"Em nome de quem?” é o livro-reportagem de Andrea Dip sobre o projeto de poder dos evangélicos.
Editado pela Civilização Brasileira, ele tem como base reportagem “Os Pastores do Congresso”, que foi financiada por 945 pessoas pelo sistema crowdfunding.
Editado pela Civilização Brasileira, ele tem como base reportagem “Os Pastores do Congresso”, que foi financiada por 945 pessoas pelo sistema crowdfunding.
“Visitei igrejas, ouvi sermões extremamente políticos e pude entender um pouco melhor a pressão exercida sobre os fiéis para votarem ‘dentro da visão’”, afirma a jornalista sobre como coletou informações para escrever o livro.
“Bati à porta dos gabinetes de cada um dos deputados da bancada evangélica (nem sempre fui bem recebida) para aprofundar sobre as razões da postura aguerrida dos políticos evangélicos, sua crescente aproximação política com a direita, seu papel no impeachment de Dilma, no governo Temer, suas articulações para aprovar suas pautas”
Segue um trecho do livro:
“Bati à porta dos gabinetes de cada um dos deputados da bancada evangélica (nem sempre fui bem recebida) para aprofundar sobre as razões da postura aguerrida dos políticos evangélicos, sua crescente aproximação política com a direita, seu papel no impeachment de Dilma, no governo Temer, suas articulações para aprovar suas pautas”
Segue um trecho do livro:
Pastores fora da visão
“Marta — nome fictício — e seu marido foram pastores da Igreja Renascer em Cristo por mais de dez anos. Até que, sem aviso, foram destituídos e humilhados por estarem “fora da visão” – e se negarem a pedir mais e mais dinheiro para os fiéis. Aqui, ela conta, pela primeira vez, o que viveu com sua família dentro da Igreja Neopentecostal.
Em 1996, passei a ouvir no rádio músicas gospel alegres, com bom instrumental, diferentes. Logo passei a acompanhar também a oração que era feita ao meio-dia. Naquela época era novidade.
Não demorou, fomos conhecer a igreja pessoalmente e logo estávamos, minha família e eu, frequentando os cultos da Igreja Renascer. Nós havíamos nos mudado de cidade e achamos que seria uma oportunidade de conhecer a comunidade local, e nossos filhos adolescentes poderiam se enturmar com outros jovens. Em pouco tempo começamos a receber profecias de que iríamos trabalhar na igreja.
Meu marido e nossos filhos tocavam vários instrumentos musicais, e passaram a tocar no louvor dos cultos. Fomos fazendo os cursos, entramos para a diaconia, começamos a dar aulas e a nos envolver mais e mais. Por ser uma instituição com atividades diárias, de “portas abertas [para a comunidade]”, nossa vida fora do trabalho profissional era totalmente voltada para o trabalho ministerial na igreja. Passamos a não frequentar mais as festas da nossa família, a não visitar ninguém, a não termos horas de diversão e lazer.
Mais um tempo se passou, e meu marido se tornou pastor voluntário. Não recebia, por opção, porcentagem do dízimo. O pastor receberia 10% do que a igreja arrecadava durante o mês. O bispo sub-regional, 10% da arrecadação das igrejas que acompanhava. O bispo regional, 10% de todas as igrejas da região. O bispo primaz, 10% do estado ou país. E o apóstolo, 10% de todas as igrejas.
Havia uma política de não deixar por muito tempo um líder numa igreja. Logo começamos a enfrentar as mudanças de igrejas locais, e não era agradável deixar para trás nossos amigos. O apelido que meu marido recebeu foi Neemias, em alusão a um copeiro do rei que de forma voluntária restaurou Jerusalém após sua destruição.
Por não depender de salário, meu marido era enviado para igrejas pequenas, geralmente que tinham passado por algum problema. Íamos os quatro de nossa família, cada um tinha uma tarefa, e os cultos aconteciam. A igreja crescia, meu marido sempre foi muito querido, tudo o que fizemos foi por amor. Mas logo os “olhos” de algum pastor assalariado “cresciam”, e ele começava a fazer política junto ao bispo para assumir a igreja, de olho na arrecadação. E lá íamos nós começar tudo de novo em outro lugar mais humilde.
Certa vez, um homem nos procurou para fazer lavagem de dinheiro. A proposta foi simples: uma porcentagem ficaria para a igreja. Claro que nós não aceitamos, mas esse tipo de proposta deve acontecer com frequência.
Às quintas-feiras, os pastores, bispos e apóstolo tinham uma reunião. E cada esposa ministrava o culto de Cura e Libertação. Às segundas-feiras, eu também ministrava um curso de Libertação Espiritual, enquanto meu marido ministrava os cultos para empresários, como convidado de outras igrejas, e ia a jantares e coquetéis.
