Pular para o conteúdo principal

No 'Ciência na Alma', Dawkins denuncia a pobreza do debate contaminado pela religião

por André Cáceres
para O Estado de S.Paulo

O título de "Ciência na Alma", que reúne 42 ensaios e palestras do etólogo britânico Richard Dawkins, soa como uma contradição em termos graças à antiga oposição entre razão e fé. Em vez de relativizar esse antagonismo, como muitos pensadores contemporâneos, o autor faz questão de realçá-lo com uma citação de Carl Sagan sobre as superstições: “Você pode procurar o curandeiro para desfazer o feitiço que causa a sua anemia perniciosa, ou pode tomar vitamina B12. Se quiser poupar seu filho da pólio, pode rezar ou vaciná-lo.”

Se o autor parece hostil às religiões, há uma explicação. Desde sua obra-prima, "O Gene Egoísta" (publicado em 1976, e tido por Ian McEwan como o livro que “iniciou uma era de ouro da literatura científica”), Dawkins sempre foi um polemista. Ele é um dos principais expoentes do Novo Ateísmo, movimento surgido nos anos 2000, ao lado do escritor inglês Christopher Hitchens, do neurocientista americano Sam Harris, da ativista somali-holandesa Ayaan Hirsi Ali e do filósofo francês Michel Onfray

Uma das principais críticas a esses intelectuais é justamente a maneira como se posicionam contra as religiões, comparados a fundamentalistas anti-fé. No entanto, esse ateísmo não é tão “novo” assim, remontando ao matemático inglês Bertrand Russell, autor de Por Que Não Sou Cristão (1927), e ao biólogo Thomas Huxley (avô de Aldous), um dos primeiros darwinistas e responsável por cunhar o termo “agnóstico”.

Cientista diz que a
 "mente descontínua"
 prejudica a compreensão
 dos fenômenos

O tom provocativo do autor de "Deus, um Delírio", embora denote sua clareza de pensamento (John Maynard Smith afirmou que ele “aparentemente pensa em prosa” ao apresentar seus argumentos mais incisivos), é também uma desvantagem para Dawkins, uma vez que o etólogo se arrisca a pregar para convertidos (ou para não convertidos, no caso de seu público majoritariamente ateu). 

Muitos dos leitores podem não passar da primeira página ao se deparar com a definição dele para as religiões abraâmicas, “os três cultos rixentos que, por acidente histórico, ainda afligem o mundo”. 

Quem superar esse início agressivo, todavia, encontrará um compilado de ideias preciosas e até mesmo um ou outro mea culpa por conta de sua escrita ferina, como em "A Teologia do Tsunami", texto que aglomera suas respostas às críticas de leitores ofendidos.

Em tempos de pós-verdade, terraplanismo, polarização política e desconfiança em relação às vacinas, "Ciência na Alma" é um bálsamo. Contra a acusação de que os postulados científicos “não passam de teorias”, falácia que ganhou força nos últimos anos devido à ignorância geral quanto à natureza de uma teoria, Dawkins reconhece que as leis de Newton, por exemplo, são apenas uma aproximação e que a Relatividade de Einstein pode ser suplantada algum dia. “Mas isso não as rebaixa ao nível da bruxaria medieval”, rebate. “São aproximações nas quais você pode apostar a sua vida, e é isso o que fazemos regularmente. Quando viaja de avião, o nosso relativista cultural deixa sua vida a cargo da levitação ou da física, do tapete mágico ou da fabricante de aeronaves McDonnel Douglas?”

Do mesmo modo, em "O Adendo do Alabama", discurso proferido no estado americano cujas escolas públicas eram obrigadas a questionar abertamente a veracidade da Evolução para os alunos, Dawkins reconhece que as ideias darwinianas são uma teoria, mas “que tem tanta probabilidade de ser refutada quanto a teoria de que a Terra gira em torno do Sol ou a teoria de que a Austrália existe”.

