Pular para o conteúdo principal

Biólogo da Funai diz que foi pressionado para levar evangélicos a territórios indígenas

Tatiana Merlino | Bocado Localizar, proteger e monitorar povos indígenas isolados e de recente contato no sul do Amazonas era a principal tarefa do biólogo Daniel Cangussu, que entre 2010 e 2019 foi coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus da Funai.


Nos dois últimos anos em que ficou cargo, porém, ele passou a receber pressões para ir na contramão da sua função e organizar expedições de missionários evangélicos a um território indígena onde não deveriam entrar.

Cangussu trabalhava junto ao povo de recente contato Suruwahá e em ações de localização dos isolados do Hi-Merimã e de todos os demais isolados não identificados da região. 

Embora avalie que a Funai tivesse uma vigilância eficiente, o monitoramento do território Hi-Merimã sempre foi um desafio, porque a população é grande e se movimenta por uma área extensa. “E no entorno há muitos missionários que querem evangelizar os isolados”, conta. “Nós tínhamos um controle grande da saúde dos funcionários quando atuávamos nesses territórios. Mas essa não é uma preocupação dos missionários”, critica.

“Por isso, quando me perguntam quais as principais pressões territoriais para os isolados, respondo que não são os madeireiros, os garimpeiros e os povos do entorno. São os missionários.”

Em 2018, por exemplo, ele expulsou o missionário Steve Campbell, ligado a igreja americana Greene Baptist, que havia entrado ilegalmente na terra Hi-Merimã. 

“Ele se sentiu confiante com a nova conjuntura [eleição do presidente Jair Bolsonaro] para fazer essa expedição. “Foram instaurados um processo de acompanhamento do Ministério Público Federal e um processo administrativo interno da Funai.”

Resistência e imposição

O servidor da Funai conta, no entanto, que o momento de maior tensão da sua vida profissional ocorreu um mês após Jair Bolsonaro vencer as eleições presidenciais, em outubro de 2018.

Cangussu foi designado pelo presidente da Funai a organizar uma visita à terra indígena dos Suruwahá. O objetivo era que a comunidade recebesse Muwaji Suruwahá, indígena que havia sido retirada de lá pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) anos antes com o intuito de levar a filha para Brasília, onde teria tratamento de saúde. Muwaji e sua filha nunca mais voltaram.

A incursão, no entanto, não seria feita só por ela – já convertida em evangélica e integrante da Jovens com uma Missão (Jocum) – mas também por seus filhos e na companhia de um missionário da Jocum, Darci Azevedo Cunha. Anos antes, Azevedo havia morado na mesma terra indígena, antes de ser retirado por decisão do Ministério Público.

A solicitação para a visita havia sido feita pelo então senador e pastor evangélico Magno Malta, que à época tinha como assessora a hoje ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. 

“Fui obrigado pelo presidente da Funai, por meio do assédio de Magno e Damares, a entrar na terra indígena com um missionário”, conta o biólogo. A ministra é fundadora da ONG Atini, investigada pelo Ministério Público Federal por tráfico e sequestro de crianças.

Cangussu conta que mostrou resistência à ideia. “Disse que estava havia quase 10 anos fazendo o contrário [impedir a entrada de missionários]. E o que me disseram foi que, se eu não quisesse, iriam providenciar alguém para fazer.”

A visita durou uma semana e foi “tensa”, ele diz. Por falar a língua dos Suruwahá, o missionário tinha conversas isoladamente com alguns deles. 

“Foi ruim ter que usar a logística da Funai em prol dos missionários. Foi uma espécie de prenúncio do que iria acontecer depois”, observa, referindo-se à nomeação de Ricardo Lopes Dias, ex-missionário evangélico, para coordenador na Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai. 

Evangélicos se
infiltram em aldeias
da Amazônia

Muwaji vive hoje em uma casa em Brasília com dois filhos, onde também moram outros indígenas retirados pela Sesai de outras terras e que nunca mais retornaram aos seus lares de origem.


“Nessa casa moram indígenas formados para serem pastores”, explica o servidor. “A estratégia deles é: se não conseguem entrar nas terras com os missionários, entram com indígenas que se converteram, já que não se pode impedir a entrada de indígenas nas aldeias.”

