Cristãos são maioria, mas maioria não é sinônimo de democracia
JULIANA ROSAS
Observatório da Ética Jornalística
“A palavra é problemática. Existem dois tipos de ‘deus’ no mundo e as pessoas tendem a misturá-los. Há um tipo de deus, o deus misterioso, sobre o qual nada sabemos. A principal característica desse deus é justamente que ele é misterioso e nós humanos não conseguimos compreendê-lo. Como começou o Big Bang ou como a vida começou, todas as coisas que a ciência não sabe. Estou perfeitamente satisfeito com este deus misterioso. Mas há um tipo completamente oposto de deus, que se concretiza como deus legislador e sobre este deus se conhece muito. Sabe-se exatamente o que este deus pensa sobre a moda feminina, sobre a sexualidade, em quem você deve votar. De alguma forma, as pessoas trocam de deus e por causa disso as mulheres deveriam se cobrir, dois homens não deveriam fazer sexo um com o outro e você deveria votar neste ou naquele partido. Se há uma força responsável pelo grande mistério da vida no universo, pelos buracos negros e galáxias, não acho realmente que ele se preocupa com o código de vestimenta das mulheres.”
JULIANA ROSAS
Observatório da Ética Jornalística
“A palavra é problemática. Existem dois tipos de ‘deus’ no mundo e as pessoas tendem a misturá-los. Há um tipo de deus, o deus misterioso, sobre o qual nada sabemos. A principal característica desse deus é justamente que ele é misterioso e nós humanos não conseguimos compreendê-lo. Como começou o Big Bang ou como a vida começou, todas as coisas que a ciência não sabe. Estou perfeitamente satisfeito com este deus misterioso. Mas há um tipo completamente oposto de deus, que se concretiza como deus legislador e sobre este deus se conhece muito. Sabe-se exatamente o que este deus pensa sobre a moda feminina, sobre a sexualidade, em quem você deve votar. De alguma forma, as pessoas trocam de deus e por causa disso as mulheres deveriam se cobrir, dois homens não deveriam fazer sexo um com o outro e você deveria votar neste ou naquele partido. Se há uma força responsável pelo grande mistério da vida no universo, pelos buracos negros e galáxias, não acho realmente que ele se preocupa com o código de vestimenta das mulheres.”
Este é um trecho de uma fala do historiador Yuval Noah Harari, autor do best seller “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, entre outros livros. O “terrivelmente evangélico” indicado a ocupar a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) usa este segundo tipo de deus em várias de suas declarações.
Jornalista da Folha acha que Estado laico é coisa só de ateus“Os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”, disse André Mendonça em abril 2021. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, também teve sua cota extrapolada de decisões baseadas exclusivamente em sua religião e quando questionada sobre a laicidade do Estado, proferiu uma das suas mais famosas frases: “O Estado é laico, mas a ministra é terrivelmente cristã”.
Se as pessoas tendem a considerar sua fé como algo bom, usar o advérbio “terrivelmente” seguido de qualquer adjetivo deveria ser questionável. Mas como sempre foi comum no jornalismo, declarações são repetidas sem questionamento. Coloca-se aspas, cita-se o autor e tudo bem. A imprensa acredita que está sendo objetiva e imparcial. Frente à extrema polarização política que tomou o país há alguns anos, resvalando para outras áreas, como religião e comportamento, muitos se esquecem da história.
Numa época não tão longínqua assim, não havia Estado ou este era a Igreja. Não havia leis e pessoas inocentes foram queimadas vivas. A fogueira foi apenas uma das consequências de ter poderes religiosos governando a vida da população. Indivíduos mataram e morreram em nome de seu deus, fé ou religião. Esta nem sempre foi boa e pura. Foi corrompida pela humanidade por questões pessoais e mesquinhas. O jornalismo estaria sendo informativo, e também — por que não? — objetivo ao contextualizar declarações e notícias. De cunho religioso ou não.
Mas não é só do atual governo que o jornalismo extrai suas citações religiosas. Cristãs, para ser mais exata. Com a morte de mais de 600 mil brasileiros por Covid-19 desde o início da pandemia, boa parte da população recorreu à fé para explicar a tragédia. Quando ela chegou a famosos, o jornalismo reverberou. Há quem tenha dito que a morte de Paulo Gustavo foi castigo ou “porque deus quis”. Outras prontamente esclareceram que o que o matou foi a doença, agravada pela falta de vacina e pelas inações governamentais.
Não ouvimos dos céus se alguém desceu para buscar o ator e comediante ou algum dos mais de 600 mil mortos, mas as ações desumanas do governo puderam ser vistas no dia a dia e compuseram o relatório da CPI da Covid.
