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Na conflito fé versus ciência, Darwin coloca Deus em xeque

Religiões temem que o conhecimento científico mostre que Deus é desnecessário

JOHN FARREL | Commonweal
jornalista

Muito antes do notório julgamento de Galileu, o grande filósofo e médico do século 12 Ibn Rushd (Averróis) foi banido de sua casa em Córdoba e viu todos os seus livros serem proibidos e queimados pelas autoridades religiosas islâmicas, que denunciaram sua crença na existência da causalidade na ordem natural — uma causalidade que ele considerava como independente da ação direta de Deus no mundo. 

Como Edward J. Larson e Michael Ruse salientam em seu novo livro, On Faith and Science [Sobre fé e ciência] (Yale University Press, 321 páginas), os clérigos da Espanha muçulmana temiam que, por conta própria, a razão, a lógica e a ciência humanas poderiam possuir um poder que ameaçaria fazer com que Deus parecesse desnecessário.

Esse medo permanece disseminado hoje entre os fiéis religiosos de todas as fés — especialmente nos Estados Unidos, onde, por exemplo, a oposição à crença na evolução continua sendo muito forte. Mas ele tem assombrado o debate sobre a tensão entre religião e ciência há séculos.

Ibn Rushd, que morreu mais de um quarto de século antes do nascimento de São Tomás de Aquino, pelo menos viveu o suficiente para voltar para casa do seu exílio, mas sua obra nunca alcançou entre os muçulmanos a influência que teve na Europa cristã, onde foi traduzido e estudado nas novas universidades medievais.

De fato, era tão grande o respeito de Aquino pelas explanações de Ibn Rushd sobre as obras de Aristóteles, que Tomás sempre se referia a ele como “O Comentarista”.

Subsequentemente, a ciência arraigou na Europa e floresceu durante a Revolução Científica, mas não sem vítimas causadas pelas mesmas tensões que haviam atormentado Ibn Rushd. 

O julgamento de Galileu assombrou a Igreja Católica durante séculos — tornando-a um alvo fácil para os protestantes que atacavam os papas após a Reforma e para os defensores do Iluminismo que detestavam qualquer autoridade religiosa que interferisse no progresso da ciência.


Na visão de Larson e Ruse, esse debate de longa data tem sido mal servido pelo chamado modelo de conflito que o caso Galileu simboliza, e o objetivo deles nesse livro é argumentar que a relação entre ciência e religião é mais complexa do que qualquer noção que tanto o conflito quanto a complementaridade simplista permitem.

Em seus nove capítulos, On Faith and Science perpassa a história da ciência e da filosofia, destacando as descobertas que tiveram um impacto particular sobre a doutrina religiosa ao longo dos últimos mil anos de cultura cristã e, em menor medida, judaica e muçulmana.

No início do livro, os autores partem de onde Ibn Rushd parou, com a ideia das leis independentes da natureza — ou, como os escolásticos se referiam a ela, a doutrina das causas secundárias, sendo que a causa primeira é Deus. A noção não deixou de receber críticas entre os contemporâneos de Aquino, e, em 1277, o arcebispo de Paris condenou uma série de proposições associadas à nova filosofia natural.

A ideia de que o mundo opera de acordo com suas próprias leis e regularidades continua sendo controversa no debate sobre a evolução hoje, já que os defensores do Design Inteligente atacam o consenso da ciência sobre a evolução darwiniana e insistem que a intervenção direta de Deus na história da vida pode ser cientificamente demonstrada.

Mas, como Larson e Ruse mostram nos dois primeiros capítulos que abrangem o desenvolvimento precoce da astronomia e da física — desde a Revolução Copernicana até a Revolução Quântica —, essa noção deu seu fruto mais antecipado na ciência dos céus e dos corpos em movimento. 

A Revolução Copernicana é muitas vezes descrita como o primeiro grande choque que a ciência provocou à mentalidade religiosa ocidental, em que o sistema heliocêntrico rebaixava a Terra em relação à sua posição central e privilegiada no cosmos, tornando-a apenas outro planeta que orbita ao redor do Sol.

Mas Larson e Ruse argumentam que o que realmente incomodou os tradicionalistas foi que Copérnico usou o movimento circular natural dos planetas (incluindo a Terra) ao redor do Sol para explicar os movimentos retrógrados dos outros planetas, que periodicamente diminuíam de velocidade e revertiam a direção antes de continuar seu curso.

Uma vez que se assumia que o Sol estava no centro do sistema, não era mais preciso citar causas especiais (por exemplo, os anjos) para explicar o que, aos antigos, parecia ser um fenômeno arbitrário. O movimento retrógrado seguiu naturalmente as leis do movimento circular em um sistema centrado no Sol.

