Carles Casajuana / La Vanguardia Fazia tempo que desejava reler Albert Camus e o coronavírus me deu o empurrão que faltava. Eu também pego "A Peste" e a devoro fascinado pela maestria com que Camus descreve como os habitantes da cidade empesteada — Oran — vão se adaptando à epidemia, como se instalam em um tenso presente, como pouco a pouco sua percepção da existência vai mudando.
O doutor Rieux, o protagonista, ergue-se como uma figura incansável na luta contra a doença — um santo ateu, uma versão camusiana do super-homem nietzschiano —, em meio a um panorama desolador em que, no entanto, surge uma solidariedade bruta, primária. “É uma ideia que pode provocar riso — diz Rieux —, mas a única maneira de lutar contra a peste é a honestidade”.
“O que é a honestidade?”, pergunta a seu interlocutor. “Não sei o que é em geral” — responde Rieux —, mas em meu caso, sei que consiste em fazer meu trabalho”.
A cidade empesteada de Camus é uma alegoria de uma existência em que, inexoravelmente, todos estamos condenados a morrer. Rieux aceita sem chiar e se entrega de corpo e alma ao seu trabalho como médico. Nada como uma epidemia para esclarecer prioridades e colocar as coisas em seu lugar.
Não sei se os esforços das autoridades de saúde e as drásticas medidas dos últimos dias permitirão conter a expansão do coronavírus. Tomara. Também não sei se a afortunada Covid-19 é sazonal ou não. Espero que tenha a amabilidade de ser, porque vejo que nos países tropicais e no hemisfério Sul há comparativamente poucos casos novos, o que talvez signifique que a umidade e as altas temperaturas não favorecem os contágios. De qualquer forma, a epidemia pode nos ajudar a ver algumas coisas sob uma nova luz.
As limitações da soberania, por exemplo. Se alguém não entendeu o significado da palavra interdependência, agora já sabe o que quer dizer.
Em quantos países o vírus está ativo? Cem? Cento e vinte? A peste bubônica chegou à costa russa do Mar Negro, procedente da Ásia, no ano de 1346. Em 1347, chegou a Istambul e, em 1348, a Paris.
Agora, ao contrário, quando alguém no Canadá ou na Argentina se contagia, a primeira coisa que lhe perguntam é se esteve recentemente na China, no Irã ou na Itália. Um vírus originado em uma província chinesa da qual nunca havíamos ouvido falar nos obrigou a suspender o campeonato da Liga. Isso é a interdependência.
O vírus está nos dando uma lição prática sobre o caráter ilusório das fronteiras e sobre o valor da cooperação internacional.
Que proteção oferece a suspensão de voos intercontinentais de Donald Trump? Os Estados Unidos agora podem construir todos os muros que desejarem: o vírus os saltará.
O erro de Washington de cortar a contribuição para a Organização Mundial da Saúde, como parte da ofensiva contra o multilateralismo, agora aparece em toda a sua magnitude. A isso se chama ter visão de futuro. Aquilo de “América primeiro” serve muito bem para os comícios no Médio Oeste, mas os problemas globais — e esse é um deles — exigem respostas globais (mesmo que o gerenciamento diário seja local, é claro).
Donald Trump não consegue dissimular que, para ele, o principal perigo do coronavírus não é o da saúde, mas o político: o que mais o angustia é a possibilidade de não ser reeleito.
Ele contava com o bom andamento da economia para vencer as eleições, mas agora o mercado de ações cai e os tambores da recessão redobram com vigor. Sua reação, com a característica mistura de arrogância, ignorância e indiferença pelo destino dos mais fracos, não o ajudará.
O coronavírus pode fazer com que os norte-americanos vejam a importância de ter um sistema universal de saúde pública. Existem muitos milhões de cidadãos que não têm seguro ou que precisam pagar parte de suas despesas médicas. Também há muitos que, quando estão em baixa, não pagam. Ninguém poderá reprovar que, para manter a sua família, tentem não ir ao médico e que optem por ir trabalhar mesmo que apresentem sintomas, caia quem caia. Não acredito que isso ajude a controlar a epidemia, por mais diminuição de impostos que o Governo aprove.
O Brexit também não servirá para parar os pés do vírus. Diante de uma epidemia como essa, o slogan de “recuperar o controle” não leva a lugar algum. Pelo contrário, o coronavírus pode expor a falta de profissionais de saúde no Reino Unido e o grande erro de colocar obstáculos à imigração dos vizinhos europeus.
Agora, os britânicos vão perceber o serviço precioso que os médicos e as enfermeiras provenientes do continente, entre eles muitos espanhóis, prestam ao país.
Na Espanha, após as primeiras semanas em que o vírus criou um espaço de colaboração inédita entre o Ministério da Saúde e as Comunidades Autônomas e nas quais ninguém questionava o modelo, nem reivindicava mais competências, afloraram as primeiras divisões e as críticas, algumas delas muito mesquinhas.
Nada mais fácil: se as medidas são drásticas, são chamadas de alarmistas. Se não são, de tíbias. Suponho que a política é assim, mas não é o momento de fazer esse tipo de política. Em situações de emergência como a atual, é quando se vê a diferença entre um político de baixa envergadura e um homem de Estado.
Um dos personagens de A Peste, Rambert, um jornalista de Paris preso na cidade, quer fugir para ficar com sua esposa. Consegue a ajuda de alguns guardas, mas quando chega o momento, compreende que abandonar Oran é faltar com o seu dever de solidariedade e decide ficar para ajudar no que puder.
Talvez teremos que sugerir a alguns de nossos políticos que leiam Camus e que aprendam de Rieux e Rambert.
Cairia muito bem para eles.
Carles Casajuana é diplomata espanhol. A tradução é do Cepat, para IHU Online. O texto foi publicado originalmente com o título Camus e o Coronavírus.
