Pular para o conteúdo principal

Monge defende ateus ao dizer que eles têm princípios éticos

"Mesmo que Deus não exista, isso não significa que podemos nos permitir tudo" 

ENZO BIANCHI | La Stampa / Tuttolibri
monge italiano

Aqui e ali às vezes ecoa uma palavra de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido!".
Aqueles que a citam muitas vezes a usam inadequadamente, considerando aqueles que não creem como pessoas desprovidas de espiritualidade e moral. 

Agnósticos e ateus não acreditam em Deus, não se sentem envolvidos nessa presença porque não a sentem real, mas estão cientes de que, ao contrário, as religiões que professam Deus fazem parte da história humana, da sociedade, do mundo. 

Assim como eles não encontram motivos para acreditar, outros as encontram e ficam felizes: alguns pensam que este mundo lhes baste, outros se contentam em ter a fé. Mas precisamente isso nos leva a dizer que a humanidade é uma só, que a religião e a irreligião fazem parte dela e que, de qualquer forma, nela é possível, para crentes e não crentes, o caminho da espiritualidade.

Espiritualidade não entendida em sentido estritamente religioso, mas como vida interior profunda, como fidelidade-compromisso nos assuntos humanos, como busca de um verdadeiro serviço aos outros, atenta à dimensão estética e à criação de beleza nas relações humanas. 

Espiritualidade, sobretudo, como antídoto para o niilismo que é o deslizamento para a barbárie: niilismo que crentes e não crentes deveriam temer mais em seu poder de negação de todo projeto, de todo princípio ético, de toda ideologia.

Uma contribuição notável para a reflexão sobre a espiritualidade dos não crentes é a série "Espiritualidade sem Deus?" organizada pelo sociólogo Luigi Berzano pela Memesis Edizioni. Desde 2014, foram publicados 24 volumes, curtos e intensos, obra de filósofos, sociólogos, historiadores da religião, semiólogos e psicanalistas.

O próprio Berzano, inaugurando a iniciativa editorial com um volume com o mesmo título da série, observava que uma forma de espiritualidade pode existir além dos limites sancionados pelas religiões.

A vocação dessa valiosa iniciativa editorial é oferecer razões filosóficas, elementos históricos, dados sociológicos, iluminações místicas e metáforas poéticas capazes de mostrar que todo ser humano cultiva em sua própria interioridade aquela "necessidade de acreditar", como Julia Kristeva a define, como uma das dimensões constitutivas e últimas a que recorrer para dar sentido à própria existência.

Os dois últimos volumes exploram novas fronteiras e muito avançadas da espiritualidade. Em Metafore di Luce (Metáforas de luz, em tradução livre, Mimesis 2022), Alessandra Luciano, colaboradora do Observatório sobre o pluralismo religioso da Universidade de Turim e da Mind & Life Europe, toma como ponto de observação a visão fascinante de um raio de luz que caracteriza os textos de três místicas: a filósofa Edith Stein, a mística da contrarreforma Teresa de Ávila e, por fim, Arguerite Porete, ao mesmo tempo mística, filósofa, poetisa e herege que viveu no século XII.

A poética da luz, do clarão luminoso como metáfora do saber, traço comum entre essas mulheres que contam a mesma experiência, leva Alessandra Luciano a constatar que "o mistério do conhecimento vive em nós, se não quisermos chamá-lo alma pouco importa, o fato é que, no entanto, permanece um mistério”. 

Imaginários e relatos, análises filosóficas, narrativas e semióticas podem dar possibilidades às experiências, pois "Deus ou não, infinito ou nada, cheio ou vazio, o limite que tocamos cada vez que o silêncio nos assalta, está sempre lá para pedir uma palavra a poder falar de si".

