Pular para o conteúdo principal

Instrumentalização do cristianismo pela política tem de ser combatida com urgência

'Qual o legado que os cristãos
 querem deixar para a sociedade?
Tolerância ou intolerância?'

por Ricardo Oliveira da Silva

[texto opinativo] Alguns dias atrás a senadora Jeanine Añez se proclamou presidenta interina da Bolívia, após a renúncia de Evo Morales, exibindo uma enorme Bíblia nas mãos e afirmando que Deus havia permitido que a Bíblia voltasse ao Palácio presidencial. 

Nas eleições presidenciais brasileiras do ano passado o candidato que ganhou o pleito usou como um dos motes de campanha a frase “Deus acima de tudo”. 

Esses dois fatos são sintomáticos de uma época onde ganha cada vez mais força, no Brasil e em outros países da América Latina, a simbiose entre poder político e religioso por parte de certos grupos sociais.

O vínculo entre religião e política possui uma longa tradição na história do Cristianismo. Esse é um traço que também se verifica na história do Islamismo e do Judaísmo, para ficar em dois exemplos de que tenho um pouco de conhecimento. Contudo, quero me centrar nesse artigo no cristianismo, pois essa é a religião que hoje está sendo mais instrumentalizada por determinados grupos para fins políticos na sociedade brasileira.

As origens do cristianismo estão relacionadas com as angústias e os anseios da população judaica que vivia sob domínio romano no século I E.C (Era Comum). 

Os princípios éticos e teológicos que formariam a base dessa religião foram proferidos por Jesus Cristo, que se intitulava o Messias, ou seja, o filho de Deus que traria redenção contra os pecados da humanidade. Nos séculos posteriores a sua morte, ocorrida em 33 E.C, seus seguidores compilaram seus ensinamentos em um conjunto de textos que daria origem à Bíblia.

O cristianismo surgiu como uma corrente no interior da religião judaica e gradativamente se expandiu no interior do Império Romano, separando-se do Judaísmo.

Inicialmente, os cristãos foram perseguidos pelas autoridades de Roma que os viam como uma ameaça política por se recusarem a adorar o Imperador e por rejeitarem os Deuses do Império. 

A simbiose entre política e religião era uma pedra angular na Roma Antiga. Em 313, após longo período de perseguições e mortes, o cristianismo foi legalizado pelo então Imperador Constantino. Mais tarde, no ano de 380, o Imperador Teodósio tornou o cristianismo a religião oficial do Império Romano, assim como proibiu o culto aos antigos Deuses.

A história do cristianismo dos primeiros séculos, de religião perseguida para religião oficial do Estado, esteve relacionada ao interesse dos Imperadores Romanos em ter o apoio de uma religião que ganhava cada vez mais força social como antídoto ao definhamento do próprio Império Romano. Por outro lado, as lideranças cristãs tinham interesse na proximidade com o poder político para impulsionar ainda mais a sua religião, organizada institucionalmente na Igreja Católica. 

A partir do final do século IV, de religião perseguida o cristianismo se tornou uma religião perseguidora dos indivíduos e grupos que professavam as antigas religiões politeístas. O judaísmo também foi alvo de perseguições.

O fim do Império Romano do Ocidente em 476 não significou o fim da influência política do cristianismo na Europa, mas sua adaptação em uma nova realidade. 

As lideranças católicas se empenharam na evangelização das populações que migraram para o interior das fronteiras do antigo Império Romano e também em ter influência junto aos líderes políticos dos novos reinos que se formaram na Europa.

Ao longo da Idade Média a Igreja Católica teve grande poder social e político entre os povos da Europa, ofuscando até mesmo o poder dos reis.

As religiões diferentes ao catolicismo foram perseguidas e até mesmo leituras cristãs alternativas sobre os ensinamentos de Cristo foram condenadas pela Igreja Católica como “heresias”.

A instauração do tribunal da Inquisição foi uma triste página da história da Igreja Católica, onde pessoas eram torturadas e mortas com o apoio do braço político secular por serem consideradas uma ameaça ao poder da Igreja Católica.

As Reformas Religiosas no século XVI puseram fim a hegemonia católica na Europa. Entre os séculos XVI e XVII inúmeras guerras ocorreram na região motivados por interesses políticos e religiosos. 

