Pular para o conteúdo principal

Igrejas evangélicas cometem crime eleitoral para coletar votos a seus candidatos

Mariama Correia | Agência Pública “Já tem candidato?”, me perguntou senhora simpática na entrada do Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), no bairro do Brás, em São Paulo. Era por volta das 7 horas do domingo (15) de eleições municipais.

Antes que terminasse o gesto negativo com a cabeça, ela entregou um santinho do vereador André Santos, do Republicanos, o partido da Universal. No verso havia instruções para um voto casado com o então candidato a prefeito Celso Russomano, também do Republicanos.

“Pode votar do jeitinho que tá aqui, nos dois”, orientou a mulher, se identificando como uma obreira da igreja voluntária na campanha. Havia aproximadamente dez obreiros entregando santinhos nos portões do templo no dia da votação.

Essas atividades, conhecidas como boca de urna, são proibidas por lei, afirma o advogado eleitoral Fernando Neisser: “Pedir votos e distribuir material na data do pleito é crime eleitoral”, afirmou em entrevista à Agência Pública.

Áudio: “Pode votar do jeitinho que tá aqui, nos dois”, orientou voluntária da campanha na frente da igreja

No fim daquele dia, André Santos, um dos candidatos que receberam mais verba de doações, seria reeleito entre os dez vereadores mais votados de São Paulo. Ele é líder da bancada do Republicanos na Câmara Municipal na atual legislatura e já apresentou programas nas rádios Record e São Paulo, ambas propriedades do bispo Edir Macedo, líder da Universal. 

Mesmo com o apoio da igreja e do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na disputa para prefeito da capital paulista, Russomano não avançou para o segundo turno.

Durante mais de um mês, a Pública recebeu relatos sobre campanhas dentro de igrejas e templos, que são ilegais (Lei 9.504/97), além de outras práticas irregulares envolvendo lideranças religiosas nas eleições deste ano. 

As denúncias enviadas por leitores de todo o Brasil, em uma investigação participativa, mostram o uso da fé como palanque em várias religiões. E indicam que lideranças de grandes igrejas evangélicas, a exemplo da Universal, estariam usando o discurso religioso para influenciar o voto de milhares de fiéis e eleger aliados.

João 10:1,2,3

A Catedral da Fé é o maior templo da Universal em Vitória (ES). Fica na principal avenida da capital, a Reta da Penha. No dia 19 de outubro, com as medidas sociais recomendadas por conta da pandemia de coronavírus, aproximadamente 600 fiéis assistiam ao culto na igreja, que tem capacidade para 3.600 mil pessoas. Eles estavam distribuídos em lugares alternados e usavam máscara.

“No final do culto, o pastor começou a pedir votos”, escreveu à Pública um leitor que presenciou a celebração. 

Em áudio gravado pelo leitor, o pastor Moisés Bispo diz: “Estou me candidatando a vereador e no dia 15 de novembro você vai votar em mim”. Em seguida, o sacerdote explica: “Não, não. Eu coloquei alguém em meu lugar, que é o pastor Rossetti”.

Áudio: No final do culto o pastor Moisés Bispo pede voto aos fieis, segundo leitor da Pública

Áudio: Áudio enviado por leitor da Pública que participou do culto com o pastor Moisés Bispo

O pastor Rogério Rossetti (Republicanos) foi candidato a vereador em Vitória. Ele recebeu 1.375 votos, mas não conseguiu se eleger este ano por causa do coeficiente eleitoral. Rossetti já foi líder do PRB, como se chamava o Republicanos, no Mato Grosso. Também foi suplente em mandatos de vereador e de deputado estadual pelo partido, em 2012 e 2016. 

Em 2016, ele se candidatou a vereador em Cuiabá (MT), mas ficou inelegível por envolvimento em uma suposta fraude em cotas de candidaturas femininas da ex-candidata a prefeita Serys Marly Slhessarenko. O TRE extinguiu a condenação de inelegibilidade em 2018.

“Não veja o pastor Rossetti, veja a Igreja Universal”, disse o pastor Moisés durante a pregação na Catedral da Fé, no dia 19 de outubro.

Do lado de fora do templo, Rossetti distribuiu material de campanha. O pastor Moisés ainda indicou outro pastor, Ricardo Fonseca (Republicanos), para vereador de Serra, uma cidade vizinha. Ele também não foi eleito, mas conquistou 1.642 votos.

No fim do culto, o pastor Moisés pediu ao público que estudasse o livro de João, no capítulo 10, versículos 1, 2 e 3. “Os números ficaram expostos ao longo da parte final da pregação”, escreveu o leitor à Pública. “Coincidência ou não, eram os mesmos números que os candidatos usaram nas urnas.”

