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Expressão 'sob a proteção de Deus' na Constituição é enfeite. E Gandra finge não saber disso

A  expressão no preâmbulo da Carta Magna defendida pelo jurista já foi considerada pelo Supremo Tribunal Federal com um ornamento, sem qualquer força normativa


EDUARDO BANKS
jornalista e ativista da laicidade de Estado

Em 24 de maio de 2023, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo declarou a inconstitucionalidade, com retroatividade dos seus efeitos, da expressão “e o presidente, dizendo que ‘sob a proteção de Deus, iniciamos nossos trabalhos’, solicitará a um vereador, inscrito por ordem alfabética, que faça a leitura de um texto da Bíblia Sagrada, pelo tempo de até três minutos”, constante do § 1º do art. 141 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Araçatuba. 

Não foi a primeira vez, tampouco será a derradeira que o TJ-SP exerceu o controle de constitucionalidade quanto a normas regimentais que falam em invocar “a proteção de Deus” e/ou ler algum trecho da bíblia na abertura das sessões parlamentares, de vez que já existe forte jurisprudência naquele Pretório no sentido de que norma positiva, como no caso, artigo de Regimento Interno, não pode regular uma “invocação” a qualquer divindade, sendo que vários dos precedentes dele emanados tiveram início em representações aviadas por este signatário ao Ministério Público, inclusive o de que ora se trata.

No caso específico do julgamento envolvendo a Câmara Municipal de Araçatuba — já transitado em julgado em 29 de junho de 2023 —, o jurista Ives Gandra da Silva Martins gravou vídeo no Instagram em 20 de julho de 2023 (acesso aqui) criticando a “proibição do Tribunal de Justiça para a Câmara de Araçatuba de usar a expressão sob a proteção de Deus apesar de toda constituição brasileira, segundo o preâmbulo, ter sido aprovado sob a proteção de Deus”. Argumentou que os desembargadores que julgaram a ADI 2294532-79.2022.8.26.0000 se tornaram tais, por força da Constituição Federal que, a seu turno, teria sido promulgada “sob a proteção de Deus”.

Com todo o respeito pelo dr. Ives Gandra Martins, autor dos anteprojetos que resultaram no Código Tributário Nacional e nas Leis nºs. 9.868/99 e 9.882/99, que regulam o processo e julgamento das ações constitucionais no Supremo Tribunal Federal, mas por causa disso mesmo, eu esperava coisa melhor da parte dele, pois sabe, ou deveria saber, que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o Preâmbulo da Constituição de 1988 não se passa de um “enfeite” ou preceito de relevância exclusivamente política, sem qualquer força normativa, e do qual não procede nenhum direito ou obrigação.

Aludimos ao julgamento da ADI 2076/AC, proposta pelo antigo Partido Social Liberal (PSL), o mesmo que daria legenda para eleger Jair Bolsonaro em 2018. Distribuída à Relatoria do Ministro Carlos Velloso, a petição inicial atacava o Preâmbulo da Constituição Estadual do Acre, por ser a única das constituições estaduais a não invocar a “proteção de Deus”.

O partido autor alegava que o preâmbulo da Constituição Federal seria “ato normativo de supremo princípio básico com conteúdo programático e de absorção compulsória pelos Estados”, porém saiu do julgamento sem nada, pois o plenário entendeu que o preâmbulo da Constituição possui caráter exclusivamente decorativo, não constituindo norma jurídica de espécie alguma, nem se pode invocá-lo para sedimentar o controle concentrado de constitucionalidade.

O enfeite colocado no
preâmbulo da Constituição
não é para ser levado a sério

Na sessão plenária de 15 de agosto de 2002, a unanimidade dos ministros, “a uma só voz” (expressão usada no Acórdão), julgou improcedente o pedido formulado na inicial, ausente o ministro Moreira Alves, e impedido o ministro Gilmar Mendes, que nela oficiara (declinando de se manifestar, por não haver interesse da União a ser defendido) como Advogado-Geral da União, antes de ser indicado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso ao STF, onde hoje é o seu decano. A conclusão alcançada por nove Ministros da Suprema Corte, foi a seguinte:

“Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição Federal, não tendo força normativa.”

O voto condutor do Ministro Carlos Velloso, assim elucidou como se deve interpretar o preâmbulo da Constituição, e com ele, a sua invocação da “proteção de Deus”:

“O preâmbulo, ressai das lições transcritas, não se situa no âmbito do direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte. É claro que uma constituição que consagra princípios democráticos, liberais, não poderia conter preâmbulo que proclamasse princípios diversos. Não contém o preâmbulo, portanto, relevância jurídica. O preâmbulo não constitui norma central da Constituição, de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro. O que acontece é que o preâmbulo contém, de regra, proclamação ou exortação no sentido dos princípios inscritos na Carta: princípio do Estado Democrático de Direito, princípio republicano, princípio dos direitos e garantias etc. Esses princípios, sim, inscritos na Constituição, constituem normas centrais de reprodução obrigatória, ou que não pode a Constituição do Estado-membro dispor de forma contrária, dado que, reproduzidos, ou não, na Constituição estadual, incidirão na ordem local.”

Equivocou-se rotundamente o jurista Ives Gandra Martins ao invocar um texto de domínio meramente político como se de norma jurídica se tratasse, e de reprodução obrigatória para vincular o controle concentrado de constitucionalidade. Eu realmente esperava coisa melhor de quem redigiu as leis que regulam o processo e julgamento das ADI’s, ADC’s, ADO’s e ADPF’s.