Com o tempo, os grupos reformistas como luteranos, calvinistas e puritanos procuraram exercer influência e controle político nos países que tinham força social. João Calvino (1509-1564) tornou Genebra em um Estado teocrático no século XVI, não permitindo outros cultos religiosos. 

A Igreja Católica procurou apoio nos países que ficaram fiéis a ela, como Espanha e Portugal, mantendo o espírito de combate aos “hereges protestantes” e aos praticantes de religiões diferentes do catolicismo.

O Brasil foi colonizado por Portugal a partir do século XVI. Naquela época o país ibérico vivia sob o regime do Padroado, ou seja, o país era oficialmente católico e o Rei era responsável por preservar e expandir a fé cristã, assim como era responsável por combater os “inimigos” do catolicismo. 

A colonização do Brasil, além dos interesses econômicos, foi impulsionada pelo desejo em expandir a fé católica com a evangelização das populações indígenas e o batismo dos povos que foram trazidos da África para viverem aqui como escravos. 

Religiões diferentes do catolicismo não eram permitidas no Brasil. Soma-se a isso o fato de que o catolicismo era a religião da elite colonial e uma das formas usadas para legitimar a escravidão e os massacres contra populações indígenas.

A força do catolicismo no Brasil se manteve após o período colonial, consagrado na Constituição de 1824 como religião oficial do país. 

O Brasil só deixou de ter uma religião oficial com o advento da República em 1889, que igualmente permitiu o culto público de outros credos religiosos. Entretanto, essa liberdade não era para todos os credos, vide a continuidade das perseguições perpetradas aos cultos de matriz africana. Esses fatos não abalaram substancialmente a influência religiosa e social do cristianismo, que até os dias de hoje continua sendo a religião professada pela maior parte da população brasileira.

Esse breve panorama da história do cristianismo mostra as antigas raízes dos laços entre a religião e a política. A religião pode ser pensada como uma questão teológica, e a partir disso serem discutidos seus aspectos doutrinários, os quais buscam fundamentar uma ética e um modo de vida. Contudo, a religião também é a expressão cultural de uma visão de mundo com representatividade social. E em uma sociedade constituída por grupos distintos, com formas de entender o mundo diferenciadas, a religião pode adquirir poder político para impor os interesses de um determinado grupo sobre o conjunto da sociedade.

A religião não se reduz a uma doutrina teológica. Há um trecho na Bíblia, no evangelho de João, onde Jesus disse “amai uns aos outros”. Nas décadas de 1960 e 1970 a Igreja Católica interpretou esse mandamento com o desenvolvimento de uma práxis religiosa de questionamento das mazelas geradoras da pobreza e miséria social, o que resultou em embates com os governos ditatoriais no Brasil e em outros países da América Latina.

Contudo, no livro de Ezequiel, do Antigo Testamento, se encontra a seguinte afirmação: “Matai sem dó: idosos, rapazes e moças, crianças e mulheres, até aniquilar a todos. Todavia não tocai em ninguém que tenha recebido o sinal da salvação.” Esse trecho pode ser usado para justificar atos de intolerância contra pessoas que são identificadas como não pertencentes a um credo religioso, sendo que muitas vezes isso é apenas uma forma de encobrir outros interesses, como econômicos. E nesse ponto o poder político se torna fundamental.

A pergunta que faço para encerrar esse artigo é: qual o legado que os cristãos querem deixar para a sociedade? Tolerância ou intolerância? Reconhecimento de que a sociedade é plural, com formas distintas de pensar e viver, ou imposição de uma visão de mundo?

Acredito que toda forma de pensar que preze pela vida, pelo respeito mútuo e pelo convívio pacífico das diferenças deve ser defendida. Para isso, um dos caminhos políticos é a luta pela preservação de instituições laicas. Tarefa mais do que urgente no Brasil de hoje.

Ricardo Oliveira da Silva é docente do Curso de História da UFMS/CPNA. Esse texto foi publicado originalmente no site Nova News com o título "A Bíblia e a Política".