A reportagem entrou em contato com Funai, Sesai, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e com o ex-senador Magno Malta. Nem o pastor nem os órgãos governamentais se pronunciaram.

Cangussu afirma que teve conflitos com Damares e missionários durante nove anos, por conta das investidas em áreas de índios isolados ou de recente contato. Tanto que pouco após a expedição, no começo de 2019, ele pediu para ser transferido.

Hoje, ele é chefe da Coordenação Técnica Local da FUNAI em Teófilo Otoni, em Minas Gerais. “Meu presidente [da Funai] é um delegado da Polícia Federal que nomeou um missionário para assumir a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato. Nosso chefe é nosso principal rival”, define. 

“É muito triste, coloca a gente na lama em todos os sentidos. Se meia dúzia de índios for evangelizada, para eles valeu o preço, caso muitos morram.”

O biólogo faz questão de ressaltar que esses não são casos isolados. Nos seus nove anos na Frente de Proteção Etnoambiental, ele presenciou e teve conhecimento de outras ações que colocavam em risco povos indígenas e tradições ancestrais. Caso de um importante ritual de passagem das indígenas Banawá, que vivem no sul do Amazonas — um momento importante para as jovens, de orgulho, quando deixam de ser meninas para virarem mulheres.

A cerimônia, conta o biólogo, foi interrompida por missionários evangélicos que chegaram com doces e balões. A moça que seria “iniciada” ficou revoltada com a situação, se sentiu desprestigiada. “E todo um rito se reduz a crianças comendo balas”, relata. 

Os missionários interromperam um costume ancestral para impor sua maneira de comemorar aniversários. Outra vez, como há 500 anos, a religião é uma forma de conquista.

Historicamente, não faltam casos de interferência de evangélicos fundamentalistas sobre o modo de viver dos povos indígenas, sejam eles isolados ou não. Mas o alerta em relação às investidas de missões evangélicas que têm como objetivo converter os índios ao cristianismo aumentou não apenas com a nomeação de Lopes Dias, mas também com a escolha de Damares como ministra. Ambos afirmaram ser a favor da revisão da política de isolamento de indígenas.

Contato mortal

No Brasil, os indígenas têm direito a permanecer isolados. É uma política instituída em 1987, em meio à elaboração da nova Constituição, que reconheceu uma série de outros direitos antes negados. 
A estrutura pública encarregada desse assunto foi criada para garantir a proteção dos indígenas e das terras onde vivem, impedindo invasões. Atualmente, há o registro de 114 grupos de isolados, dos quais 28 estão confirmados – os demais estão sob investigação.

Os isolados vivem de forma autossuficiente, com recursos oferecidos pela natureza, e contatá-los pode ser mortal. De acordo com Douglas Rodrigues, médico sanitarista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) especializado em saúde indígena, após o contato, alguns povos perderam 90% de sua população. É o caso dos Nambikwara. Antes do contato, eram 10 mil indivíduos. Nove mil morreram em decorrência de epidemias de sarampo, gripe, coqueluche e gonorreia. 

A informação consta no documento “Cercos e Resistências: Povos Indígenas Isolados no Brasil”, produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA).

A insatisfação com a nomeação de Lopes Dias é compartilhada por entidades indígenas como a Apib e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). A preocupação é que a presença dele abra caminhos para mudanças na política de proteção aos isolados da Funai e o órgão se torne uma ferramenta de proselitismo religioso. 

O censo do IBGE aponta que o percentual de indígenas evangélicos saltou de 14% para 25% entre 1991 e 2010. Uma pesquisa de 2020 do Instituto Datafolha mostra que essa fatia na população em geral já é de 32% e que, no Norte do país, os evangélicos representam 39% da população.

Os números indicam que as estratégias dos evangélicos para a região têm dado certo. E, com isso, o processo de evangelização dos indígenas vive hoje o que se chama de “terceira onda missionária”.

A primeira das etapas da ação dos missionários em aldeias no Brasil corresponde à dos estrangeiros evangelizando indígenas, quando chegaram ao país. A segunda, de brasileiros evangelizando indígenas. E a terceira e atual é a formação de indígenas pastores que evangelizam outros indígenas. A fronteira final é acessar os isolados.

