Documento da Congregação do Vaticano ignora a vida real dos transgêneros |
para revista America
Nos últimos anos, o Vaticano (incluindo os papas, as Congregações e os dicastérios) expressou preocupação com a “teoria de gênero” e a “ideologia de gênero”.
Teoria de gênero é um termo notoriamente escorregadio. Grosso modo, refere-se ao estudo de gênero e da sexualidade, e do modo como essas duas realidades são determinadas naturalmente (isto é, biologicamente) e/ou socialmente (isto é, culturalmente).
Geralmente, ele inclui o estudo das experiências de gays e lésbicas, bissexuais e transexuais, e de todos aqueles que se identificam como “queer”, outro termo frequentemente ambíguo que pode significar (mas nem sempre significa) uma decisão de se identificar fora de categorias como masculino ou feminino, gay ou hetero.
Para alguns críticos, a teoria de gênero também representa uma “ideologia” que procura se impor aos outros, “encorajando” ou “forçando” algumas pessoas, especialmente jovens, a questionar e a reafirmar a sua própria sexualidade e gênero.
Em alguns círculos eclesiais, especialmente no mundo em desenvolvimento, ela está frequentemente ligada a uma forma de “colonialismo ideológico” que procura impor as ideias ocidentais de sexualidade e gênero às nações em desenvolvimento. O papa Francisco advertiu várias vezes contra essa crença.
O novo documento da Congregação deve ser elogiado pelo seu apelo à “escuta” e ao “diálogo”. O subtítulo é importante: “Para uma via de diálogo sobre a questão do genderna educação”. É um convite explícito ao diálogo, que todos devem acolher.
Ele fala de um “caminho”, que indica que a Igreja ainda não chegou ao destino. Enfoca a “questão” da teoria de gênero na educação, que deixa algum grau de abertura e, portanto, dirige-se principalmente a educadores e “formadores”, incluindo os responsáveis pela formação de padres e membros de ordens religiosas.
Outro aspecto positivo desse documento é o seu claro convite a “respeitar cada pessoa na sua peculiar e diferente condição” e a sua oposição ao “bullying, violência, insultos e discriminações injustas”. Ele também elogia a capacidade de acolher “todas as legítimas expressões da pessoa [...] com respeito”.
A conclusão do documento fala do caminho do diálogo, que inclui “ouvir, analisar e propor”. Como tal, deixa espaço aberto para desdobramentos posteriores e também evita algumas das duras expressões de outros pronunciamentos vaticanos sobre sexualidade e, especialmente, sobre homossexualidade.
Permitam-me, então, me engajar no diálogo respeitoso pedido, como alguém que ministra para as pessoas LGBT.
O que a Congregação propõe? Essencialmente, e sem nenhuma surpresa, o seu documento reafirma a visão tradicional católica da sexualidade: homens e mulheres são criados (como heterossexuais) com papéis sexuais e de gênero fixos.
Essa visão tradicional, no entanto, é contradita por aquilo que a maioria dos biólogos e psicólogos entende agora sobre sexualidade e gênero. Esses avanços contemporâneos na compreensão da sexualidade humana e de gênero foram postos de lado pela Congregação em favor de uma compreensão binária da sexualidade. Até mesmo o termo “orientação sexual” é posto entre aspas no documento, como que questionando essa própria noção.
O cerne do argumento da Congregação está nesta compreensão de gênero: “Esta separação [entre sexo e gênero] tem como consequência a diferenciação de diversas ‘orientações sexuais’ que já não se apresentam definidas pela diferença sexual entre masculino e feminino, mas podem assumir outras formas, determinadas somente pelo indivíduo radicalmente autônomo.”.
Uma objeção a essa proposição é que ela ignora a experiência da vida real das pessoas LGBT. De fato, os principais parceiros de conversa do documento parecem ser os filósofos, os teólogos e os documentos da Igreja e declarações papais mais antigos — e não os biólogos ou os cientistas, nem os psiquiatras ou os psicólogos, nem mesmo as pessoas LGBT e suas famílias.