Preconceito contra ateus é parte da longa história da intolerância religiosa

Existência de sistema de conduta moral independe dos deuses

Mistura entre cristianismo e poder começou com Constantino

Secularização é o fim de um processo de quase 2.000 anos




Comentários

deuses Existem? disse…
Quando tudo no mundo ainda pode ficar pior em nome das religiões.
Os pastores (ou lobos?) batistas do Presidente americano Trump estão no Brasil com o “objetivo de “converter” líderes políticos do congresso e servidores públicos a uma visão de política. Esta organização conta com o apoio da Frente Parlamentar Evangélica e desenvolveu uma teologia para apoiar ações radicais e justificar os desmandos que a política da extrema direita estimula para dominar o mundo. Esse ministério acaba de chegar no Brasil, onde os estudos bíblicos de Ralph Drollinger serão oferecidos aos políticos da nação (Ministros, Casa Civil, Senado e Câmara), a começar pelo terrivelmente evangélico Presidente Bolsonaro. No lançamento, Drollinger o vice-presidente americano Mike Pence e secretário de Estado Mike Pompeo estarão presentes representando o Capitols Ministries. Tal ação com o apoio do governo brasileiro significa para o Estado Laico… é, simplesmente, uma agressão até mesmo à noção de laicidade do Estado. Na doutrinação dos estudos bíblicos aparecem algumas indicações disto:


1- Sobre a guerra - Deus aceita a guerra, governos podem sim e são abençoados para ir à guerra, a declaração de Jesus Cristo “bem-aventurados os pacificadores” (Mc 5.9; Mateus 5:9) é para relacionamentos particulares, não para relacionamentos internacionais.

2 - Sobre sustentabilidade - Deus é quem sustenta o meio ambiente e o ecossistema do mundo… o que o homem possa fazer não afeta essa verdade.

“O evangélico presidente Bolsonaro elogiou destruidores de florestas da Amazônia, bloqueou recursos de programas de conservação e ameaçou expulsar comunidades indígenas inteiras de suas terras”. (Fonte AVAAZ).
3 - Sobre imigração e refúgio - Deus designou que as nações devem ter diferentes línguas, culturas e fronteiras.

4 - Sobre a separação dos filhos de seus pais na fronteira mexicana - é a consequência de se violar a lei de um país, como acontece com ladrões e assassinos em prisão. As autoridades têm permissão de Deus para implementar as suas políticas, pois, deve haver submissão às autoridades segundo Rm 13.

Em outras palavras, absolutamente qualquer coisa que seja feita em nome da virtude cristã, não importa suas consequências, não importa suas reais finalidades, será bom, e para o fundamentalista cristão, o péssimo intérprete da Bíblia que vê tudo em forma literal, escravidão, desmatamento, aquecimento global, guerra e pilhagem são boas se forem feitas em "Nome do Senhor"!

DEUSES NÃO EXISTEM !!!!
(Fonte sobre o Capitol Ministries, acessada em 24/08/2019, leia mais em : https://capmin.org/coming-to-grips-with-the-religion-of-environmentalism/?mc_cid=443815c6f9&mc_eid=38ddf01f7b)

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Dawkins é criticado por ter 'esperança' de que Musk não seja tão estúpido como Trump

Tibetanos continuam se matando. E Dalai Lama não os detém

O Prêmio Nobel da Paz é "neutro" em relação às autoimolações Stephen Prothero, especialista em religião da Universidade de Boston (EUA), escreveu um artigo manifestando estranhamento com o fato de o Dalai Lama (foto) se manter neutro em relação às autoimolações de tibetanos em protesto pela ocupação chinesa do Tibete. Desde 16 de março de 2011, mais de 40 tibetanos se sacrificaram dessa dessa forma, e o Prêmio Nobel da Paz Dalai Lama nada fez para deter essa epidemia de autoimolações. A neutralidade, nesse caso, não é uma forma de conivência, uma aquiescência descompromissada? Covardia, até? A própria opinião internacional parece não se comover mais com esse festival de suicídios, esse desprezo incandescente pela vida. Nem sempre foi assim, lembrou Prothero. Em 1963, o mundo se comoveu com a foto do jornalista americano Malcolm Wilde Browne que mostra o monge vietnamita Thich Quang Duc colocando fogo em seu corpo em protesto contra a perseguição aos budistas pelo

TJs perdem subsídios na Noruega por ostracismo a ex-fiéis. Duro golpe na intolerância religiosa