Se as pessoas tendem a considerar sua fé como algo bom, usar o advérbio “terrivelmente” seguido de qualquer adjetivo deveria ser questionável. Mas como sempre foi comum no jornalismo, declarações são repetidas sem questionamento. Coloca-se aspas, cita-se o autor e tudo bem. A imprensa acredita que está sendo objetiva e imparcial. Frente à extrema polarização política que tomou o país há alguns anos, resvalando para outras áreas, como religião e comportamento, muitos se esquecem da história.
Numa época não tão longínqua assim, não havia Estado ou este era a Igreja. Não havia leis e pessoas inocentes foram queimadas vivas. A fogueira foi apenas uma das consequências de ter poderes religiosos governando a vida da população. Indivíduos mataram e morreram em nome de seu deus, fé ou religião. Esta nem sempre foi boa e pura. Foi corrompida pela humanidade por questões pessoais e mesquinhas. O jornalismo estaria sendo informativo, e também — por que não? — objetivo ao contextualizar declarações e notícias. De cunho religioso ou não.
Mas não é só do atual governo que o jornalismo extrai suas citações religiosas. Cristãs, para ser mais exata. Com a morte de mais de 600 mil brasileiros por Covid-19 desde o início da pandemia, boa parte da população recorreu à fé para explicar a tragédia. Quando ela chegou a famosos, o jornalismo reverberou. Há quem tenha dito que a morte de Paulo Gustavo foi castigo ou “porque deus quis”. Outras prontamente esclareceram que o que o matou foi a doença, agravada pela falta de vacina e pelas inações governamentais.
Não ouvimos dos céus se alguém desceu para buscar o ator e comediante ou algum dos mais de 600 mil mortos, mas as ações desumanas do governo puderam ser vistas no dia a dia e compuseram o relatório da CPI da Covid.
Os mais sensíveis certamente estarão esbravejando sobre a liberdade religiosa ou de expressão, citando até um dos mais ridículos conceitos que se ousou usar no país: cristofobia. Entretanto, em nome da democracia e dos valores jornalísticos, é um debate que necessita ser travado seriamente.
O jornalismo tradicional afirma ser plural, objetivo, apartidário. Sempre ouvindo todos os lados da história, não assumindo ideologias ou partidos.
O jornalismo tradicional afirma ser plural, objetivo, apartidário. Sempre ouvindo todos os lados da história, não assumindo ideologias ou partidos.
Se é uma terrível ofensa ao jornalismo dizer que ele estaria defendendo esta ou aquela ideologia, partido x ou y, por que não podemos dizer que sua tendência de comportamento e cobertura é cristã e que nesse campo deveria também ser objetivo e plural? Somente porque o cristianismo é a religião majoritária no país?
Cristãos são maioria no Brasil mas maioria, ao contrário do que muitos pensam, não é sinônimo de democracia. É, entre outras definições, respeito às minorias. Mais do que antes, atualmente procura-se mais aceitação por diversos movimentos, minoritários ou não, como o negro, feminino, indígena, LGBTQIA+, etc. E tem se buscado também mais consideração pelas religiões de matriz africana.
Para quem também não sabe, o Brasil é um Estado laico, independentemente da religião da população. A Constituição assegura a liberdade de crença, mas também que alguém não pode justificar um crime pela religião e há leis e ações que coíbem a intolerância religiosa. A justiça é “cega” não para deixar de ver malfeitos, mas para que todos sejam iguais perante ela.
Para quem também não sabe, o Brasil é um Estado laico, independentemente da religião da população. A Constituição assegura a liberdade de crença, mas também que alguém não pode justificar um crime pela religião e há leis e ações que coíbem a intolerância religiosa. A justiça é “cega” não para deixar de ver malfeitos, mas para que todos sejam iguais perante ela.
A laicidade da justiça existe para que as leis estejam acima de fés individuais e garantir a equidade de todos perante a legislação. Religiões têm suas crenças e ações, individuais ou coletivas e o Estado não pode se guiar por algo que pode beneficiar uns e prejudicar outros.
Em uma tragédia e caso tornado midiático mais recente, a morte de Marília Mendonça, a religião no jornalismo esteve presente especialmente nas falas de amigos e familiares. Sobre discursos políticos, estudos e críticas jornalísticas afirmam que somente reproduzir tais falas, sem contexto e acriticamente, pode propagar notícias falsas e espalhar desinformação.
Inúmeros casos aconteceram com atual presidente do Brasil e o ex-presidente americano. O presidente brasileiro se diz aliado da comunidade judaica, mas tem ações e aliados que exaltam a supremacia branca. Comporta-se em visitas a países árabes e muçulmanos, mas faz declarações islamofóbicas.
A fé acima de outros valores acaba fazendo com que pessoas tratem mal seu semelhante e justifiquem doenças ou desastres, algo que, por princípio moral, não deveriam fazê-lo.
