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Abuso do poder religioso: o voto é obrigatório, mas não sagrado

Poder religioso age para manipular resultado das eleições

ÍCARO MELO DOS SANTOS / análise
advogado

Por aí é comum escutarmos a frase: política, religião e futebol não se discutem. No meio religioso, especialmente as variações das denominações evangélicas, a vedação era porque os três assuntos possuíam um proprietário: o diabo. 

O diabo — coisa ruim ou qualquer outro nome que tenha —, além de administrar sua própria religião, cumulava o ofício de político e ainda era jogador de futebol. Reza a lenda que, pelo menos no inferno, a legislação trabalhista é cumprida.

Nessa história, por consequência, não se podia misturar as coisas. Ou você era vinculado a propriedade divina se abstendo de tais temas ou era filhote do coisa ruim. Numa dicotomia típica da modernidade: pode x não pode.

Na última década, revivendo os períodos medievais, parece que algumas denominações evangélicas — mas não exclusivamente — decidiram que devem assumir a propriedade da política.

O estudioso Lindiogenes Ferreira Lopes explica que, em Goiás por exemplo, as aproximações da Assembleia de Deus entre os anos de 1980 a 2010. Para ele, a mudança sai da ideia de “crente não se mete na política para irmão vota em irmão” com justificativas que adotam novas roupagens a depender de interesses diversos.

Se de um lado essa constatação aponta para um importante avanço democrático, no sentido da inserção de um grupo nos espaços de poder de outro oculta as mazelas e abusos de poder econômico e de convencimento nos templos.

É a partir dessas modificações que é preciso repensar, apesar de ser uma temática sensível, os aspectos desenvolvidos pelas instituições religiosas e seus líderes como abuso do poder religioso. Numa democracia as temáticas sensíveis também precisam ser enfrentadas, sob pena de dar adubo aos espinhos ditatoriais do qual saímos a pouco tempo.

Nesse sentido, reafirmamos que a Constituição da República Federativa de 1988 (CRFB/88) assegura diversos direitos, entre eles a liberdade religiosa, a liberdade de pensamento e o direito ao voto. No entanto, veda o abuso do poder econômico, a corrupção ou a fraude.

O autor José Jairo Gomes, ao tratar sobre o tema, destaca que nos templos religiosos é inapropriado a promoção de candidaturas e partidos. "Além do desrespeito às pessoas presentes, o desvirtuamento do ato religioso em ação político-eleitoral pode ser ilícito, porque mistura coisas que a Constituição determina sejam mantidas separadas e fere os princípios e valores que informam o processo eleitoral democrático".

Não obstante, ainda nas lições de Gomes, o denominado abuso de poder religioso está ligado a: 1) discursos; 2) prática de atos; 3) cessão de espaços e estruturas relacionados ao culto. Todos esses atos com a intenção de manipular ou influenciar a formação da vontade política dos fiéis.

O Tribunal Superior Eleitoral, na oportunidade de discutir sobre o tema, afirmou ser "negável que declarações públicas de apoio ou predileção a determinada candidatura [realizadas por líder religioso] estão resguardadas pela liberdade de manifestação assegurada constitucionalmente", sendo natural a tendência dos indivíduos a um alinhamento "a candidatos oriundos da fé professada" (TSE — RO no 537003/MG – DJe 27-9-2018); (apud, GOMES, 2020).

Como a construção e a amplitude do abuso religioso também perpassam pela jurisprudência brasileira, talvez seja necessário repensarmos os abusos do poder religiosos nas instituições deste país, não somente pela ideia economicista que paira em tais debates. Ou seja, o abuso da religiosidade a partir do discurso também é um malefício para a democracia.

Inclusive, utilizam-se do discurso, a partir de uma política baseada no medo, de que "os comunistas" — seja lá o que querem dizer com isso, irão restringir suas liberdades. Não se trata, obviamente, de entregar ao Estado a fiscalização do dito e do não dito dentro dos templos religiosos. Mas sim de demonstrar que a junção do poder econômico com o poder religioso é um malefício ao Estado democrático de Direito, sobretudo, por manipular as informações num período tão importante como o eleitoral.

Ademais, ressalta-se que não se trata de dizer que os religiosos são seguidores de seus líderes sem nenhuma consciência crítica. Mas sim quanto ao modo como tem sido realizado as propagandas por seus líderes religiosos, dentro de seus templos com anseios, muitas vezes, antidemocráticos e anticristãos.

A pergunta aos juristas e a toda sociedade é: qual é a melhor maneira de lidarmos com esse avanço desproporcional das instituições e dos líderes religiosos na disputa política? O silêncio diante de tais abusos é a melhor alternativa? Como avançaremos democraticamente com a liberdade de escolha sendo tolhida nos espaços de fé?

Religião ameaça
o Estado laico e, 
logo, a democracia

Para os líderes religiosos, especialmente os pentecostais e neopentecostais, resta — pelo menos — dois questionamentos: 1) se estão dispostos a cooperar com o Poder Público, no sentido de resguardar e/ou orientar seus fiéis sobre suas liberdades de consciência e de voto que não são, automaticamente, excluídas ao participarem de determinada instituição religiosa; 2) qual a legitimidade dada por sua divindade para que, em seus grupos, ajam como se fossem donos das opiniões políticas dentro de suas instituições religiosas?

Para os demais fiéis à Constituição, se estiverem dispostos, é preciso reivindicar nossa liberdade de crença e de voto. Parafraseando o Pai Nosso com a Constituição Nossa:

"Constituição Nossa do Estado democrático de Direito,

Reivindicado seja seus direitos fundamentais,

Seja dentro do templo ou fora dele, Dá-nos a sua força normativa de cada dia,

Não perdoe aqueles que não queiram promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação,

Não nos deixei cair sob o abuso de poder religioso, livre-nos também dos ares de autoritarismo e dos desejos de qualquer teocracia que tem se aproximado de nós, porque tua é a força normativa, do poder que emana do povo para sempre, que assim seja."


Por fim, o direito ao exercício do voto direito, secreto e periódico, que é uma manifestação da soberania popular no país, refere-se a um dos direitos políticos dos cidadãos brasileiros garantidos pela CRFB/88.

A tentativa de sacralizá-lo, o tempo inteiro, com abusos de toda ordem — inclusive religiosa — é um retrocesso do Estado Laico, ou, ainda, um desejo antidemocrático de se implantar um Estado com religião oficial. 

Que a Constituição de 1988 nos livre!

> Esse texto foi publicado originalmente pelo Conjur.

• Levantamento mostra como presidenciáveis usam Deus em discursos

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