Analisados pelo viés biológico, debates prementes de nossos tempos ganham contornos diferentes, e é a partir dessa visão alternativa que os leitores afastados pelo discurso áspero de Dawkins poderiam repensar suas convicções: “Os ativistas contra o aborto afirmam categoricamente que a ‘vida’ é preciosa enquanto devoram um bife gordo sem a menor preocupação. (...) Não é nada evidente que o aborto de um feto de um mês seja assassinato e abater um elefante adulto ou um gorila-das-montanhas plenamente senciente não o seja.”

Em "A Mão Morta de Platão", Dawkins demonstra como a filosofia essencialista do pensador grego influencia nosso pensamento ainda hoje. Para ele, essa é a origem do problema que ele chama de “mente descontínua”, uma dificuldade que o senso comum impõe para se compreender transformações pequenas e graduais. 

“Em que momento uma vítima de acidente com morte cerebral é definida como ‘morta’? Em que momento de seu desenvolvimento um embrião se torna uma ‘pessoa’? Só uma mente infectada pelo essencialismo faria essas perguntas.” 

Assim, Dawkins mostra que pautas em discussão atualmente, como aborto e eutanásia, são tratadas de forma rasteira quando se leva em conta apenas as convicções religiosas, sem o ponto de vista científico.

A mente descontínua, para Dawkins, dificulta a compreensão da evolução das espécies como um processo gradual que se dá ao longo de um período muito grande de tempo: “Se uma máquina do tempo pudesse trazer para você o seu ducentésimo milionésimo bisavô, você o comeria com molho tártaro e uma fatia de limão. Ele foi um peixe.”

Como os grandes divulgadores científicos, ele nos faz enxergar a realidade por ângulos incomuns, distante das lentes empoeiradas da banalidade cotidiana, e reavaliar conceitos há muito impregnados na sociedade. Afinal, a natureza, como Dawkins escreve, “é indiferente a algo tão pouco abrangente como os valores humanos.”

O título acima é de autoria deste site.



Aviso de novo post por e-mail

Richard Dawkins afirma por que tem fama de mau

Ateísmo é a evolução lógica da religião, diz Richard Dawkins

Moral avançou sem precisar da religião, afirma Dawkins




Peter Higgs acusa Dawkins de ser ateu fundamentalista

A responsabilidade dos comentários é de seus autores.

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Onde Deus estava quando houve o massacre nos EUA?

Deixe a sua opinião aí embaixo, no espaço de comentários.

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Papa afirma que casamento gay ameaça o futuro da humanidade

Bento 16 disse que as crianças precisam de "ambiente adequado" O papa Bento 16 (na caricatura) disse que o casamento homossexual ameaça “o futuro da humanidade” porque as crianças precisam viver em "ambientes" adequados”, que são a “família baseada no casamento de um homem com uma mulher". Trata-se da manifestação mais contundente de Bento 16 contra a união homossexual. Ela foi feita ontem (9) durante um pronunciamento de ano novo a diplomatas no Vaticano. "Essa não é uma simples convenção social", disse o papa. "[Porque] as políticas que afetam a família ameaçam a dignidade humana.” O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) ficou indignado com a declaração de Bento 16, que é, segundo ele, suspeito de ser simpático ao nazismo. "Ameaça ao futuro da humanidade são o fascismo, as guerras religiosas, a pedofilia e o abusos sexuais praticados por membros da Igreja e acobertados por ele mesmo", disse. Tweet Com informação

Pastor mirim canta que gay vai para o inferno; fiéis aplaudem

Garoto tem 4 anos Caiu na internet dos Estados Unidos um vídeo onde, durante um culto, um menino de quatro anos canta aos fiéis mais ou menos assim: “Eu sei bem a Bíblia,/Há algo de errado em alguém,/Nenhum gay vai para o céu”. Até mais surpreendente do que a pregação homofóbica do garotinho foi a reação dos fiéis, que aplaudiram de pé, em delírio. Em uma versão mais longa do vídeo, o pai, orgulhoso, disse algo como: “Esse é o meu garoto”. A igreja é a Apostólica do Tabernáculo, do pastor Jeff Sangl, de Greensburg, Indiana. Fanático religioso de amanhã Íntegra do vídeo. Com informação da CBS . Pais não deveriam impor uma religião aos filhos, afirma Dawkins. julho de 2009 Intolerância religiosa no Brasil