Se mais pessoas tivessem sido incluídas no diálogo, a Congregação provavelmente encontraria espaço para a compreensão agora comumente aceita de que a sexualidade não é escolhida por uma pessoa, mas, ao contrário, faz parte do modo como elas são criadas.
De fato, para um documento que se baseia tão fortemente (embora implicitamente) na lei natural, ele ignora o que cada vez mais entendemos sobre o mundo natural, onde vemos homens e mulheres atraídos pelo mesmo sexo, homens e mulheres que sentem uma variedade de sentimentos sexuais ao longo de suas vidas, e homens e mulheres que se encontram mais em um espectro do que em qualquer lugar fixo quando se trata de sexualidade e, ocasionalmente, até mesmo de gênero.
A Congregação também sugere que as discussões sobre identidade de gênero envolvem uma escolha intencional de gênero por parte de um indivíduo. Mas as pessoas que são transgênero relatam que não escolhem sua identidade, mas a descobrem através de suas experiências como seres humanos em um mundo social.
De novo, o documento negligencia amplamente as discussões sobre novos entendimentos científicos e descobertas sobre gênero. Ele se baseia principalmente na crença de que o gênero é determinado unicamente pela genitália visível da pessoa, o que a ciência contemporânea mostrou ser uma maneira incorreta (e às vezes até lesiva) de categorizar as pessoas.
O gênero também é biologicamente determinado pela genética, pelos hormônios e pela química cerebral — coisas que não são visíveis no nascimento.
O documento da Congregação se baseia fortemente nas categorias de “masculino” e “feminino” que foram moldadas séculos atrás e nem sempre com os métodos científicos mais precisos.
O documento também se sustenta sobre a noção de “complementaridade”, o que significa que, com base em seu gênero (masculino e feminino), os homens e as mulheres têm papéis separados.
Em uma frase que certamente causará admiração, a Congregação escreve: “A mulher tem a capacidade de compreender a realidade de modo único: sabendo resistir às adversidades...”.
Os homens não? Tais ideias reforçam os estereótipos e impedem que homens e mulheres se elevem acima daqueles construtos culturais que o Vaticano frequentemente denuncia com razão.
O aspecto mais lamentável desse documento é o modo como a Congregação entende as pessoas transgênero (estranhamente, em um documento sobre gênero e sexualidade, as palavras “homossexual” ou “homossexualidade” estão ausentes.)
Considere-se esta passagem: “Esta oscilação entre masculino e feminino torna-se, no final, uma exposição somente ‘provocatória’ contra os chamados ‘esquemas tradicionais’ que não têm em conta o sofrimento daqueles que vivem numa condição indeterminada. Tal concepção procura aniquilar a natureza (tudo o que recebemos como fundamento prévio do nosso ser e todas as nossas ações no mundo), enquanto ali é implicitamente reafirmado”.
Nessa formulação, as pessoas transgênero estão sendo “provocativas” e estão, consciente ou inconscientemente, tentando “aniquilar a natureza”. Amigos e familiares que acompanharam uma pessoa transgênero através de suas tentativas de suicídio, de seu desespero em relação à adaptação na sociedade em geral, ou da aceitação de que Deus a ama achará essa frase desconcertante e até mesmo ofensiva.
Talvez a resposta mais ponderada a essa abordagem venha de um diácono católico, Ray Dever, que tem um filho transgênero e escreveu sobre a experiência de sua família na revista U.S. Catholic.
Como ele escreve, “qualquer pessoa com qualquer experiência significativa em primeira mão com indivíduos transgênero ficaria confusa com a sugestão de que pessoas trans são, de algum modo, o resultado de uma ideologia. É um fato histórico que, muito antes de haver programas de estudos de gênero em qualquer universidade ou muito antes de a expressão ‘ideologia de gênero’ ser falada pela primeira vez, as pessoas transgênero estavam presentes, eram reconhecidas e até mesmo valorizadas em algumas culturas ao redor do mundo”.
