Método fez mulheres vítimas de violência doméstica a reviverem seus traumas
NATALIA PASTERNAK
PHD em microbiologia
Imagine uma mulher que foi vítima de violência doméstica. De acordo com a segunda edição do Jusbarômetro de São Paulo, pesquisa realizada em 2021 a pedido da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), as principais razões que levam uma mulher a não denunciar o agressor são medo, vergonha e falta de confiança no Judiciário e nas leis.
Agora imagine que após fazer a denúncia, com medo, com vergonha e cética, ela receba do juiz a sugestão de uma Constelação Familiar (CF) como tentativa de conciliação. Bert Hellinger, o inventor da prática, valeu-se de conceitos pseudocientíficos e de uma visão metafísica patriarcal e machista. Na “harmonia do amor” de Hellinger, cada integrante da família tem funções definidas por leis cósmicas, e toda desarmonia, inclusive violência, é fruto de algum desequilíbrio. Na harmonia ideal, o homem tem todos os privilégios e a mulher e as crianças devem se manter nos devidos lugares.
A Constelação Familiar chegou ao Brasil em 1999, e começou a ser aplicada no Judiciário em 2012. Hoje, é de uso rotineiro em direito de família, incluindo casos de divórcio, guarda de menores e violência doméstica.
Numa “sessão” de CF, membros da família ou representantes voluntários interagem numa sala sob a orientação do profissional constelador, que interpreta o que se passa e oferece conselhos. Essa leitura é feita dentro dos preceitos de Hellinger, que estabelece, por exemplo, que um estupro de menor pode ser entendido como resultado de falha da mãe em satisfazer o pai. O estuprador é apenas uma vítima da desarmonia familiar, e se a mãe lhe pedir perdão, a harmonia será restaurada.
Casos documentados pela imprensa trazem depoimentos de mulheres vítimas de agressão que tiveram que reviver seus traumas, encarar o agressor, e até mesmo pedir perdão ao criminoso. Ao explicar o que se passa nas sessões, consteladores usam um vocabulário recheado de expressões como “energia quântica” e “campos morfogenéticos”. São jargões de filme da Marvel, frases que soam vagamente científicas mas que, no contexto em que estão sendo usadas, carecem de lógica e sentido. Esse truque é marca registrada das pseudociências.
Outra marca registrada é a da própria constelação no Judiciário, chamada — e devidamente patenteada — de Direito Sistêmico. O Direito Sistêmico® é utilizado em diversos estados e está presente em centenas de comissões da OAB, muito embora a própria Lei Maria da Penha estabeleça que não é permitido fazer conciliação em caso de violência. O Conselho Nacional de Justiça aceita e endossa esta prática.
Há ainda uma profusão de cursos, disciplinas em universidades e cursos de pós-graduação. Não é necessário ser psicólogo ou ter formação em ciências da saúde para ser constelador. Uma busca no Google por esse tipo de curso traz mais de um milhão de resultados. Um deles diz que um constelador experiente chega a ganhar R$ 48 mil por mês, com apenas oito clientes. Em linhas gerais, com R$ 5 mil, estudando aos finais de semana durante seis meses, já dá para virar constelador.
No último dia 24, houve audiência pública no Senado para debater a Constelação Familiar. Vários depoentes defensores da prática vendem o serviço e lucram com ele. Nenhum declarou conflito de interesse ao depor. No grupo dos opositores, ninguém tinha conflito de interesse.
NATALIA PASTERNAK
PHD em microbiologia
Imagine uma mulher que foi vítima de violência doméstica. De acordo com a segunda edição do Jusbarômetro de São Paulo, pesquisa realizada em 2021 a pedido da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), as principais razões que levam uma mulher a não denunciar o agressor são medo, vergonha e falta de confiança no Judiciário e nas leis.
Agora imagine que após fazer a denúncia, com medo, com vergonha e cética, ela receba do juiz a sugestão de uma Constelação Familiar (CF) como tentativa de conciliação. Bert Hellinger, o inventor da prática, valeu-se de conceitos pseudocientíficos e de uma visão metafísica patriarcal e machista. Na “harmonia do amor” de Hellinger, cada integrante da família tem funções definidas por leis cósmicas, e toda desarmonia, inclusive violência, é fruto de algum desequilíbrio. Na harmonia ideal, o homem tem todos os privilégios e a mulher e as crianças devem se manter nos devidos lugares.
A Constelação Familiar chegou ao Brasil em 1999, e começou a ser aplicada no Judiciário em 2012. Hoje, é de uso rotineiro em direito de família, incluindo casos de divórcio, guarda de menores e violência doméstica.
Numa “sessão” de CF, membros da família ou representantes voluntários interagem numa sala sob a orientação do profissional constelador, que interpreta o que se passa e oferece conselhos. Essa leitura é feita dentro dos preceitos de Hellinger, que estabelece, por exemplo, que um estupro de menor pode ser entendido como resultado de falha da mãe em satisfazer o pai. O estuprador é apenas uma vítima da desarmonia familiar, e se a mãe lhe pedir perdão, a harmonia será restaurada.
Casos documentados pela imprensa trazem depoimentos de mulheres vítimas de agressão que tiveram que reviver seus traumas, encarar o agressor, e até mesmo pedir perdão ao criminoso. Ao explicar o que se passa nas sessões, consteladores usam um vocabulário recheado de expressões como “energia quântica” e “campos morfogenéticos”. São jargões de filme da Marvel, frases que soam vagamente científicas mas que, no contexto em que estão sendo usadas, carecem de lógica e sentido. Esse truque é marca registrada das pseudociências.
Outra marca registrada é a da própria constelação no Judiciário, chamada — e devidamente patenteada — de Direito Sistêmico. O Direito Sistêmico® é utilizado em diversos estados e está presente em centenas de comissões da OAB, muito embora a própria Lei Maria da Penha estabeleça que não é permitido fazer conciliação em caso de violência. O Conselho Nacional de Justiça aceita e endossa esta prática.
Há ainda uma profusão de cursos, disciplinas em universidades e cursos de pós-graduação. Não é necessário ser psicólogo ou ter formação em ciências da saúde para ser constelador. Uma busca no Google por esse tipo de curso traz mais de um milhão de resultados. Um deles diz que um constelador experiente chega a ganhar R$ 48 mil por mês, com apenas oito clientes. Em linhas gerais, com R$ 5 mil, estudando aos finais de semana durante seis meses, já dá para virar constelador.
No último dia 24, houve audiência pública no Senado para debater a Constelação Familiar. Vários depoentes defensores da prática vendem o serviço e lucram com ele. Nenhum declarou conflito de interesse ao depor. No grupo dos opositores, ninguém tinha conflito de interesse.
Falando pelo Instituto Questão de Ciência (do qual sou presidente), o advogado e psicólogo Paulo Almeida ressaltou que não é função do Judiciário intervir e tentar “consertar” questões de foro íntimo dos envolvidos, mas sim de distribuir justiça e fazer cumprir a lei. A harmonia da família, a paz e o amor não são objeto da Justiça. A violência contra a mulher é. Nesta última coluna do mês da mulher, fica o recado: não permitiremos que pseudociências carregadas de machismo sejam usadas para nos intimidar.
> Esse texto foi publicado originalmente no site de O Globo sob o título Machismo e pseudociência.
> Esse texto foi publicado originalmente no site de O Globo sob o título Machismo e pseudociência.
• Constelações familiares não têm respaldo científico. Não cura nada
• Constelação familiar é a pseudociência de estimação do Judiciário
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