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As três batalhas contra Deus, a dos iluministas, David Strauss e Darwin

por Voltaire Schilling

O signo da modernidade é também o signo da ascensão do ateísmo. Esta constatação do declínio de Deus tem sido feita tanto pelos intelectuais e cientistas, como também pelos líderes das grandes religiões instituídas. Especialmente esta é a opinião dos papas católicos desde o Syllabus de 1873 de Pio IX, que lançou um anátema de 80 artigos contra o mundo moderno, até a última encíclica de Bento XVI, a Spe Salvis, de 16/12/2007.


1ª - Iluminismo e Deísmo

A moderna contestação à existência de um Deus moral, hábil e capaz de influenciar os destinos humanos e responsável mor pelo bom andamento das coisas do universo, é obra do Iluminismo europeu do século XVIII. Se bem que a maioria dos filósofos daquela época, como Diderot, Voltaire e Kant (*), se refugiassem no deísmo - a crença numa poderosa força racional, num primeiro motor que deu impulso ao cosmo e à vida, não indo além disso, não chegaram ao extremo de abraçar o ateísmo. Para eles Deus fundia-se com a Razão.

Esta bandeira, a do ateísmo, foi empunhada sim por dois pensadores assumidamente materialistas, contemporâneos deles: o barão D´Holbach e o filósofo e médico Offray de La Mettrie, que abandonaram qualquer tipo de conciliação com a ideia da existência de Deus, sem todavia jamais atingirem a celebridade dos citados acima.

Suas obras mais significativas foram Système de la nature (O Sistema da Natureza), que D´Holbach publicou em 1770, e o L’Homme-Machine (O Homem Máquina), um pequeno ensaio que La Mettrie fez aparecer em 1784, onde refutou a dualidade entre corpo (mortal, perecível) e alma (imortal, perpétua), defendendo a total interação entre eles.

Assim, nesta questão da existência ou não de Deus o Partido dos Filósofos dividiu-se entre os deístas e os materialistas, sendo que para muitos os deístas eram apenas ateístas que não queriam assumir as consequências últimas, morais e psicológicas, da negação total da existência de um ser superior.

No campo da ciência seu representante mais efetivo foi do astrônomo e físico francês marquês de Laplace que, por meio do seu livro Méchanique Celeste, A Mecânica Celeste, de 1799-1825, defendeu uma cosmografia independente da presença divina, substituindo o ato da criação pela teoria da nebulosa.

Deus abalado

Os resultados objetivos dessa primeira Batalha contra Deus, travada pelos iluministas, tanto contra o clero católico como contra os pastores protestantes, denunciados por eles como insufladores do fanatismo e do atraso do povo, proporcionaram o surgimento do Estado laico (proclamado tanto pela República norte-americana, como, em seguida, pela Revolução Francesa de 1789), assim como o ensino público secularizado e a afirmação da tolerância religiosa em geral.

Manifestação simbólica deste repúdio à religião e a Deus, foi a abolição do calendário cristão e a proposta dos revolucionários de rebatizar a catedral de Notre-Dame de Paris como “um Templo da Razão”. Proposição que também recebeu a adesão do filósofo positivista Auguste Comte que por igual criou um calendário próprio para expor o seu rompimento com o mundo teológico.

Certamente tudo isto abriu caminho para as políticas radicais de transformação social na medida em que, com a ausência de Deus, coube aos homens e à sociedade repararem as injustiças e as desigualdades sociais.

2ª - Idealistas alemães

O segundo campo onde se travou a Segunda Batalha contra Deus foi a Alemanha da primeira metade do século XIX, cujas preliminares foram lançadas pelo livro intitulado Leben Jesu (“Vida de Jesus, examinada criticamente”), escrita por David Strauss e que causou furor desde sua aparição em 1835 (Nietzsche, por exemplo, admitiu que deixou de ser um crente e um cristão quando o leu ainda jovem).

