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Saiba por que o espiritismo kardecista é a alma da pseudociência no Brasil

Alan Kardec foi influenciado pelas supostas conversas do teólogo sueco Emanuel Swedenborg com espíritos de outros planetas


Natália 
Pasternak
microbiologista

Carlos Orsi
jornalista


As origens do espiritualismo moderno, a crença de que os mortos podem falar com os vivos por meio de pessoas especialmente dotadas chamadas 'canalizadores' ou 'médiuns', remontam à cidade de Hydesville, Nova York, em 1848, quando dois adolescentes, Maggie e Kate Fox, começaram a se comunicar com um fantasma. 

Décadas depois, as duas irmãs, em várias ocasiões, confessaram a fraude e, com pouca ou nenhuma repercussão, denunciaram o movimento que haviam iniciado involuntariamente. 

Localizada inicialmente na encruzilhada entre religião e ciência   —  muitas vezes vista como uma fonte de validação científica e empírica para princípios de sistemas religiosos e metafísicos, como a sobrevivência da personalidade após a morte corporal  —, o espiritualismo, pelo menos em países de língua inglesa, fragmentou-se em cultos religiosos populistas ou em atrações de circo, atraindo multidões, não muito diferente do negócio de cura pela fé, e igualmente explorado por operadores obscuros.

A ala mais científica do movimento se desprendeu, pelo menos em público, das pretensões metafísicas, agora atuando na parapsicologia.

No Brasil, porém, as coisas aconteceram de forma bem diferente: aqui, quando o espiritualismo se fragmentou, um aspecto — denominado “espiritismo”, “kardecismo” ou “espiritismo kardecista” — suplantou todos os outros e foi abraçado por membros relevantes das elites intelectuais e profissionais, incluindo médicos, advogados, juízes, políticos. 

O espiritualismo se tornou, assim, o principal nexo da pseudociência brasileira, incorporando ufologia, parapsicologia, cura pela fé e todos os tipos de medicamentos alternativos “magnéticos” e “baseados em energia”.

O kardecismo leva o nome de Allan Kardec, pseudônimo do escritor e educador francês Hippolyte Rivail (1804-1869), que escreveu extensivamente sobre o assunto, construindo uma “doutrina espírita” própria, incluindo sucessivas reencarnações e progressão da alma.

 As ideias de Kardec foram influenciadas pelo magnetismo animal” dos mesmeristas do século XVIII e pelas supostas conversas do teólogo sueco Emanuel Swedenborg (1668-1772) com espíritos de outros planetas.

As ideias de Kardec não impressionaram a maioria dos espiritualistas de seu tempo — o médium escocês DD Home (1833-1886), uma verdadeira “estrela do rock” da cena espiritualista vitoriana, descreveu-as como “delírios” e “fantasias”, mas elas se enraizaram no Brasil e passou por um processo de sincretismo bem brasileiro, de fusão de doutrinas diversas em quimeras ideológicas muito ágeis.

Por exemplo, um dos principais proponentes do kardecismo brasileiro, o médico Bezerra de Menezes (1831 – 1900) deixou um trato psiquiátrico póstumo, “A Loucura sob um novo prisma”, dizendo que transtornos mentais que ocorrem sem lesão cerebral perceptível deveriam ser atribuído à interferência espiritual. 

O livro termina com uma carta supostamente escrita pelo fantasma de Samuel Hahnemann (1775-1779), o criador da homeopatia. 

Como resultado, no final do século XIX era comum médiuns e espíritas, em transe, prescreverem medicação homeopática. 


Brasil tem tradição
de pessoas que falam
com espíritos, como
Zé Arigo e João de Deus

Durante o século XX, o kardecismo se conectou à ufologia (considerando haver manifestações de  espíritos extraterrestres), à homeopatia, à acupuntura, à cura pela fé, à transferência de "energia" positiva a doentes pelas mãos, à cirurgia psíquica, à parapsicologia (o livro canônico sobre a investigação dos poltergeists no Brasil, de Hernani Guimarães Andrade (1913-2003) é uma obra espírita), e até à  jurisprudência.