Durante o curso, apostilado, era ensinada a teoria de que existem demônios e potestades que atuam em determinadas regiões, muito relacionadas com a história do lugar, com as invocações que foram feitas. Miséria e catástrofes eram relacionadas a religiões praticadas na região. Demônios deveriam ser “denunciados” e “repreendidos” pelos cristãos, para que não atuassem mais contra os cristãos que os estavam denunciando. Até estupros e vícios eram atribuídos a demônios, em alusão a passagens bíblicas antigas.
A Batalha Espiritual também devia ser feita com jejuns. Éramos incentivados a não entregar a Deus sacrifícios que não custassem nada, em referência a uma passagem bíblica. As mulheres doavam suas joias, principalmente nos Cultos de Mulheres. Os homens doavam suas canetas e relógios. Até carros. Isso era incentivado e enfatizado. Entregar para Deus. Se [uma pessoa] estivesse desempregada, [devia] fazer uma oferta de fé, participar das Campanhas de Jejum.
Havia em todos os cultos a ministração dos dízimos e ofertas, após o louvor e antes da ministração da Palavra. Normalmente era feita pela esposa do pastor. A ministração chegava por fax. Eu me convenci de que eu entregava para Deus. O que fizessem com isso não era mais minha responsabilidade. Os bastidores de muita coisa nunca saberemos.
Os “desafios” financeiros eram difíceis de engolir: o apóstolo [Estevam] Hernandes planejava a compra de uma rádio, por exemplo, e todos os bispos e pastores deveriam se comprometer. Os diáconos, presbíteros, pastores, bispos, deveriam entregar cheques pré-da- tados e “correr atrás” para cobrir [o valor no Banco]. Acabava sobrando para os menorezinhos, os últimos da fila, os colaboradores voluntários, os diáconos. Fazíamos muitos eventos, rifas, bazares para cobrir esses compromissos. Nem sempre conseguíamos. Eu dei minhas joias. Meu marido não tinha coragem de deixar que depositassem os cheques, de diáconos, que não tinham fundos. Ia até os bispos e dava seus cheques no lugar. Foi repreendido mais do que uma vez, porque diziam que ele não estava ensinando a seus diáconos viverem pela fé.
Tínhamos um bispo sub-regional que nos oprimia muito. Um homem que meu marido ajudou financeiramente várias vezes, mas que exigia de nós além do que conseguíamos cumprir. Começamos a nos entristecer. Fazia questão de exigir mais e mais. Era nítida a competição por parte de alguns, a fofoca, o “puxar de tapete” na questão da arrecadação e posição no ministério. Nada espiritual, mais uma forma de ascensão social, de status, de uso do pequeno poder subjugando pessoas. Me admirava o fato de que eram esses os que se davam bem, e não os de bom coração, os dedicados, que faziam por amor, tentando seguir de forma verdadeira os ensinamentos de Cristo.
Durante a Ceia dos Oficiais [uma espécie de Santa Ceia destinada a quem trabalha voluntariamente nos templos], uma vez por mês, eram dadas as coordena- das das campanhas mensais e apresentados os candidatos a cargos políticos. Eram realizados eventos de jantares, chás, cultos, para apoio à candidatura de po- líticos. Destinados às classes média e alta, quase sempre mediante venda dos convites.
Foram apoiados Paulo Maluf, bispo Geraldo Tenuta, Marcelo Crivella, entre outros. O Crivella foi chamado para dar o testemunho da vida dele com Cristo. Resumindo, ele contou, com uma entonação de alguém muito espiritual, que, quando estava internado numa clínica psiquiátrica, ouviu um barulho de coisa arrastando pelo chão e, ao olhar, viu a ponta do manto de Cristo passando. Então se converteu.
Foram muitas as situações de humilhação. Chegamos a tentar falar com os superiores, bispos, mas não tinham tempo para nos atender. Aceitaram o relato de que estávamos “bichados” e de que éramos rebeldes. No meio de um culto, sem que imaginássemos, o bispo da sub-regional subiu ao palco e nos destituiu. Colocou outro casal em nosso lugar. A comoção foi tanta que as pessoas se levantaram e nos seguiram. Em seguida, durante aquele programa de rádio que tanto me conquistou, fomos amaldiçoados, mencionaram nosso nome, como se fôssemos os maiores bandidos! Hoje vejo isso como a última tentativa de que as pessoas que nos queriam bem não nos seguissem.
Eu me arrependo muito de ter nos deixado, a mim e a minha família, nos envolver por essas instituições que não passam de máquinas de fazer dinheiro. De termos perdido tanto tempo de nossa vida enriquecendo os líderes da Igreja e não termos construído para nós. De termos perdido a convivência com os nossos e de termos ingenuamente acreditado em pessoas que se autossantificam e idolatram.
Quando vejo alguém frequentando esses cultos dessas Igrejas-Business, percebo o quanto são enganados. Os colaboradores, trabalhadores voluntários são quem realmente sustentam essas máquinas e são explorados.”
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