Cristãos xingam aluna que obteve decisão contra oração

Jessica sofre hostilidades desde meados de 2011 Uma jovem mandou pelo Twitter uma mensagem para Jessica Ahlquist (foto): “Qual é a sensação de ser a pessoa mais odiada do Estado? Você é uma desgraça para a raça humana.”  Outra pessoa escreveu: “Espero que haja muitos banners [de oração] no inferno quando você lá estiver apodrecendo, ateia filha da puta!” Jessica, 16, uma americana de Cranston, cidade de 80 mil habitantes de maioria católica do Estado de Rhode Island, tem recebido esse tipo de mensagem desde meados de 2011, quando recorreu à Justiça para que a escola pública onde estuda retirasse uma oração de um mural bem visível, por onde passam os alunos. Ela é uma ateia determinada e leva a sério a Constituição americana, que estabelece a separação entre o Estado e a religião. Os ataques e ameaças a Jessica aumentaram de tom quando um juiz lhe deu ganho de causa e determinou a retirada da oração. Nos momentos mais tensos, ela teve de ir à escola sob a proteção da

Anglicano apoia união gay e diz que Davi gostava de Jônatas

Dom Lima citou   trechos da Bíblia Dom Ricardo Loriete de Lima (foto), arcebispo da Igreja Anglicana do Brasil, disse que apoia a união entre casais do mesmo sexo e lembrou que textos bíblicos citam que o rei Davi dizia preferir o amor do filho do rei Saul ao amor das mulheres. A data de nascimento de Davi teria sido 1.040 a.C. Ele foi o escolhido por Deus para ser o segundo monarca de Israel, de acordo com os livros sagrados hebraicos. Apaixonado por Jônatas, ele é tido como o único personagem homossexual da Bíblia. Um dos trechos os quais dom Lima se referiu é I Samuel 18:1: “E sucedeu que, acabando ele de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou, como a sua própria alma”. Outro trecho, em Samuel 20:41: “E, indo-se o moço, levantou-se Davi do lado do sul, e lançou-se sobre o seu rosto em terra, e inclinou-se três vezes; e beijaram-se um ao outro, e choraram juntos, mas Davi chorou muito mais”. Em II Samuel 1:26, fica claro p

Adventista obtém direito de faltar às aulas na sexta e sábado

Quielze já estava faltando e poderia ser reprovada Quielze Apolinario Miranda (foto), 19, obteve do juiz Marcelo Zandavali, da 3ª Vara Federal de Bauru (SP), o direito de faltar às aulas às sextas-feiras à noite e aos sábados. Ela é fiel da Igreja Adventista do Sétimo Dia, religião que prega o recolhimento nesses períodos. A estudante faz o 1º ano do curso de relações internacionais da USC (Universidade Sagrado Coração), que é uma instituição fundada por freiras na década de 50. Quielze corria o risco de ser reprovada porque já não vinha comparecendo às aulas naqueles dias. Ela se prontificou com a direção da universidade em apresentar trabalhos escolares para compensar a sua ausência. A USC, contudo, não aceitou com a alegação de que não existe base legal para isso. Pela decisão do juiz, a base legal está expressa nos artigos 5º e 9º da Constituição Federal e na lei paulista nº 12.142/2005, que asseguram aos cidadãos a liberdade de religião. Zandavali determinou

Na última entrevista, Hitchens falou da relação Igreja-nazismo

Hitchens (direita) concedeu  a última entrevista de  sua vida a Dawkins da  New Statesman Em sua edição deste mês [dezembro de 2011], a revista britânica "New Statesman" traz a última entrevista do jornalista, escritor e crítico literário inglês Christopher Hitchens, morto no dia 15 [de dezembro de 2011] em decorrência de um câncer no esôfago.