Jornalista defende liberdade de expressão de clérigo e skinhead

Título original: Uma questão de hombridade por Hélio Schwartsman para Folha "Oponho-me a qualquer tentativa de criminalizar discursos homofóbicos"  Disputas eleitorais parecem roubar a hombridade dos candidatos. Se Fernando Haddad e José Serra fossem um pouco mais destemidos e não tivessem transformado a busca por munição contra o adversário em prioridade absoluta de suas campanhas, estariam ambos defendendo a necessidade do kit anti-homofobia, como aliás fizeram quando estavam longe dos holofotes sufragísticos, desempenhando funções executivas. Não é preciso ter o dom de ler pensamentos para concluir que, nessa matéria, ambos os candidatos e seus respectivos partidos têm posições muito mais próximas um do outro do que da do pastor Silas Malafaia ou qualquer outra liderança religiosa. Não digo isso por ter aderido à onda do politicamente correto. Oponho-me a qualquer tentativa de criminalizar discursos homofóbicos. Acredito que clérigos e skinheads devem ser l

Proibido o livro do padre que liga a umbanda ao demônio

Padre Jonas Abib foi  acusado da prática de  intolerância religiosa O Ministério Público pediu e a Justiça da Bahia atendeu: o livro “Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de Cura e Libertação”, do padre Jonas Abib (foto), terá de ser recolhido das livrarias por, nas palavras do promotor Almiro Sena, conter “afirmações inverídicas e preconceituosas à religião espírita e às religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, além de flagrante incitação à destruição e ao desrespeito aos seus objetos de culto”. O padre Abib é ligado à Renovação Carismática, uma das alas mais conservadoras da Igreja Católica. Ele é o fundador da comunidade Canção Nova, cuja editora publicou o livro “Sim, Sim!...”, que em 2007 vendeu cerca de 400 mil exemplares, ao preço de R$ 12,00 cada um, em média. Manuela Martinez, da Folha, reproduz um trecho do livro: "O demônio, dizem muitos, "não é nada criativo". (...) Ele, que no passado se escondia por trás dos ídolos, hoje se esconde no

Condenado por estupro, pastor Sardinha diz estar feliz na cadeia

Pastor foi condenado  a 21 anos de prisão “Estou vivendo o melhor momento de minha vida”, diz José Leonardo Sardinha (foto) no site da Igreja Assembleia de Deus Ministério Plenitude, seita evangélica da qual é o fundador. Em novembro de 2008 ele foi condenado a 21 anos de prisão em regime fechado por estupro e atentado violento ao pudor. Sua vítima foi uma adolescente que, com a família, frequentava os cultos da Plenitude. A jovem gostava de um dos filhos do pastor, mas o rapaz não queria saber dela. Sardinha então disse à adolescente que tinha tido um sonho divino: ela deveria ter relações sexuais com ele para conseguir o amor do filho, e a levou para o motel várias vezes. Mas a ‘profecia’ não se realizou. O Sardinha Jr. continuou não gostando da ingênua adolescente. No texto publicado no site, Sardinha se diz injustiçado pela justiça dos homens, mas em contrapartida, afirma, Deus lhe deu a oportunidade de levar a palavra Dele à prisão. Diz estar batizando muita gen

Veja os 10 trechos mais cruéis da Bíblia

Profecias de fim do mundo

O Juízo Final, no afresco de Michangelo na Capela Sistina 2033 Quem previu -- Religiosos de várias épocas registraram que o Juízo Final ocorrerá 2033, quando a morte de cristo completará 2000. 2012 Quem previu – Religiosos e teóricos do apocalipse, estes com base no calendário maia, garantem que o dia do Juízo Final ocorrerá em dezembro, no dia 21. 2011 Quem previu – O pastor americano Harold Camping disse que, com base em seus cálculos, Cristo voltaria no dia 21 de maio, quando os puros seriam arrebatados e os maus iriam para o inferno. Alguns desastres naturais, como o terremoto seguido de tsunami no Japão, serviram para reforçar a profecia. O que ocorreu - O fundador do grupo evangélico da Family Radio disse estar "perplexo" com o fato de a sua profecia ter falhado. Ele virou motivo de piada em todo o mundo. Camping admitiu ter errado no cálculo e remarcou da data do fim do mundo, que será 21 de outubro de 2011. 1999 Quem previu – Diversas profecias