A fé acima de outros valores acaba fazendo com que pessoas tratem mal seu semelhante e justifiquem doenças ou desastres, algo que, por princípio moral, não deveriam fazê-lo.
Por preconceito e comentários maldosos, muitos evitam declarar sua religião ou falta desta no ambiente de trabalho. O objETHOS observa a ética jornalística e nada mais antiético do que a intolerância religiosa. Quando esta resvala no fanatismo, já se torna criminosa.
O jornalismo pode, em vez de normalizar comportamentos antiéticos em nome da religião, expô-los, criticá-los e contextualizá-los à luz da democracia. Quando não o faz, deixa de cumprir seu dever ético, democrático e de serviço público.
Por séculos, religião e política andaram juntas e não foi fácil a separação. Nem na prática nem nas mentes. “O cristianismo na política deixou de ser sinônimo de justiça social e igualdade, nos anos 1970 e 1980, para ser agora sinônimo de aversão a direitos e liberdades. E a Bíblia deixou de ser sinônimo de libertação, para ser um chicote que se estala no lombo de minorias e meio de opressão”, afirmou o professor e pesquisador Wilson Gomes.
Muitas vezes, a cruz vira espada e políticos apelam “à radicalização religiosa para dividir o país e corroer ainda mais a democracia”. Muitos brasileiros são terrivelmente cristãos e não conseguem perceber que o Estado é melhor laico e certos tipos de fé fazem mal e não bem. Mas a sociedade brasileira não está preparada para esta discussão. E o jornalismo do país é receoso em iniciá-la.
Por séculos, religião e política andaram juntas e não foi fácil a separação. Nem na prática nem nas mentes. “O cristianismo na política deixou de ser sinônimo de justiça social e igualdade, nos anos 1970 e 1980, para ser agora sinônimo de aversão a direitos e liberdades. E a Bíblia deixou de ser sinônimo de libertação, para ser um chicote que se estala no lombo de minorias e meio de opressão”, afirmou o professor e pesquisador Wilson Gomes.
Muitas vezes, a cruz vira espada e políticos apelam “à radicalização religiosa para dividir o país e corroer ainda mais a democracia”. Muitos brasileiros são terrivelmente cristãos e não conseguem perceber que o Estado é melhor laico e certos tipos de fé fazem mal e não bem. Mas a sociedade brasileira não está preparada para esta discussão. E o jornalismo do país é receoso em iniciá-la.
> Juliana é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC. Esse texto foi publicado originalmente no site objEETHOS (Observatório da Ética Jornalista) sob o título "O Jornalismo e o Terrivelmente Cristão".
Comentários
O mais comum dessa crença em Deus é ter regrinhas, quase sempre esquisitas, sem sentido e até preconceituosas. Mesmo que de ordem meramente pessoal. Ou seja, Deus É também uma religião quase sempre, ainda que não oficial. Como pelo exposto do artigo, o mais comum ainda são os esquemas organizados e institucionalizados. Ah, aí sim, é *A* desgraça! Isso ocorre mesmo com religiões (ou outras crenças de fé) sem Deus, quando estas assumem protagonismo organizacional e até institucional.
Do artigo:
"“O cristianismo na política deixou de ser sinônimo de justiça social e igualdade, nos anos 1970 e 1980, para ser agora sinônimo de aversão a direitos e liberdades. E a Bíblia deixou de ser sinônimo de libertação, para ser um chicote que se estala no lombo de minorias e meio de opressão”, afirmou o professor e pesquisador Wilson Gomes."
Pelo jeito ele nunca leu a Bíblia, ou nem a entendeu... No MÍNIMO é promover erros de raciocínio lógico pelas inconsistências, hipocrisias. Promover a dissonância cognitiva etc.
Agora do "Cristianismo com'justiça social'" ONDE? Só se for com pessoas cis-hétero e as mulheres inferiores. O restante das pessoas no mínimo inferiores para até "doença", "aberrações". Fora considerar outras vertentes cristãs, crenças e particularmente descrenças como "algo ruim". Há ALGUMAS pessoas de bem real no meio cristão, são as excessões.
Por isso no artigo o fator laico no Estado é melhor para todos. E vou além, o fator laico deve ser em TUDO. Nas concessões PÚBLICAS, na Educação, exceto quando a mesma é específica religiosa aos ADULTOS etc. Também impedir que grupos religiosos promovam valores que estejam FORA de seus âmbitos.
Realmente, quase todo jornalismo é muito tendencioso e enaltecedor das crenças, seja por pura ideologia, como "nem aí", valem os patrocínios. No caso do citado "Cristianismo", NEM ao menos há espaço adequado aos das excessões. É como o Cristianismo só se resumissem nas vertentes intolerantes e antilaicas.
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