> RICARDO OLIVEIRA DA SILVA
professor do curso de história da UFMS/CPNA
Em maio de 2020 era publicado o livro O Ateísmo no Brasil: os sentidos da descrença nos séculos XX e XXI. A pesquisa que resultou na elaboração dessa obra foi um desafio, entre outros fatores, pela escassez de bibliografia que ajudasse a pensar em linhas de investigação. Até então, o único trabalho de fôlego sobre o tema que eu conhecia era História do Ateísmo, livro do historiador francês Georges Minois, lançado no Brasil em 2014.
A obra de Georges Minois me parecia uma produção isolada na historiografia. E essa impressão se acentuava quando eu me debruçava sobre as pesquisas históricas no Brasil, onde o ateísmo como objeto de pesquisa é uma notória ausência. Felizmente, comecei a encontrar mais livros sobre história do ateísmo na produção historiográfica de outros países. Ainda que não seja em uma quantidade expressiva, sua existência é um alento.
Mas o que explicaria essa aparente falta de interesse da comunidade historiográfica em estudar o ateísmo, especialmente quando se pensa o meio acadêmico brasileiro?
Hoje, o conhecimento científico possui projeção entre ateístas como referencial para explicar a realidade. Isso faz com que dentro dessa comunidade muitos ateus/ateias que negam a validade da ciência sejam criticados. Contudo, se ficássemos restrito ao entendimento de que ateísmo é apenas não acreditar que Deus existe, não haveria motivo para crítica. Não existiria contradição, por exemplo, o fato de um ateu acreditar que a Terra é plana, pois isso não implicaria, a rigor, que para ele uma Terra plana foi criada por Deus. Se essa postura causa desconforto, é porque ateísmo é mais do que não acreditar em Deus.
A fortuna crítica do livro O Ateísmo no Brasil: os sentidos da descrença nos séculos XX e XXI na historiografia brasileira é algo que só se saberá com o tempo. Eu ficarei feliz se esse trabalho estimular novas pesquisas. Particularmente, gostei muito do título de uma resenha feita pelo jornalista Paulo Lopes: “Livro ‘Ateísmo no Brasil’ recupera um país que poucos brasileiros conhecem”. Que esse “país” possa ser mais conhecido.
professor do curso de história da UFMS/CPNA
Em maio de 2020 era publicado o livro O Ateísmo no Brasil: os sentidos da descrença nos séculos XX e XXI. A pesquisa que resultou na elaboração dessa obra foi um desafio, entre outros fatores, pela escassez de bibliografia que ajudasse a pensar em linhas de investigação. Até então, o único trabalho de fôlego sobre o tema que eu conhecia era História do Ateísmo, livro do historiador francês Georges Minois, lançado no Brasil em 2014.
A obra de Georges Minois me parecia uma produção isolada na historiografia. E essa impressão se acentuava quando eu me debruçava sobre as pesquisas históricas no Brasil, onde o ateísmo como objeto de pesquisa é uma notória ausência. Felizmente, comecei a encontrar mais livros sobre história do ateísmo na produção historiográfica de outros países. Ainda que não seja em uma quantidade expressiva, sua existência é um alento.
Mas o que explicaria essa aparente falta de interesse da comunidade historiográfica em estudar o ateísmo, especialmente quando se pensa o meio acadêmico brasileiro?
A bibliografia que li aponta algumas hipóteses. Por exemplo, a ideia de o ateísmo ser um “tema maldito”, fruto de séculos de preconceito e violência que tiveram como fundamento a noção de ateus/ateias serem pessoas imorais e socialmente perigosas pelo fato de não compartilharem de crenças religiosas postas como ideal de vida e de comunhão coletiva.
A desconfiança social, ainda existente nos dias de hoje, atuaria como um inibidor aos olhos de historiadores. Mas a isso se pode acrescentar o fato de que, perante as dificuldades verificadas em diversos períodos históricos para as pessoas manifestarem uma visão de mundo não-religiosa, a escassez de produção e preservação de fontes que amparem pesquisas exerça um papel desafiador para conhecer o passado das ideias e grupos ateístas.
A essas hipóteses eu acrescentarei uma que chamarei de “armadilha etimológica”. A palavra ateísmo deriva de atheos, termo que surgiu na Grécia Antiga para identificar inicialmente pessoas que viveriam sem a presença dos Deuses. Porém, não tardou para a palavra ser usada como referência a pessoas que manifestavam dúvidas ou rejeitavam a existência dos Deuses, assim como aquelas que se recusavam a participar dos cultos religiosos. Com o passar do tempo, ateísmo passou a ser entendido cada vez mais como referência ao indivíduo que nega a existência de Deus, o que encontra amparo na etimologia da palavra.