Da vida interior
de ateus brotam a
solidariedade
e a compaixão

Michel Bitbol, diretor de pesquisa emérito do CNRS e Arquivos Husser em Paris, em Cambiare stato di coscienza, Fenomenologia e meditazione [Mudança de estado de consciência, Fenomenologia e meditação, Mimesis 2022] compara fenomenologia e meditação, propondo uma abordagem fenomenológica para a prática milenar da meditação.

Sim, fenomenologia e contemplação místico-cristã e meditação budista são semelhantes, e isso leva Bitbol a se perguntar: “Como a meditação e a fenomenologia nos levam a ver as coisas como elas são, ou seja, de uma maneira nua, inocente e interpretada?".

Partindo dos dados das práticas contemplativas das tradições espirituais, Alessandra Luciano e Michel Bitbol investigam o campo das ciências contemplativas, ou seja, aquele campo de pesquisa recente que pretende compreender o que acontece no cérebro quando vivenciamos estados precisos de consciência a que se chega através de práticas antigas próprias das tradições espirituais milenares.

Embora complexas e não imediatamente usufruíveis, mesmo de pesquisas como essas emerge a urgência de reconhecer a presença de uma espiritualidade mesmo nos ateus e nos agnósticos, capaz de mostrar que, mesmo que Deus não exista, isso não significa que podemos nos permitir tudo: pessoas que sabem escolher o que fazer com base em princípios éticos de que o homem como tal é capaz. 

A grande tradição católica pede aos cristãos que reconheçam que o homem, qualquer ser humano, precisamente porque, segundo a nossa fé, foi criado à imagem e semelhança de Deus, é capax boni, capaz de discernir entre o bem e o mal em virtude de um selo indestrutível colocado em seu coração e da razão de que é dotado. 

Os não crentes são capazes de combater o horror, a violência, a injustiça; reconhecem "princípios" e "valores", de formular direitos humanos, de buscar um progresso social e político através de uma autêntica humanização.

> Com tradução de Luisa Rabolini para IHU Online. O título original desse texto é Ateus e crentes têm um inimigo em comum: o niilismo que está deslizando para a barbárie.




Comentários

Anônimo disse…
Então, estamos quites. Também acho que alguns religiosos têm princípios éticos.

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Dawkins é criticado por ter 'esperança' de que Musk não seja tão estúpido como Trump

Seleção de vôlei sequestrou palco olímpico para expor crença cristã

Título original: Oração da vitória por Daniel Sottomaior (foto) para Folha de S.Paulo Um hipotético sujeito poderoso o suficiente para fraudar uma competição olímpica merece ser enaltecido publicamente? A se julgar pela ostensiva prece de agradecimento da seleção brasileira de vôlei pela medalha de ouro nas Olimpíadas, a resposta é um entusiástico sim! Sagrado é o direito de se crer em qualquer mitologia e dá-la como verdadeira. Professar uma religião em público também não é crime nenhum, embora costume ser desagradável para quem está em volta. Os problemas começam quando a prática religiosa se torna coercitiva, como é a tradição das religiões abraâmicas. Os membros da seleção de vôlei poderiam ter realizado seus rituais em local mais apropriado. É de se imaginar que uma entidade infinita e onibenevolente não se importaria em esperar 15 minutos até que o time saísse da quadra. Mas uma crescente parcela dos cristãos brasileiros não se contenta com a prática privada: para

TJs perdem subsídios na Noruega por ostracismo a ex-fiéis. Duro golpe na intolerância religiosa