A disseminação desse tipo de crença sobrenatural vai tão longe que há um debate animado em faculdades de Direito e tribunais sobre a admissibilidade de material "psíquico", ou seja, cartas escritas por um médium enquanto possuído por uma pessoa morta, como prova em julgamentos de homicídio: pelo menos um assassino acusado foi absolvido pelo júri depois que a vítima testemunhou em seu nome, desde o Grande Além .

Quando a ditadura militar (1964-1985) chegou ao fim e o país elaborou uma nova Constituição democrática, os espíritas estavam na vanguarda do esforço para institucionalizar a medicina alternativa no sistema de saúde. 

Os líderes espíritas reivindicaram “uma Nova Epistemologia para uma Nova República”, e o I Congresso Internacional de Terapias Alternativas, realizado em São Paulo em fevereiro de 1985, foi um Congresso espírita de fato.

Se o Brasil queria liberdade política, por que não liberdade epistêmica? Então, agora, 36 anos depois, temos 29 terapias complementares e alternativas pagas com recursos do governo.

O problema com a liberdade epistêmica é que não podemos votar para decidir se um antibiótico funciona ou não, temos que testá-lo em laboratórios clínicos. E se os testes mostrarem que o antibiótico funciona, não importa como você se sinta a respeito dele ou se não acredita nele: ele funcionará de qualquer maneira.

Quando o método científico é criticado por não ser um método perfeito, podemos fazer uma comparação útil com a democracia: sabemos que a democracia não é perfeita, pois às vezes são eleitos governos autoritários ou incompetentes, mas é o melhor sistema que temos até agora. Da mesma forma, a ciência é o melhor sistema que temos para testar hipóteses e desenvolver tecnologias e terapias que realmente funcionem.

No entanto, o sentimento geral de liberdade em nossa jovem democracia brasileira na década de 1980 pode ter dado origem a um ambiente onde, como diz Isaac Asimov : “O anti-intelectualismo tem sido um fio constante em nossa vida política e cultural, alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento.”

Nesse ambiente, a medicina alternativa floresceu. Endossada pela opinião pública e pelo sentimento religioso, ela rapidamente ganhou reconhecimento oficial como medicamento, sem contestação por várias décadas. 

Poucos questionaram a presença da medicina alternativa no sistema público de saúde, e logo terapias alternativas foram introduzidas nas escolas médicas e na rede privada de saúde. Falar contra a medicina alternativa era considerado “cientificismo” e desrespeito à sabedoria do “povo”.

Essa mentalidade tem um forte impacto sobre como uma sociedade reage à medicina baseada em evidências. Não é de admirar que o Brasil tenha sido o centro de curas milagrosas durante a pandemia. 

O pensamento mágico se estende da homeopatia à cloroquina, ivermectina, nitazoxanida e todos os tipos de 'curas' falsas atualmente endossadas e promovidas pelo nosso Ministério da Saúde.

Os argumentos são os mesmos endossados ​​pela “democracia epistêmica” dos anos 80: a valorização da evidência anedótica, a inversão do ônus da prova exigindo que os cientistas provem que esses tratamentos não funcionam, o mau uso de velha argumentação segundo a qual “a ausência de evidência não é evidência de ausência”.

Nossa história com o espiritismo e a medicina alternativa mostra que temos um longo caminho a percorrer se quisermos promover a alfabetização científica. 

Não se trata apenas de explicar como a ciência funciona, mas de compreender décadas de hábitos culturais e crenças religiosas que se misturaram com a ciência e a medicina e, pior, a religião disfarçada de ciência. O excepcionalismo epistêmico da ciência existe por uma razão: as terapias baseadas na ciência podem funcionar.

> Este artigo foi publicado originalmente The Skeptic com o título Kardecism: the fringe spiritualist doctrine which became the soul of pseudoscience in Brazil. A pintura que ilustra o texto é Hypnotic Séance (1887), de Richard Bergh, e se encontra no museu National Museum.



Comentários

Paul Muadib disse…
O espiritismo foi uma tentativa de "cientificar" o cristianismo.

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