Demônios, rachas e lojinhas

Na primeira onda, no final dos anos 1940, duas grandes missões norte-americanas chegaram ao Brasil para evangelizar indígenas: a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), então braço brasileiro da News Tribes Mission [e que hoje mudou o nome para Ethnos 360], e a Summer Institute of Linguistics (SIL).

“Nossa relação com os evangélicos e a MNTB é muito antiga, vem desde a década de 1940. E os resultados são a modificação da nossa vida tradicional do povo Marubo. Só perdemos. Eles condenaram determinadas práticas, que foram abandonadas com o tempo”, define Eliesio da Silva Vargas, representante jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Além de levar doenças e causar mortes, os missionários alteram ritos e visões ancestrais indígenas, e consequentemente sua cultura e organização, ao inserir valores cristãos.

“Eles estão em vários lugares do mundo. Desde o século passado estão entrando em grupos indígenas sem nenhum controle. Têm uma coisa capilar, fundam igrejas locais, formam pastores locais e, quando não conseguem entrar numa aldeia, ficam na cidade em volta tentando entrar, fazendo tradução da Bíblia”, explica a antropóloga Aparecida Villaça, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“Há manipulações brutais, vi traduções de trechos selecionados, e o deus deles é todo poderoso, castiga, tudo vê, tudo olha, se zanga”, descreve Lúcia Helena Rangel, antropóloga e professora da PUC-SP. 

Ela cita a terra onde vivem os Jarawara, na região dos rios Juruá e Purus, onde os missionários chegaram a inventar um ser invisível e demoníaco, que só poderia ser combatido se os indígenas se convertessem à religião evangélica.

Outro prejuízo da atuação dos religiosos nas aldeias se dá na organização sociopolítica, aponta a antropóloga Adriana Maria Huber Azevedo, do Cimi. E o que se vê são comunidades divididas entre os que são crentes e os que não são, os que são amigos dos missionários e os que não são.

Também se introduz a relação com o dinheiro e o estímulo à venda do que produzem, descreve a antropóloga Beatriz de Almeida Matos, da Universidade Federal do Pará: “Nos Marubo, fizeram uma lojinha, coisa absurda para os indígenas, parente vendendo coisa para outro parente”.


Bolsonaro vetou leitos de UTI a indígenas por orientação do ministério de Damares

Ong de Damares é acusada de extrair mogno e de passar malária a indígenas 

Evangélicos estão destruindo a cultura indígena, diz cineasta. E a cultura brasileira, não?

Novo caso reforça suspeita de que ong de Damares sequestrou vários índios


Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Dawkins é criticado por ter 'esperança' de que Musk não seja tão estúpido como Trump

Tibetanos continuam se matando. E Dalai Lama não os detém

O Prêmio Nobel da Paz é "neutro" em relação às autoimolações Stephen Prothero, especialista em religião da Universidade de Boston (EUA), escreveu um artigo manifestando estranhamento com o fato de o Dalai Lama (foto) se manter neutro em relação às autoimolações de tibetanos em protesto pela ocupação chinesa do Tibete. Desde 16 de março de 2011, mais de 40 tibetanos se sacrificaram dessa dessa forma, e o Prêmio Nobel da Paz Dalai Lama nada fez para deter essa epidemia de autoimolações. A neutralidade, nesse caso, não é uma forma de conivência, uma aquiescência descompromissada? Covardia, até? A própria opinião internacional parece não se comover mais com esse festival de suicídios, esse desprezo incandescente pela vida. Nem sempre foi assim, lembrou Prothero. Em 1963, o mundo se comoveu com a foto do jornalista americano Malcolm Wilde Browne que mostra o monge vietnamita Thich Quang Duc colocando fogo em seu corpo em protesto contra a perseguição aos budistas pelo