Veja os 10 trechos mais cruéis da Bíblia

Condenado por estupro, pastor Sardinha diz estar feliz na cadeia

Pastor foi condenado  a 21 anos de prisão “Estou vivendo o melhor momento de minha vida”, diz José Leonardo Sardinha (foto) no site da Igreja Assembleia de Deus Ministério Plenitude, seita evangélica da qual é o fundador. Em novembro de 2008 ele foi condenado a 21 anos de prisão em regime fechado por estupro e atentado violento ao pudor. Sua vítima foi uma adolescente que, com a família, frequentava os cultos da Plenitude. A jovem gostava de um dos filhos do pastor, mas o rapaz não queria saber dela. Sardinha então disse à adolescente que tinha tido um sonho divino: ela deveria ter relações sexuais com ele para conseguir o amor do filho, e a levou para o motel várias vezes. Mas a ‘profecia’ não se realizou. O Sardinha Jr. continuou não gostando da ingênua adolescente. No texto publicado no site, Sardinha se diz injustiçado pela justiça dos homens, mas em contrapartida, afirma, Deus lhe deu a oportunidade de levar a palavra Dele à prisão. Diz estar batizando muita gen

Proibido o livro do padre que liga a umbanda ao demônio

Padre Jonas Abib foi  acusado da prática de  intolerância religiosa O Ministério Público pediu e a Justiça da Bahia atendeu: o livro “Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de Cura e Libertação”, do padre Jonas Abib (foto), terá de ser recolhido das livrarias por, nas palavras do promotor Almiro Sena, conter “afirmações inverídicas e preconceituosas à religião espírita e às religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, além de flagrante incitação à destruição e ao desrespeito aos seus objetos de culto”. O padre Abib é ligado à Renovação Carismática, uma das alas mais conservadoras da Igreja Católica. Ele é o fundador da comunidade Canção Nova, cuja editora publicou o livro “Sim, Sim!...”, que em 2007 vendeu cerca de 400 mil exemplares, ao preço de R$ 12,00 cada um, em média. Manuela Martinez, da Folha, reproduz um trecho do livro: "O demônio, dizem muitos, "não é nada criativo". (...) Ele, que no passado se escondia por trás dos ídolos, hoje se esconde no

Santuário Nossa Senhora Aparecida fatura R$ 100 milhões por ano

Basílica atrai 10 milhões de fiéis anualmente O Santuário de Nossa Senhora de Aparecida é uma empresa da Igreja Católica – tem CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) – que fatura R$ 100 milhões por ano. Tudo começou em 1717, quando três pescadores acharam uma imagem de Nossa Senhora no rio Paraíba do Sul, formando-se no local uma vila que se tornou na cidade de Aparecida, a 168 km de São Paulo. Em 1984, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) concedeu à nova basílica de Aparecida o status de santuário, que hoje é uma empresa em franca expansão, beneficiando-se do embalo da economia e do fortalecimento do poder aquisitivo da população dos extratos B e C. O produto dessa empresa é o “acolhimento”, disse o padre Darci José Nicioli, reitor do santuário, ao repórter Carlos Prieto, do jornal Valor Econômico. Para acolher cerca de 10 milhões de fiéis por ano, a empresa está investindo R$ 60 milhões na construção da Cidade do Romeiro, que será constituída por trê

Psicóloga defende Feliciano e afirma que monstro é a Xuxa

Marisa Lobo fez referência ao filme de Xuxa com garoto de 12 anos A “psicóloga cristã” Marisa Lobo (foto) gravou um vídeo [ver abaixo] de 2 minutos para defender o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC-SP) da crítica da Xuxa segundo a qual ele é um “monstro” por propagar que a África é amaldiçoada e a Aids é uma “doença gay”. A apresentadora, em sua página no Facebook, pediu mobilização de seus fãs para que Feliciano seja destituído da presidência da Comissão de Direitos Humanos e das Minorias da Câmara. Lobo disse que “monstro é quem faz filme pornô com criança de 12 anos”. Foi uma referência ao filme “Amor Estranho Amor”, lançado em 1982, no qual Xuxa faz o papel de uma prostituta. Há uma cena em que a personagem, nua, seduz um garoto, filho de outra mulher do bordel. A psicóloga evangélica disse ter ficado “a-pa-vo-ra-da” por ter visto nas redes sociais que Xuxa, uma personalidade, ter incitado ódio contra um pastor. Ela disse que as filhas (adolescentes) do pastor são fãs