Strauss, juntamente com os irmãos Bauer, Bruno, Edgar e Egbert, o filósofo Ludwig Feuerbach e o doutor Karl Marx, pertencia a uma nova corrente da filosofia alemã denominada Die Junge Hegelians, os jovens hegelianos, um grupo mais radical de discípulos do famoso filósofo G.W.F.Hegel, falecido em 1831, catedrático de filosofia da Universidade de Berlim. Desejavam aprofundar a dialética herdada dele, tido como a maior autoridade da metafísica alemã, com o intento de atacar o que entendiam ser a base do poder autoritário do estado prussiano: a religião.

Assim sendo, orientaram seus estudos, como Spinoza fizera no passado com os Evangelhos (no Tratado Teológico-Político, de 1670), no sentido de apresentar uma versão secularizada e não divina da figura de Jesus Cristo, ao tempo em que concentravam suas crítica no poder que os sacerdotes, a “padrecada” como os chamava Kant, exerciam sobre a sociedade da época. O alvo deles foi a Theologia Crucis, a Teologia da Cruz, defendida por Lutero e que dava suporte doutrinário ao Movimento Protestante alemão.

Marx, todavia, abriu dissidência com seus camaradas, os jovens hegelianos, particularmente os irmãos Bauer (os apelidou Die heilige Familie oder Kritik der kritischen Kritik, “A Sagrada Família”, editado em 1844), afirmando que o verdadeiro poder não se concentrava na religião mas sim no mundo material, na posse de propriedades e capitais. No mundo material que ele ergueu, Deus desapareceu. Tornou-se uma hipótese desnecessária como para Laplace.

A frase síntese que de certo modo definiu o pensamento deles foi dita por Marx mesmo: Religion is das Opium des Volke (“A religião é o ópio do povo”), concluindo que a religião, operação alienada, uma ilusão, era o reflexo invertido do mundo real.





O resultado objetivo do ateísmo dessa geração de idealistas alemães, fruto dessa segunda Batalha contra Deus, foi preparar o caminho para o Movimento Socialista e para o surgimento de partidos da classe trabalhadora, primeiro na Alemanha e depois pelo restante da Europa (a Internacional Socialista, fundada em 1864), bem como para a secularização geral do Estado Alemão, operação executada constitucionalmente pela República de Weimar (1919-1933) e depois, tanto pela República Federal Alemã (1948-1991) como pela República Democrática Alemã (1949-1989).

No século XX os principais seguidores dessa posição ateia foram os integrantes da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Marcuse, etc...), surgida a partir de 1923.

3ª - Darwinismo e ateísmo

Caudatária da sociologia se Herbert Spencer (1820-1903), difusora da ideia evolucionista e da expressão “sobrevivência dos mais aptos”, a biologia de Charles Darwin foi o mais formidável golpe que o ateísmo provocou na concepção religiosa da vida. Com ela abriu-se a terceira Batalha contra Deus, travada preferencialmente em solo britânico (e hoje transferido para os Estados Unidos). Desta feita foi a própria concepção da criação das espécies, particularmente a do Homem, quem entrou na liça.

A espetacular recepção que o livro dele Origin of Species, “A Origem das Espécies”, surgido em 1859, vendendo milhares de exemplares em tempo curtíssimo, consagrando-se como primeiro best-seller da literatura cientifica moderna, já foi sintoma da mudança da mentalidade do setor mais esclarecido da população, ávido em buscar outras explicações que não fossem as extraídas dos Livros Sagrados e dos sermões dos sacerdotes. E, por igual, indicativa da necessidade de haver outro entendimento para os fenômenos da natureza baseados nos princípios gerais do Iluminismo.

Lançadas em meio a desafios de toda ordem, do clima, do terreno e da ameaça das demais formas de vida, as espécies, concluiu o famoso naturalista, se fizeram a si mesmo, se auto-constituiram por assim dizer. Não foram geradas por Deus num só modelo ou forma, mas sim se auto-elaborando e se adaptando ao longo da história natural, que datava de milhares e milhares de anos.

Por conseguinte não houve um ato de criação que as produzisse de uma só feita como constava no Gênese, visto que estavam em constante modificação, bem mais anterior ao tempo da Data da Criação fixada em 4004 a .C. acolhida pelos religiosos como o Ano da Criação.

