A discussão sobre a existência ou não de Deus é de foro dos indivíduos
RICARDO OLIVEIRA DA SILVA / análise
O Estado laico no Brasil se tornou uma realidade jurídica com a instituição do regime republicano ao final do século XIX. Até então, como consequência da Constituição imperial de 1824, o país se constituía como um Estado de religião oficial (catolicismo) e que restringia o exercício do culto de religiões não-católicas ao âmbito privado.
A ideia de Estado laico não foi forjada com o objetivo de “combater” Deus. A laicidade não é uma forma de negação da existência de Deus, mas um preceito que não possui uma divindade em particular para legitimar um arcabouço constitucional e que poderia criar privilégios aos adeptos da divindade mencionada na lei. Nessa perspectiva laica, a discussão sobre a existência de Deus é de foro dos indivíduos e não prerrogativa do Estado.
Além disso, o Estado laico se constitui como um preceito legal que na prática visa garantir o direito das minorias religiosas em poderem expressar sua fé (e o direito de pessoas expressarem não possuir uma crença religiosa, como no caso de ateístas) sem que sejam constrangidas pelas pessoas que professam a religião que é hegemônica na sociedade.
O diálogo sobre Estado laico ainda é um desafio no Brasil, um país de laicidade recente se for contar suas origens coloniais no início do século XVI. É muito comum pessoas manifestarem ideias políticas, e se candidatarem aos cargos públicos, por meio de uma justificativa religiosa, vide indicações de igrejas e lemas como “Deus acima de todos”.
Uma sociedade fundamentada em uma cultura laica é uma pauta que deve fazer parte das discussões sobre o futuro da nação no momento que o país completa o bicentenário de sua independência política. Um dos pilares para a tolerância (política, religiosa, social) e coerente, penso eu, com quem acredita que Deus é sinônimo de paz e amor.
> Esse texto foi publicado originalmente na Tribuna de Imprensa sob o título
O Estado contra Deus? Explicando o que é laicidade.
RICARDO OLIVEIRA DA SILVA / análise
Doutor em história pela UFRGS
A concepção de Estado laico é uma conquista do mundo contemporâneo forjado a partir de ideias liberais e iluministas. Os colonizadores portugueses, que deram origem ao Brasil colonial a partir do começo do século XVI, vieram de um continente onde a cultura e a prática política haviam sido moldadas por uma visão de mundo religiosa de viés cristã.
Uma das consequências da mistura entre religião e política foi o entendimento de que o governante era um representante de Deus. Na Idade Moderna isso foi chamado de “doutrina do direito divino dos reis”.
A concepção de Estado laico é uma conquista do mundo contemporâneo forjado a partir de ideias liberais e iluministas. Os colonizadores portugueses, que deram origem ao Brasil colonial a partir do começo do século XVI, vieram de um continente onde a cultura e a prática política haviam sido moldadas por uma visão de mundo religiosa de viés cristã.
Uma das consequências da mistura entre religião e política foi o entendimento de que o governante era um representante de Deus. Na Idade Moderna isso foi chamado de “doutrina do direito divino dos reis”.
O que o soberano fazia e falava era interpretado como sendo “vontade de Deus”. Por isso era tão perigoso questionar o credo religioso. Isso era visto não apenas como blasfêmia ou heresia, mas como subversão política, uma vez que uma crítica ao universo da religião significava questionar o fundamento do poder político.
As Reformas Religiosas no século XVI levaram o continente europeu a um banho de sangue onde católicos e protestantes procuraram impor sua crença para o conjunto da população. A ideia que se tinha na época é que só haveria paz e harmonia social se todos e todas comungassem da mesma religião. As minorias religiosas tinham que se submeter ao credo da maioria.
Os dois séculos de conflitos e guerras políticas e religiosas na Europa forçaram uma revisão sobre a tese “um reino, uma religião”. No século XVIII, no contexto filosófico iluminista, ganhou projeção o entendimento de que a harmonia e paz social seriam possíveis se contassem com o suporte de um governo que respeitasse a diversidade de crenças religiosas existentes no interior da sociedade, ao invés de impor um credo específico.