Campanha ao estilo Iurd

Por meio do Republicanos, a Universal vem elegendo aliados – massivamente membros da própria igreja – em todo o país. Em 2008, o partido elegeu 780 vereadores e vereadoras e 56 prefeitos e prefeitas. Oito anos depois, eles multiplicaram os resultados para 145 vice-prefeitos e vice-prefeitas, 106 prefeitos e prefeitas e 1.620 vereadores e vereadoras.

Este ano, o partido liderou as candidaturas de sacerdotes nas eleições municipais, reunindo 101 candidatos, que declararam ter a religião como ocupação profissional. Emplacou 208 prefeitos no primeiro turno e 2.594 vereadores em todo o país (segundo dados do TSE atualizados até as 17 horas do dia 16). Apesar disso, perdeu batalhas importantes, como em São Paulo, onde Russomano teve um desempenho fraco, e não conseguiu reeleger Marcelo Crivella, apoiado pela Universal e por Bolsonaro, no primeiro turno no Rio de Janeiro.  

Material de campanha do
vereador André Santos distribuído
na frente do Templo de Salomão

Mas os resultados nas prefeituras do Rio e de São Paulo não devem ser lidos como uma perda de força do partido, na opinião de Christina Vital da Cunha, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e colaboradora do Instituto de Estudos Religiosos (Iser).

Para ela, que há seis anos acompanha a disputa do Republicanos com o PSC, partido ligado à igreja Assembleia de Deus e a nomes como o pastor Silas Malafaia, o Republicanos saiu fortalecido dessas eleições.

“A gente tem que pensar no total de votos obtidos pelo partido de um pleito em relação ao outro, no total de representantes eleitos no Brasil e na representatividade das bancadas nas capitais mais importantes. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Republicanos elegeu uma das três maiores bancadas para a Câmara de Vereadores”, observou.

Christina diz que o Republicanos vem se fortalecendo sistematicamente nas urnas, ano após ano. E isso, ela diz, tem relação com o engajamento de pastores e de obreiros da Universal, que influenciam o voto dos fiéis da igreja.

“Trabalhamos como voluntários para os candidatos”, me explicou uma das obreiras que distribuíam santinhos do vereador André Santos, no sábado (14), no Templo de Salomão, em São Paulo. 

“Estamos apoiando André Santos porque ele já tem um trabalho e é um homem de Deus. Defende a família, a saúde, as causas cristãs. Ele lutou para manter os templos abertos na pandemia”, contou. Para me convencer, a obreira mostrou um santinho em que o vereador aparece ao lado do bispo Renato Cardoso, genro do bispo Edir Macedo. “Tá aqui o bispo Renato dizendo: esse eu apoio.”

O vereador André também foi recebido pelo bispo Renato Cardoso no altar, como contou à Pública uma frequentadora do Templo de Salomão, por meio do questionário de investigação participativa. 

“No que diz respeito ao prefeito, a instrução foi a de não eleger pessoas que fecham as igrejas no período pandêmico”, escreveu, explicando que a recomendação de fechamento de templos na gestão atual de Bruno Covas (PSDB) irritou os líderes da igreja, “porque, afinal, deve ser um desespero ficar meses sem receber os dízimos”, concluiu.

“A mobilização de obreiros nas campanhas também acontece em outros estados. “Na cidade de Itabuna (BA) é impressionante o serviço de aliciamento de eleitores e distribuição de santinhos pelos obreiros da Universal”, escreveu outro leitor à Pública, através do questionário.

Usar a igreja para arregimentar apoiadores para uma campanha por si só não é uma irregularidade, explicou o advogado eleitoral Fernando Neisser. 

“É natural que pessoas que participam do mesmo ciclo social se engajem com causas comuns”, disse. Mas, “caso fique provado que os voluntários sofreram ameaças ou foram pressionados de alguma forma pelas lideranças religiosas, há, sim, uma irregularidade, que pode ser punida pela Justiça Eleitoral”.

“Vote em homens de Deus”

“Vou votar no Miguel, que é o candidato da igreja. Ele tem muitos projetos”, disse um dos frequentadores do Templo de Salomão, confundindo o nome do vereador André Santos. Enquanto observávamos a fila em frente ao poço de Jacó – uma torneira na qual os fiéis do Templo de Salomão coletam água (eles levam garrafinhas para os pastores abençoarem no templo, pois acreditam que assim o líquido ganha propriedades milagrosas) –, perguntei se os projetos do vereador eram obras sociais. “Ele ajuda as obras do templo, recebe as pessoas no gabinete dele”, disse, sem conseguir dar mais detalhes.