Jornalista defende liberdade de expressão de clérigo e skinhead

Título original: Uma questão de hombridade por Hélio Schwartsman para Folha "Oponho-me a qualquer tentativa de criminalizar discursos homofóbicos"  Disputas eleitorais parecem roubar a hombridade dos candidatos. Se Fernando Haddad e José Serra fossem um pouco mais destemidos e não tivessem transformado a busca por munição contra o adversário em prioridade absoluta de suas campanhas, estariam ambos defendendo a necessidade do kit anti-homofobia, como aliás fizeram quando estavam longe dos holofotes sufragísticos, desempenhando funções executivas. Não é preciso ter o dom de ler pensamentos para concluir que, nessa matéria, ambos os candidatos e seus respectivos partidos têm posições muito mais próximas um do outro do que da do pastor Silas Malafaia ou qualquer outra liderança religiosa. Não digo isso por ter aderido à onda do politicamente correto. Oponho-me a qualquer tentativa de criminalizar discursos homofóbicos. Acredito que clérigos e skinheads devem ser l

TJs perdem subsídios na Noruega por ostracismo a ex-fiéis. Duro golpe na intolerância religiosa

Proibido o livro do padre que liga a umbanda ao demônio

Padre Jonas Abib foi  acusado da prática de  intolerância religiosa O Ministério Público pediu e a Justiça da Bahia atendeu: o livro “Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de Cura e Libertação”, do padre Jonas Abib (foto), terá de ser recolhido das livrarias por, nas palavras do promotor Almiro Sena, conter “afirmações inverídicas e preconceituosas à religião espírita e às religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, além de flagrante incitação à destruição e ao desrespeito aos seus objetos de culto”. O padre Abib é ligado à Renovação Carismática, uma das alas mais conservadoras da Igreja Católica. Ele é o fundador da comunidade Canção Nova, cuja editora publicou o livro “Sim, Sim!...”, que em 2007 vendeu cerca de 400 mil exemplares, ao preço de R$ 12,00 cada um, em média. Manuela Martinez, da Folha, reproduz um trecho do livro: "O demônio, dizem muitos, "não é nada criativo". (...) Ele, que no passado se escondia por trás dos ídolos, hoje se esconde no

Condenado por estupro, pastor Sardinha diz estar feliz na cadeia

Pastor foi condenado  a 21 anos de prisão “Estou vivendo o melhor momento de minha vida”, diz José Leonardo Sardinha (foto) no site da Igreja Assembleia de Deus Ministério Plenitude, seita evangélica da qual é o fundador. Em novembro de 2008 ele foi condenado a 21 anos de prisão em regime fechado por estupro e atentado violento ao pudor. Sua vítima foi uma adolescente que, com a família, frequentava os cultos da Plenitude. A jovem gostava de um dos filhos do pastor, mas o rapaz não queria saber dela. Sardinha então disse à adolescente que tinha tido um sonho divino: ela deveria ter relações sexuais com ele para conseguir o amor do filho, e a levou para o motel várias vezes. Mas a ‘profecia’ não se realizou. O Sardinha Jr. continuou não gostando da ingênua adolescente. No texto publicado no site, Sardinha se diz injustiçado pela justiça dos homens, mas em contrapartida, afirma, Deus lhe deu a oportunidade de levar a palavra Dele à prisão. Diz estar batizando muita gen

Veja os 10 trechos mais cruéis da Bíblia

Profecias de fim do mundo

O Juízo Final, no afresco de Michangelo na Capela Sistina 2033 Quem previu -- Religiosos de várias épocas registraram que o Juízo Final ocorrerá 2033, quando a morte de cristo completará 2000. 2012 Quem previu – Religiosos e teóricos do apocalipse, estes com base no calendário maia, garantem que o dia do Juízo Final ocorrerá em dezembro, no dia 21. 2011 Quem previu – O pastor americano Harold Camping disse que, com base em seus cálculos, Cristo voltaria no dia 21 de maio, quando os puros seriam arrebatados e os maus iriam para o inferno. Alguns desastres naturais, como o terremoto seguido de tsunami no Japão, serviram para reforçar a profecia. O que ocorreu - O fundador do grupo evangélico da Family Radio disse estar "perplexo" com o fato de a sua profecia ter falhado. Ele virou motivo de piada em todo o mundo. Camping admitiu ter errado no cálculo e remarcou da data do fim do mundo, que será 21 de outubro de 2011. 1999 Quem previu – Diversas profecias