por Reinaldo José Lopes
jornalista de ciência da Folha de S.Paulo
É comum que as pessoas me perguntem, numa mistura de perplexidade, divertimento e (suspeito) certa raiva, por que um sujeito religioso como eu resolveu vestir o manto de defensor de Darwin, ou para ser mais exato, da teoria da evolução (que nasceu com Darwin, é claro, mas se tornou muito mais complexa e sólida do que a visão original do naturalista britânico).
Tem gente que acha que se trata de mero sintoma de confusão mental (“Se você realmente entendesse as implicações do que está falando, deixaria de ser religioso ou pararia de louvar Darwin”, diz esse povo).
"Seguidores da Igreja Católica recebem permissão papal para aceitar a validade científica da teoria" |
Há os que apostam num ato deliberado de insinceridade, um teatrinho pessoal muito útil para convencer os incautos a aceitar ideias malignas de um dos dois lados da questão. Nessa vertente, já me chamaram de “ateu do bico doce” e “criacionista disfarçado” no espaço de poucos dias. Enfim, o ser humano é um bicho horroroso, especialmente quando criado solto na internet, mas isso você já sabia, certo?
Eu poderia responder de um jeito simples: como católico, tenho liberação da chefia para defender a teoria da evolução, e pronto. (Pra quem ainda não sabe, seguidores da Igreja Católica recebem permissão papal — de início, cautelosa — para aceitar a validade científica da teoria desde os anos 1950, no pontificado de Pio 12, e a compreensão sobre a realidade factual da evolução só cresceu nos meios católicos desde então, em especial durante o papado de João Paulo 2º).
Acho que isso pode até ser parte da explicação, mas a questão central é algo muito mais básico. Do meu ponto de vista, não dá para ser um religioso sincero se você não se importa com a Verdade, aquela com V maiúsculo, aquela que qualquer pessoa de boa vontade e com a razão intacta é capaz de enxergar e compreender no mundo à sua volta.
Nesse ponto, não há o que discutir: a teoria da evolução conferiu à humanidade as lentes necessárias para enxergar uma Verdade maiúscula sobre a diversidade dos seres vivos e as relações de parentesco profundo entre eles — inclusive entre as que existem entre um chimpanzé, um ipê-amarelo e os orgulhosos Filhos de Adão e Filhas de Eva (como diz C.S. Lewis em suas inesquecíveis “Crônicas de Nárnia”).
É parte do paradoxo do que significa ser humano que essa Verdade (assim como outras verdades científicas) possa ser apreendida por qualquer pessoa que se dê ao trabalho de estudá-la com coração sincero, enquanto a crença em Deus (para mim, também supremamente verdadeiro) exija o salto existencial que chamamos de fé, ainda que também possa ser auxiliada pela reflexão racional.
Não sei explicar o paradoxo, mas ao menos sou capaz de deixar de lado a exasperação que já senti ao conversar com meus amigos ateus sobre o problema. Aprendi que, se eles não dão o salto de fé que dei desde que me entendo por gente, frequentemente é por um amor à Verdade tão feroz e sincero que não lhes permite aceitar crença sem evidências.
Agradeço a Deus por esses devotos de são Tomé (se é que eles me permitem chamá-los assim), e sou ainda mais grato por ter a ciência como linguagem comum, na qual todos podemos nos encontrar e avançar juntos na compreensão da complexidade do Cosmos.
Não custa lembrar, afinal, que as religiões continuam a florescer, mas num mundo em que há cada vez mais espaço para o ceticismo e a descrença. Passou da hora de agirmos uns com os outros com mais decência do que um troll da internet.
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Comentários
Reflexão racional leva justamente à descrença em deuses e não o contrário.
A Evolução é absolutamente eficaz em explicar o surgimento das diversas estruturas e funções dos organismos vivos, e é sustentada por diversos ramos da ciência: A anatomia, a embriologia, a genética, a paleontologia, a biologia molecular, todas elas são unânimes em demonstrar a Evolução como um processo factual, e a Seleção Natural como o principal fator de impulso evolucionário (Junto da Mutação, da Deriva Genética e da Migração, que também oferecem importantíssimas contribuições). Apesar dessa sustentação, algumas pessoas insistem em defender uma resposta alternativa: A Teoria do Design Inteligente.
O próprio nome “Teoria do Design Inteligente” é uma falsidade. Primeiro, pelo termo “Teoria”. Teoria, em Ciência, é o mais alto grau de verdade que algo pode alcançar. Dentro da ciência, “teoria” pode ser lido como “o mais próximo que a ciência pode chegar de um fato”. Muitos tem a ideia que uma Teoria é uma ideia que, quando comprovada, vira uma lei, mas isso está errado. Uma explicação só vira uma teoria após exaustivos testes, exaustivas discussões dentro da academia e exaustivas confirmações. Teorias são sustentadas por evidências, não meras conjecturas. Antes de passar por esse processo, uma teoria é uma Hipótese – uma ideia. Essa ideia é então testada, geralmente levando a um artigo que irá confirmá-la ou derrubá-la. Outros estudos que se apoiem nesta hipótese também serão, indiretamente, testes dela. Uma teoria é correta até ser derrubada – quando inconsistências surgem, a teoria pode ser reformulada em face destas novas observações, ou substituída por completo. E, no que toca à evolução, essas inconsistências ainda não emergiram. A Lei científica é uma descrição, geralmente matemática, e tem o mesmo valor de verdade da Teoria. Ambas são embasadas por evidências empíricas – a Teoria explica, enquanto a Lei descreve. A “teoria” do Design Inteligente não pode ser uma teoria por não possuir embasamento empírico, não ter comprovação, como demonstraremos ao longo dessa série.
A Evolução é a base da biologia moderna, e existem milhares de pesquisadores estudando evolução no mundo todo. A Evolução tem sido testada, direta ou indiretamente desde a sua proposição por Darwin em 1859. São 158 anos de testes. E, nestes 158 anos, a Evolução se manteve de pé como a explicação mais adequada aos olhos dos cientistas que trabalham com Ciências Biológicas (a única opinião que importa: a de quem entende). Isso seria impossível de acontecer se a Teoria fosse falha – não se edifica uma casa tão sólida quanto toda a Biologia sem uma fundação igualmente sólida. A casa já teria ruído se a base fosse falha.
A Evolução é uma Teoria Científica, ou seja, uma explicação sustentada por evidências, corroboradas por milhares de estudos independentes. O Design Inteligente não.
https://muralcientifico.com/2019/01/16/analisando-as-falhas-de-artigos-cientificos-criacionistas-parte-1-introducao/
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