O resultado mais provável de curto prazo do documento “Homem e mulher os criou” será fornecer munição para os católicos que negam a realidade da experiência transgênero, que rotulam as pessoas transgênero como simples ideólogas e que negam as suas experiências da vida real. Muito provavelmente, ele contribuirá para um maior sentimento de isolamento, um maior sentimento de vergonha e uma maior marginalização daqueles que já são marginalizados em sua própria Igreja: as pessoas transgênero.
Voltemos ao aspecto mais positivo desse documento, que poderia ser o resultado de longo prazo: o chamado à escuta e ao diálogo. A Congregação parece sincera em seu convite. A Igreja, assim como o restante da sociedade, ainda está aprendendo sobre as complexidades da sexualidade humana e do gênero. O próximo passo, então, poderia ser que a Igreja ouça as respostas daqueles que esse documento afeta mais diretamente: as próprias pessoas LGBT.
Que o diálogo comece.
Com tradução de Moisés Sbardelotto para IHU Online. O título acima é de Paulopes.
O aspecto mais lamentável desse documento é o modo como a Congregação entende as pessoas transgênero (estranhamente, em um documento sobre gênero e sexualidade, as palavras “homossexual” ou “homossexualidade” estão ausentes.)
Considere-se esta passagem: “Esta oscilação entre masculino e feminino torna-se, no final, uma exposição somente ‘provocatória’ contra os chamados ‘esquemas tradicionais’ que não têm em conta o sofrimento daqueles que vivem numa condição indeterminada. Tal concepção procura aniquilar a natureza (tudo o que recebemos como fundamento prévio do nosso ser e todas as nossas ações no mundo), enquanto ali é implicitamente reafirmado”.
Nessa formulação, as pessoas transgênero estão sendo “provocativas” e estão, consciente ou inconscientemente, tentando “aniquilar a natureza”. Amigos e familiares que acompanharam uma pessoa transgênero através de suas tentativas de suicídio, de seu desespero em relação à adaptação na sociedade em geral, ou da aceitação de que Deus a ama achará essa frase desconcertante e até mesmo ofensiva.
Talvez a resposta mais ponderada a essa abordagem venha de um diácono católico, Ray Dever, que tem um filho transgênero e escreveu sobre a experiência de sua família na revista U.S. Catholic.
Como ele escreve, “qualquer pessoa com qualquer experiência significativa em primeira mão com indivíduos transgênero ficaria confusa com a sugestão de que pessoas trans são, de algum modo, o resultado de uma ideologia. É um fato histórico que, muito antes de haver programas de estudos de gênero em qualquer universidade ou muito antes de a expressão ‘ideologia de gênero’ ser falada pela primeira vez, as pessoas transgênero estavam presentes, eram reconhecidas e até mesmo valorizadas em algumas culturas ao redor do mundo”.
O resultado mais provável de curto prazo do documento “Homem e mulher os criou” será fornecer munição para os católicos que negam a realidade da experiência transgênero, que rotulam as pessoas transgênero como simples ideólogas e que negam as suas experiências da vida real. Muito provavelmente, ele contribuirá para um maior sentimento de isolamento, um maior sentimento de vergonha e uma maior marginalização daqueles que já são marginalizados em sua própria Igreja: as pessoas transgênero.
Voltemos ao aspecto mais positivo desse documento, que poderia ser o resultado de longo prazo: o chamado à escuta e ao diálogo. A Congregação parece sincera em seu convite. A Igreja, assim como o restante da sociedade, ainda está aprendendo sobre as complexidades da sexualidade humana e do gênero. O próximo passo, então, poderia ser que a Igreja ouça as respostas daqueles que esse documento afeta mais diretamente: as próprias pessoas LGBT.
Que o diálogo comece.
Com tradução de Moisés Sbardelotto para IHU Online. O título acima é de Paulopes.
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