Eram as respostas dadas pelos seres vivos aos sucessivos obstáculos que de fato esculpiam e explicavam a diversidade biológica existente na Terra. Sujeitas à seleção natural imposta pela sobrevivência do mais apto (expressão criada pelo sociólogo Herbert Spencer), as espécies desapareciam ou se aperfeiçoavam sem que houvesse qualquer tipo de intervenção divina nesse processo. Darwin, enfim, banira Deus da vida natural.

Avesso ao envolvimento pessoal e direto com seus inúmeros antagonistas, Darwin encontrou em Thomas Huxley, um emérito médico, filósofo e naturalista, o seu qualificado escudeiro para enfrentar os anátemas que desabaram sobre ele vindos do casta sacerdotal.

Particularmente os do arcebispo Samuel Wilberforce com quem Huxley – que então se auto-designou como o buldogue de Darwin - protagonizou notável polêmica, um dos mais famosos debates, um clássico da ciência contra a religião, travado em Oxford, pela Associação Britânica para o Avanço da Ciência, em 30 de junho de 1860.

Décadas mais tarde, foi a vez de Sigmund Freud, um admirador de Darwin e cientista da natureza como ele, assumir a tarefa de banir Deus da constituição da alma humana. Para ele, como expôs tanto no ensaio Totem und Tabu, Totem e Tabu, de 1913, seguido do Die Zukunft eine Illusion, O Futuro de uma Ilusão, de 1927, o culto religioso e a crença em Deus originavam-se de um parricídio, o assassinato cometido pelos filhos da horda primal contra o patriarca que monopolizava as fêmeas.

O ato da formação da religião vinha assim manchado pelo sangue derramado durante o Banquete Totêmico patrocinado pelos filhos rebelados contra o pai. A prática religiosa, para Freud, assemelhava-se ao comportamento e as fantasias de um neurótico. Tudo não passava pois senão que uma grande ilusão tendente a desaparecer no futuro da humanidade. Darwin e Freud, generais emblemáticos dessa Terceira Batalha contra Deus, deram impulso a que as ciências naturais e as psicológicas também acelerassem passo rumo à secularização geral das pesquisas e dos costumes.

A reação antidarwinista

O palco maior da reação às teorias de Darwin tem sido os Estados Unidos, mais do que a Grã-Bretanha, pátria de Richard Dawkins e de Christopher Hitchens, os dois mais conhecidos difusores do neodarwinismo (um na área científica e o outro no campo midiático). A primeira forma de contestação partiu dos defensores do Criacionismo, em geral expressado por pastores batistas e de outras seitas pentecostais.

Baseados no Bible Belts, o Cinturão Bíblico, composto pelos estados sulistas nos quais a presença religiosa dos Evangélicos é mais atuante, os Criacionistas têm procurado impedir o ensino das teorias evolucionistas e darwinistas nas escolas públicas, considerando-as expressões de uma modernidade materialista e atéia que voltou suas costas a Deus.

Um tanto mais sofisticada é a teoria do Desenho Inteligente, cujo representante mais conhecido é o bioquímico norte-americano Michael Behe (in The Edge of Evolution) que, com argumentação, mais científica do que religiosa, procurou refutar alguns aspectos afirmativos do darwinismo, propondo a existência de um “desenhista original” que teria projetado determinadas características das espécies que não estariam submetidas ou afetadas pelo processo da evolução ou da luta pela sobrevivência.

Provavelmente esta foi uma das razões que tenha levado a dupla neodarwinista britânica a um cerrado ataque à religião e a Deus em suas últimas publicações. Mas também deve se considerar o efeito da tensão gerada no mundo anglo-saxão pela surpreendente restauração e expansão do fundamentalismo religioso nos últimos anos que, segundo Christopher Hitchens, estaria alimentando o conflito sem fim no Oriente Médio, contribuindo para a instabilidade da ordem mundial numa escala sem precedentes.

Voltaire Schilling professor e historiador. Esse texto foi publicado originalmente no Portal Terra.



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