Nesse mesmo momento, centenas de pessoas deixavam o Templo de Salomão depois da reunião das 7 horas do domingo (15), que quase lotou o salão com 10 mil assentos. Justamente no dia da votação, o bispo Edir Macedo tinha voltado a celebrar cultos depois de um período ausente. Mas ele não falou de candidatos.

“Se você honra a Deus, não precisa ficar vendendo voto?”, disse em um dos poucos momentos de referência mais direta à política. No domingo anterior, no entanto, o bispo Júlio Freitas, genro de Macedo, dedicou boa parte de sua pregação ao discurso político. “Não dê o seu voto para pessoas que estão tentando impedir a obra de Deus”, disse, sem citar nomes de candidatos.

Ele orientou as pessoas a frequentar a igreja, mesmo em um contexto de pandemia, “porque é o que a Bíblia ensina”. Em determinado momento do culto, Freitas pediu que as pessoas bebessem a água tirada do poço na frente da igreja – o que todos fizeram retirando as máscaras. 

Os fiéis também foram à frente do púlpito, onde fica uma suntuosa réplica da Arca da Aliança, um símbolo sagrado judeu, para receber a unção, um óleo que os pastores passam nas mãos das pessoas, que o espalham sobre o corpo e a cabeça.

No Espírito Santo, o bispo Jailson Ferreira, que coordena as ações da Universal no estado, usou as redes sociais para pedir votos para o vereador Rogério Rossetti. Ele declarou apoio à candidatura no Facebook. 

Já o bispo Alessandro Paschoal, coordenador do grupo de evangelização da Iurd no Brasil, promoveu “45 dias de orações pelas eleições”, fazendo transmissões ao vivo nos seus perfis das redes sociais. Nos vídeos, ele orientava que os membros da igreja votassem em “homens de Deus” e estimulava fiéis a fazer campanha pelos candidatos.

“Não vote contra a família. É de esquerda? É complicado”, disse em uma das transmissões. “Você que trabalhou por um candidato, você que lutou por alguém, eu quero te parabenizar. Dizer que Deus vai te abençoar”, falou em outro vídeo publicado pouco antes do dia de votação.

A Pública entrou em contato com a Assessoria de Imprensa da Igreja Universal, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. A assessorias do candidato André Santos (Republicanos) e dos candidatos do Republicanos no Espírito Santo também não responderam.

Embora muitas vezes não falem no púlpito sobre candidatos – porque é ilegal –, as lideranças religiosas aproveitam o espaço da internet para orientar votos, observou a professora Christina Vital. “Eles não estão no púlpito, mas continuam sendo lideranças importantes que influenciam as pessoas.”

Para ela, a influência de líderes religiosos, como pastores, na orientação do voto com campanhas diretas de candidatos foi marcante nestas eleições. “A gente teve uma oportunidade de tentar combater esse tipo de atuação, mas, como a legislação não avançou em criar dispositivos para punir o abuso do poder religioso, o que se viu foi um grande sucesso dessas lideranças, sobretudo da Universal, em eleger seus aliados.”

Fieis na frente do Templo de Salomão,
em São Paulo, distribuindo santinhos


Comentários

Indivíduo disse…
Pela democracia, deve ser feita a vontade da maioria e se a maioria for religiosa, então teremos uma democracia religiosa. E aí, Dr. Psicólogo Ateu? A democracia está certa?
Emerson Santos disse…
A maioria eh de analfabetos funcionais e que odeiam estudo e ciência ... Temos os políticos que refletem essa situação

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Dawkins é criticado por ter 'esperança' de que Musk não seja tão estúpido como Trump

Tibetanos continuam se matando. E Dalai Lama não os detém

O Prêmio Nobel da Paz é "neutro" em relação às autoimolações Stephen Prothero, especialista em religião da Universidade de Boston (EUA), escreveu um artigo manifestando estranhamento com o fato de o Dalai Lama (foto) se manter neutro em relação às autoimolações de tibetanos em protesto pela ocupação chinesa do Tibete. Desde 16 de março de 2011, mais de 40 tibetanos se sacrificaram dessa dessa forma, e o Prêmio Nobel da Paz Dalai Lama nada fez para deter essa epidemia de autoimolações. A neutralidade, nesse caso, não é uma forma de conivência, uma aquiescência descompromissada? Covardia, até? A própria opinião internacional parece não se comover mais com esse festival de suicídios, esse desprezo incandescente pela vida. Nem sempre foi assim, lembrou Prothero. Em 1963, o mundo se comoveu com a foto do jornalista americano Malcolm Wilde Browne que mostra o monge vietnamita Thich Quang Duc colocando fogo em seu corpo em protesto contra a perseguição aos budistas pelo