A noção de Estado laico foi fruto daquele cenário. Era a premissa de que o governo não iria impor uma religião para o povo, respeitaria as diferentes religiosidades como escolha individual e garantiria a liberdade de culto. E mais do que isso: o conceito de laicidade de Estado incluiu a premissa de que o governante não seria um representante de Deus na Terra, mas um indivíduo que governaria um país legitimado pela vontade popular.
Os EUA foram um país pioneiro no estabelecimento de um Estado laico ao final do século XVIII. A sua Constituição, promulgada em 1787, não fez menção a Deus (uma indicação de que o país teria uma referência religiosa específica para lhe guiar) e a primeira emenda constitucional de 1791 proibiu o estabelecimento de uma religião oficial e tornou lei o respeito do Estado ao livre exercício da crença religiosa por parte dos indivíduos.
As Reformas Religiosas no século XVI levaram o continente europeu a um banho de sangue onde católicos e protestantes procuraram impor sua crença para o conjunto da população. A ideia que se tinha na época é que só haveria paz e harmonia social se todos e todas comungassem da mesma religião. As minorias religiosas tinham que se submeter ao credo da maioria.
Os dois séculos de conflitos e guerras políticas e religiosas na Europa forçaram uma revisão sobre a tese “um reino, uma religião”. No século XVIII, no contexto filosófico iluminista, ganhou projeção o entendimento de que a harmonia e paz social seriam possíveis se contassem com o suporte de um governo que respeitasse a diversidade de crenças religiosas existentes no interior da sociedade, ao invés de impor um credo específico.
A noção de Estado laico foi fruto daquele cenário. Era a premissa de que o governo não iria impor uma religião para o povo, respeitaria as diferentes religiosidades como escolha individual e garantiria a liberdade de culto. E mais do que isso: o conceito de laicidade de Estado incluiu a premissa de que o governante não seria um representante de Deus na Terra, mas um indivíduo que governaria um país legitimado pela vontade popular.
Os EUA foram um país pioneiro no estabelecimento de um Estado laico ao final do século XVIII. A sua Constituição, promulgada em 1787, não fez menção a Deus (uma indicação de que o país teria uma referência religiosa específica para lhe guiar) e a primeira emenda constitucional de 1791 proibiu o estabelecimento de uma religião oficial e tornou lei o respeito do Estado ao livre exercício da crença religiosa por parte dos indivíduos.
O Estado laico no Brasil se tornou uma realidade jurídica com a instituição do regime republicano ao final do século XIX. Até então, como consequência da Constituição imperial de 1824, o país se constituía como um Estado de religião oficial (catolicismo) e que restringia o exercício do culto de religiões não-católicas ao âmbito privado.
A ideia de Estado laico não foi forjada com o objetivo de “combater” Deus. A laicidade não é uma forma de negação da existência de Deus, mas um preceito que não possui uma divindade em particular para legitimar um arcabouço constitucional e que poderia criar privilégios aos adeptos da divindade mencionada na lei. Nessa perspectiva laica, a discussão sobre a existência de Deus é de foro dos indivíduos e não prerrogativa do Estado.
Além disso, o Estado laico se constitui como um preceito legal que na prática visa garantir o direito das minorias religiosas em poderem expressar sua fé (e o direito de pessoas expressarem não possuir uma crença religiosa, como no caso de ateístas) sem que sejam constrangidas pelas pessoas que professam a religião que é hegemônica na sociedade.
O diálogo sobre Estado laico ainda é um desafio no Brasil, um país de laicidade recente se for contar suas origens coloniais no início do século XVI. É muito comum pessoas manifestarem ideias políticas, e se candidatarem aos cargos públicos, por meio de uma justificativa religiosa, vide indicações de igrejas e lemas como “Deus acima de todos”.
Uma sociedade fundamentada em uma cultura laica é uma pauta que deve fazer parte das discussões sobre o futuro da nação no momento que o país completa o bicentenário de sua independência política. Um dos pilares para a tolerância (política, religiosa, social) e coerente, penso eu, com quem acredita que Deus é sinônimo de paz e amor.
O Estado contra Deus? Explicando o que é laicidade.
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