A noção de que ser ateu significa apenas não acreditar em Deus colabora para o entendimento de que ateísmo só possui sentido a partir daquilo que nega, ou seja, a religião. A partir dessa linha de raciocínio o ateísmo não teria conteúdo que lhe desse substância teórica e prática própria. Portanto, não faria sentido falar em “história do ateísmo”. Muito menos pesquisar sua trajetória. Isso é o que eu chamo de “armadilha etimológica”.
Contudo, quando se pensa o ateísmo como fenômeno histórico, o sentido etimológico da palavra é insuficiente para sua compreensão, uma vez que ele é fruto de condições socioculturais singulares que lhe dão significados específicos. Os historiadores que tenho lido (por exemplo: Georges Minois, Alan Charles Kors, Christopher Cameron, Victoria Smolkin, Alexander G. Nathan) realçam essa perspectiva analítica ao afirmarem que o ateísmo implica na construção de referenciais próprios para dar sentido a existência humana.
A desconfiança social, ainda existente nos dias de hoje, atuaria como um inibidor aos olhos de historiadores. Mas a isso se pode acrescentar o fato de que, perante as dificuldades verificadas em diversos períodos históricos para as pessoas manifestarem uma visão de mundo não-religiosa, a escassez de produção e preservação de fontes que amparem pesquisas exerça um papel desafiador para conhecer o passado das ideias e grupos ateístas.
A essas hipóteses eu acrescentarei uma que chamarei de “armadilha etimológica”. A palavra ateísmo deriva de atheos, termo que surgiu na Grécia Antiga para identificar inicialmente pessoas que viveriam sem a presença dos Deuses. Porém, não tardou para a palavra ser usada como referência a pessoas que manifestavam dúvidas ou rejeitavam a existência dos Deuses, assim como aquelas que se recusavam a participar dos cultos religiosos. Com o passar do tempo, ateísmo passou a ser entendido cada vez mais como referência ao indivíduo que nega a existência de Deus, o que encontra amparo na etimologia da palavra.
A noção de que ser ateu significa apenas não acreditar em Deus colabora para o entendimento de que ateísmo só possui sentido a partir daquilo que nega, ou seja, a religião. A partir dessa linha de raciocínio o ateísmo não teria conteúdo que lhe desse substância teórica e prática própria. Portanto, não faria sentido falar em “história do ateísmo”. Muito menos pesquisar sua trajetória. Isso é o que eu chamo de “armadilha etimológica”.
Contudo, quando se pensa o ateísmo como fenômeno histórico, o sentido etimológico da palavra é insuficiente para sua compreensão, uma vez que ele é fruto de condições socioculturais singulares que lhe dão significados específicos. Os historiadores que tenho lido (por exemplo: Georges Minois, Alan Charles Kors, Christopher Cameron, Victoria Smolkin, Alexander G. Nathan) realçam essa perspectiva analítica ao afirmarem que o ateísmo implica na construção de referenciais próprios para dar sentido a existência humana.
Ateísmo não é só descrença em deuses, porque se trata, sobretudo, de um fenômeno histórico com significados específicos |
Hoje, o conhecimento científico possui projeção entre ateístas como referencial para explicar a realidade. Isso faz com que dentro dessa comunidade muitos ateus/ateias que negam a validade da ciência sejam criticados. Contudo, se ficássemos restrito ao entendimento de que ateísmo é apenas não acreditar que Deus existe, não haveria motivo para crítica. Não existiria contradição, por exemplo, o fato de um ateu acreditar que a Terra é plana, pois isso não implicaria, a rigor, que para ele uma Terra plana foi criada por Deus. Se essa postura causa desconforto, é porque ateísmo é mais do que não acreditar em Deus.
A fortuna crítica do livro O Ateísmo no Brasil: os sentidos da descrença nos séculos XX e XXI na historiografia brasileira é algo que só se saberá com o tempo. Eu ficarei feliz se esse trabalho estimular novas pesquisas. Particularmente, gostei muito do título de uma resenha feita pelo jornalista Paulo Lopes: “Livro ‘Ateísmo no Brasil’ recupera um país que poucos brasileiros conhecem”. Que esse “país” possa ser mais conhecido.
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