Veja os 10 trechos mais cruéis da Bíblia

TJs perdem subsídios na Noruega por ostracismo a ex-fiéis. Duro golpe na intolerância religiosa

Condenado por estupro, pastor Sardinha diz estar feliz na cadeia

Pastor foi condenado  a 21 anos de prisão “Estou vivendo o melhor momento de minha vida”, diz José Leonardo Sardinha (foto) no site da Igreja Assembleia de Deus Ministério Plenitude, seita evangélica da qual é o fundador. Em novembro de 2008 ele foi condenado a 21 anos de prisão em regime fechado por estupro e atentado violento ao pudor. Sua vítima foi uma adolescente que, com a família, frequentava os cultos da Plenitude. A jovem gostava de um dos filhos do pastor, mas o rapaz não queria saber dela. Sardinha então disse à adolescente que tinha tido um sonho divino: ela deveria ter relações sexuais com ele para conseguir o amor do filho, e a levou para o motel várias vezes. Mas a ‘profecia’ não se realizou. O Sardinha Jr. continuou não gostando da ingênua adolescente. No texto publicado no site, Sardinha se diz injustiçado pela justiça dos homens, mas em contrapartida, afirma, Deus lhe deu a oportunidade de levar a palavra Dele à prisão. Diz estar batizando muita gen

Proibido o livro do padre que liga a umbanda ao demônio

Padre Jonas Abib foi  acusado da prática de  intolerância religiosa O Ministério Público pediu e a Justiça da Bahia atendeu: o livro “Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de Cura e Libertação”, do padre Jonas Abib (foto), terá de ser recolhido das livrarias por, nas palavras do promotor Almiro Sena, conter “afirmações inverídicas e preconceituosas à religião espírita e às religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, além de flagrante incitação à destruição e ao desrespeito aos seus objetos de culto”. O padre Abib é ligado à Renovação Carismática, uma das alas mais conservadoras da Igreja Católica. Ele é o fundador da comunidade Canção Nova, cuja editora publicou o livro “Sim, Sim!...”, que em 2007 vendeu cerca de 400 mil exemplares, ao preço de R$ 12,00 cada um, em média. Manuela Martinez, da Folha, reproduz um trecho do livro: "O demônio, dizem muitos, "não é nada criativo". (...) Ele, que no passado se escondia por trás dos ídolos, hoje se esconde no

Profecias de fim do mundo

O Juízo Final, no afresco de Michangelo na Capela Sistina 2033 Quem previu -- Religiosos de várias épocas registraram que o Juízo Final ocorrerá 2033, quando a morte de cristo completará 2000. 2012 Quem previu – Religiosos e teóricos do apocalipse, estes com base no calendário maia, garantem que o dia do Juízo Final ocorrerá em dezembro, no dia 21. 2011 Quem previu – O pastor americano Harold Camping disse que, com base em seus cálculos, Cristo voltaria no dia 21 de maio, quando os puros seriam arrebatados e os maus iriam para o inferno. Alguns desastres naturais, como o terremoto seguido de tsunami no Japão, serviram para reforçar a profecia. O que ocorreu - O fundador do grupo evangélico da Family Radio disse estar "perplexo" com o fato de a sua profecia ter falhado. Ele virou motivo de piada em todo o mundo. Camping admitiu ter errado no cálculo e remarcou da data do fim do mundo, que será 21 de outubro de 2011. 1999 Quem previu – Diversas profecias

Santuário Nossa Senhora Aparecida fatura R$ 100 milhões por ano

Basílica atrai 10 milhões de fiéis anualmente O Santuário de Nossa Senhora de Aparecida é uma empresa da Igreja Católica – tem CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) – que fatura R$ 100 milhões por ano. Tudo começou em 1717, quando três pescadores acharam uma imagem de Nossa Senhora no rio Paraíba do Sul, formando-se no local uma vila que se tornou na cidade de Aparecida, a 168 km de São Paulo. Em 1984, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) concedeu à nova basílica de Aparecida o status de santuário, que hoje é uma empresa em franca expansão, beneficiando-se do embalo da economia e do fortalecimento do poder aquisitivo da população dos extratos B e C. O produto dessa empresa é o “acolhimento”, disse o padre Darci José Nicioli, reitor do santuário, ao repórter Carlos Prieto, do jornal Valor Econômico. Para acolher cerca de 10 milhões de fiéis por ano, a empresa está investindo R$ 60 milhões na construção da Cidade do Romeiro, que será constituída por trê