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O doutor Rieux, o protagonista, ergue-se como uma figura incansável na luta contra a doença — um santo ateu, uma versão camusiana do super-homem nietzschiano —, em meio a um panorama desolador em que, no entanto, surge uma solidariedade bruta, primária. “É uma ideia que pode provocar riso — diz Rieux —, mas a única maneira de lutar contra a peste é a honestidade”.
“O que é a honestidade?”, pergunta a seu interlocutor. “Não sei o que é em geral” — responde Rieux —, mas em meu caso, sei que consiste em fazer meu trabalho”.
NA OBRA PRIMA DE ALBERT CAMUS, UM MÉDICO ATEU E UM JORNALISTA MOSTRAM QUE LUTAR CONTRA A PESTE É UMA QUESTÃO DE HONESTIDADE |
A cidade empesteada de Camus é uma alegoria de uma existência em que, inexoravelmente, todos estamos condenados a morrer. Rieux aceita sem chiar e se entrega de corpo e alma ao seu trabalho como médico. Nada como uma epidemia para esclarecer prioridades e colocar as coisas em seu lugar.
Não sei se os esforços das autoridades de saúde e as drásticas medidas dos últimos dias permitirão conter a expansão do coronavírus. Tomara. Também não sei se a afortunada Covid-19 é sazonal ou não. Espero que tenha a amabilidade de ser, porque vejo que nos países tropicais e no hemisfério Sul há comparativamente poucos casos novos, o que talvez signifique que a umidade e as altas temperaturas não favorecem os contágios. De qualquer forma, a epidemia pode nos ajudar a ver algumas coisas sob uma nova luz.
As limitações da soberania, por exemplo. Se alguém não entendeu o significado da palavra interdependência, agora já sabe o que quer dizer.
Em quantos países o vírus está ativo? Cem? Cento e vinte? A peste bubônica chegou à costa russa do Mar Negro, procedente da Ásia, no ano de 1346. Em 1347, chegou a Istambul e, em 1348, a Paris.
Agora, ao contrário, quando alguém no Canadá ou na Argentina se contagia, a primeira coisa que lhe perguntam é se esteve recentemente na China, no Irã ou na Itália. Um vírus originado em uma província chinesa da qual nunca havíamos ouvido falar nos obrigou a suspender o campeonato da Liga. Isso é a interdependência.
O vírus está nos dando uma lição prática sobre o caráter ilusório das fronteiras e sobre o valor da cooperação internacional.
Que proteção oferece a suspensão de voos intercontinentais de Donald Trump? Os Estados Unidos agora podem construir todos os muros que desejarem: o vírus os saltará.
O erro de Washington de cortar a contribuição para a Organização Mundial da Saúde, como parte da ofensiva contra o multilateralismo, agora aparece em toda a sua magnitude. A isso se chama ter visão de futuro. Aquilo de “América primeiro” serve muito bem para os comícios no Médio Oeste, mas os problemas globais — e esse é um deles — exigem respostas globais (mesmo que o gerenciamento diário seja local, é claro).
Donald Trump não consegue dissimular que, para ele, o principal perigo do coronavírus não é o da saúde, mas o político: o que mais o angustia é a possibilidade de não ser reeleito.
Ele contava com o bom andamento da economia para vencer as eleições, mas agora o mercado de ações cai e os tambores da recessão redobram com vigor. Sua reação, com a característica mistura de arrogância, ignorância e indiferença pelo destino dos mais fracos, não o ajudará.
O coronavírus pode fazer com que os norte-americanos vejam a importância de ter um sistema universal de saúde pública. Existem muitos milhões de cidadãos que não têm seguro ou que precisam pagar parte de suas despesas médicas. Também há muitos que, quando estão em baixa, não pagam. Ninguém poderá reprovar que, para manter a sua família, tentem não ir ao médico e que optem por ir trabalhar mesmo que apresentem sintomas, caia quem caia. Não acredito que isso ajude a controlar a epidemia, por mais diminuição de impostos que o Governo aprove.
O Brexit também não servirá para parar os pés do vírus. Diante de uma epidemia como essa, o slogan de “recuperar o controle” não leva a lugar algum. Pelo contrário, o coronavírus pode expor a falta de profissionais de saúde no Reino Unido e o grande erro de colocar obstáculos à imigração dos vizinhos europeus.
Agora, os britânicos vão perceber o serviço precioso que os médicos e as enfermeiras provenientes do continente, entre eles muitos espanhóis, prestam ao país.
Na Espanha, após as primeiras semanas em que o vírus criou um espaço de colaboração inédita entre o Ministério da Saúde e as Comunidades Autônomas e nas quais ninguém questionava o modelo, nem reivindicava mais competências, afloraram as primeiras divisões e as críticas, algumas delas muito mesquinhas.
Nada mais fácil: se as medidas são drásticas, são chamadas de alarmistas. Se não são, de tíbias. Suponho que a política é assim, mas não é o momento de fazer esse tipo de política. Em situações de emergência como a atual, é quando se vê a diferença entre um político de baixa envergadura e um homem de Estado.
Um dos personagens de A Peste, Rambert, um jornalista de Paris preso na cidade, quer fugir para ficar com sua esposa. Consegue a ajuda de alguns guardas, mas quando chega o momento, compreende que abandonar Oran é faltar com o seu dever de solidariedade e decide ficar para ajudar no que puder.
Talvez teremos que sugerir a alguns de nossos políticos que leiam Camus e que aprendam de Rieux e Rambert.
Cairia muito bem para eles.
Carles Casajuana é diplomata espanhol. A tradução é do Cepat, para IHU Online. O texto foi publicado originalmente com o título Camus e o Coronavírus.
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