é um pedido inútil.
Pedir “tolere-me” tem tanto efeito quanto pedir “me ame”. Portanto, já deu pra notar que também não sou fã do “amai-vos uns aos outros”. Talvez isso dê certo em Nárnia; aqui no planeta Terra, não tenho notícia de nenhum resultado. Pelo contrário, o povo do “amai-vos” é o mesmo da Inquisição, das cruzadas contra a religião e contra o amor (vejam só) homossexual ou fora do casamento. É o pessoal da escravidão, dos escândalos de pedofilia, do enriquecimento através da fé (dos outros), de instituições como a Sé de Roma em que mulheres só entram pra servir cafezinho. Deu certo?
Em vez de pedir por tolerância, me parece mais produtivo começar com o básico. Não peço tolerância, intocável como todos os nossos sentimentos mais profundos. Peço apenas convívio civilizado e tratamento igualitário, longe de preconceito e de discriminação. Isso está no campo do convívio social e ao alcance da lei. Isso pode ser pedido e pode ser alcançado.
Como atingir a incensada “tolerância” sem antes cumprir as etapas republicanas mais básicas como a laicidade do Estado? Não me parece possível. Laicidade é um daqueles conceitos que, como a honestidade, só aos desonestos interessa deturpar. E ela é muito deturpada, então sempre convém explicar: laicidade de Estado nada mais é do que a neutralidade do Estado perante o fato religioso, ou a sua ausência. É somente um nome pomposo para o princípio da igualdade no campo da religião.
Em outras palavras, Estado laico é aquele que não privilegia nem desfavorece qualquer crença ou descrença religiosa. É aquele que não empresta sua constituição nem seu dinheiro para dizeres religiosos, não usa suas paredes e seus terrenos para ostentar símbolos religiosos, não subsidia a religião com imunidade tributária, não oferece suas escolas para a doutrinação religiosa nem cede graciosamente seus recursos às religiões ou usa sua liturgia e livros sagrados no cerimonial dos três poderes. Enfim, é tudo que o Brasil não faz.
Os agentes públicos não gostam da laicidade do Estado porque a sociedade, em geral, não gosta da laicidade. Grande parte dos cidadãos quer ver a sua própria religião incrustada no Estado, gozando de todo tipo de benesses, cuspindo leis da sua religião para serem cumpridas pelos cidadãos de todas as religiões. Esse é o espírito brasileiro, ressalvada pequena minoria.
Enquanto isso for assim, pedir tolerância será inútil.
Daniel Sottomaior é presidente da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos). O texto foi publicado originalmente com o título "O problema da intolerância".
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