Kepler, Galileu e, especialmente, Isaac Newton melhoraram o grande programa de Copérnico, abrindo mão da insistência em órbitas perfeitamente circulares em favor de órbitas elípticas, e descrevendo completamente a dinâmica dos planetas com as leis do movimento e da gravitação universal de Newton. Mas mesmo Newton, talvez incomodado com essa autossuficiência, insistia que Deus ainda era necessário para ajustar ocasionalmente os movimentos dos planetas, se algum deles ameaçasse se afastar do curso.

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As leis da natureza nos céus eram uma coisa, mas a aplicação de tais leis aos seres humanos era outra coisa. E, no terceiro capítulo, os autores abordam o impacto da mecânica newtoniana sobre os conceitos de mente e alma. A separação de Descartes entre uma mente imaterial e a mecânica do corpo humano pode ser vista sob essa luz como uma espécie de ataque preventivo para proteger o status exclusivo da alma. Se assim foi, ela teve vida curta, já que o advento da evolução darwiniana ameaçou colocar todo o humano sob o poder da seleção natural.

Aqui é onde permanece o verdadeiro conflito com a fé. O mecanismo da seleção natural foi uma afronta suficiente aos fiéis do século 19 em relação à criação especial de todas as espécies (incluindo os humanos). Então, nas décadas seguintes e no século 20, veio a conscientização gradual dos éons e éons de espécies extintas que viveram e morreram muito antes da humanidade, juntamente com a crescente conscientização sobre o desperdício e o sofrimento que esses éons passados envolviam. Isso adicionou outra camada de verdadeira inquietação à crença na providência divina.

Podemos chamar de bom um Deus que presidiu tal sofrimento gratuito? Como alguns teólogos suspeitaram, até mesmo a tentativa mais acomodatícia de encaixar o Deus da Bíblia com a evolução não conseguiria livrar Deus quando se tratasse da existência generalizada do mal e do sofrimento. 



Como disse o teólogo cristão evangélico John Schneider, o mundo revelado pela evolução “descreve o passado planetário e biológico como aquele em que biomas inteiros vieram e se foram de forma aparentemente despropositada e brutal, e revela que o nosso passado é apenas um deles” (“The Fall of ‘Augustinian Adam’”, em Zygon, novembro de 2012).

E, mais recentemente, os avanços feitos pela ciência cognitiva parecem dar uma credibilidade adicional a um materialismo radical que, na opinião dos autores, prejudica qualquer crença religiosa na transcendência do espírito humano. A mente e a alma parecem ser os subprodutos do cérebro. Se deve haver alguma reconciliação possível entre ciência e fé aqui, escrevem eles, talvez ela possa ser encontrada no campo da mecânica quântica, embora eles não aprofundem o assunto.

E a própria origem da humanidade — e das doutrinas teológicas associadas a ela, principalmente o pecado original e a queda? Houve tentativas de alguns teólogos católicos de acomodá-las em uma perspectiva evolutiva, mas, até hoje, os pronunciamentos oficiais do Vaticano continuam sendo muito gerais.

No nível pastoral, permanece muita confusão e mal-entendido sobre a ciência da evolução humana e suas implicações. O Catecismo não discute nada da evolução e continua tratando Adão e Eva como figuras históricas.

Talvez não seja surpreendente, então, que a imprensa popular continue assumindo uma desconfiança geral em relação à ciência por parte da Igreja. Roma não consegue superar o caso Galileu. Por exemplo, quando o papa Francisco, pouco depois de ser eleito, afirmou que não há nenhum conflito entre as noções de criação e evolução, isso foi abordado como manchete de primeira página em todo o mundo, mesmo que João Paulo II e Bento XVI tivessem dito o mesmo em muitas ocasiões.

Larson e Ruse abordam o papel das lideranças religiosas na promoção de uma abordagem mais protetora do ecossistema mundial cada vez mais frágil. Eles ressaltam a Igreja Católica e, em particular, o papa Francisco, que dedicou toda a sua encíclica Laudato si à defesa do mundo natural, e os esforços mundiais para reduzir as emissões de carbono para combater os efeitos cada vez mais destrutivos das mudanças climáticas. 

Eles também comparam as exortações do papa Francisco às de E. O. Wilson, de Harvard, um ateu notório e também um notório defensor de uma visão de toda a vida como um todo interconectado. Wilson expressou um grande respeito pelos esforços do papa de se pronunciar em apoio ao consenso científico sobre as mudanças climáticas.

Na opinião dos autores, tanto o papa quanto Wilson, apesar de abordarem a questão a partir de tradições amplamente diferentes, representam um caminho a seguir para ateus e crentes, para juntos irem ao encontro dos desafios que a Mãe Natureza guarda para a humanidade.

> Com tradução de Moisés Sbardelotto para IHU Online. Esse texto foi publicado originalmente com o título "Fé e ciência: o conflito continua".


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