O preâmbulo, sendo político, não imprime nenhuma força que deva ser seguida pelo operador do Direito, dele não nascendo nenhuma obrigação, do contrário, seria possível “processar a Deus” para condená-lo na obrigação de “proteger” a República, como na Idade Média se levava o diabo às barras dos Tribunais, o que por si só mostra o ridículo técnico da alocução de um grande jurista, que, desta vez, não obrou com o seu costumeiro acerto, além de parecer estar desinformado ou desatualizado sobre a interpretação do Excelso Pretório no ponto, fixada há mais de duas décadas.

Especificamente quanto à invocação da “proteção de Deus”, assim finalizou o voto do ministro Carlos Velloso:

“Essa invocação, todavia, posta no preâmbulo da Constituição Federal reflete, simplesmente, um sentimento deísta e religioso, que não se encontra inscrito na Constituição, mesmo porque o Estado brasileiro é laico, consagrando a Constituição a liberdade de consciência e de crença (CF, art. 5º), certo que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (CF, art. 5º, VIII). A Constituição é de todos, não distinguindo entre deístas, agnósticos ou ateístas.

A referência ou a invocação à proteção de Deus não tem maior significação, tanto que constituições de Estados cuja população pratica, em sua maioria, o teísmo, não contêm essa referência. Menciono, por exemplo, as Constituições dos Estados Unidos da América, da França, da Itália, de Portugal e da Espanha.

Do exposto, julgo improcedente a ação.” (grifamos)


O Supremo Tribunal Federal, portanto, decidiu que, mesmo o preâmbulo da Constituição falando em Deus, não é para se “levar a sério” porque a parte normativa do texto constitucional impõe a Laicidade, e no conflito aparente de normas constitucionais entre o preâmbulo da Carta Magna e o inciso I do seu artigo 19, deve prevalecer este último.

O voto do ministro Marco Aurélio, em poucas e eloquentes palavras, assentou que “o preâmbulo, o introito não integra o corpo da própria Constituição. Portanto, não pode repercutir a ponto de se adentrar o campo da simetria, exigindo-se que haja adoção uniforme em todas as unidades da Federação.”

Daí nasce o questionamento: se o preâmbulo é mero “enfeite” com papel decorativo ou apenas político, por que seria inconstitucional a norma retirada do Regimento Interno da Câmara Municipal de Araçatuba, assim como o de Araras, ou de Catanduva, ou de Taquaritinga, ou de Itapecerica da Serra, ou de Piracicaba, ou de Engenheiro Coelho, todas elas já expungidas pelo TJ-SP?

Porque enquanto a invocação da “proteção de Deus” no preâmbulo da Constituição Federal não tem força normativa, o § 1º do artigo 141 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Araçatuba tinha força cogente, criando uma obrigação para o Presidente da Casa de Leis em seguir um ritual na abertura das sessões, sem o qual não se poderiam iniciar os trabalhos legislativos: invocar a Deus e ler versículos da Bíblia.

O que não alcançou o insigne jurista Ives Gandra Martins é que do momento em que a “proteção de Deus” — que, no Preâmbulo da Constituição Federal, não tem força normativa — é deslocada para o corpus de um Regimento Interno, e inserida em um artigo, deixa de ser um “enfeite” ou preceito de relevância exclusivamente política, para se tornar em uma verdadeira norma legal, cujo respeito e acatamento é compulsório prestar.

Por isso que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vem, rotineiramente, declarando a inconstitucionalidade da criação de rito de caráter religioso, por afrontar à Laicidade do Estado, esta sim regida em norma jurídica de reprodução obrigatória pelas Constituições Estaduais, com sede no artigo 19, inciso I da Constituição Federal.

Nem socorre ao caso o § 2º do artigo 112 do Regimento Interno da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo também prever a invocação da “proteção de Deus” na abertura dos trabalhos, porque essa norma, assim como as congêneres do § 1º do artigo 155 do Regimento Interno do Senado Federal e do artigo 79, §§ 1º e 2º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados também são inconstitucionais, desafiando a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, a ser provocada em momento oportuno.

O Regimento Interno da ALESP é de 1970, anterior, portanto, à promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, não podendo ser atacado por Ação Direta de Inconstitucionalidade, mas apenas por Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), com foro exclusivo na Suprema Corte, porque não houve o recepcionamento pelo inciso I do artigo 19 da atual Carta Magna (preceito fundamental descumprido) da determinação de que “o Presidente abrirá a sessão, declarando: ‘Sob a proteção de Deus, iniciamos os nossos trabalhos’.”

A Jurisprudência criada no caso do Regimento Interno da Câmara Municipal de Araçatuba, e em vários outros, é idônea para levar à retirada da Bíblia e da invocação da proteção de Deus também na ALESP, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, posto que uma norma inconstitucional, ainda que de hierarquia superior (estadual ou federal), não se presta a validar as inconstitucionalidades de normas na base (municipal) da pirâmide kelseneana.

O entendimento unânime do TJ-SP é o que deve prevalecer, inspirando o futuro julgamento pelo Supremo Tribunal Federal em ADI’s e ADPF a serem propostas.

Lamentável que se diga que o julgamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tenha retirado qualquer direito da população de maioria cristã. Os religiosos continuam livres para praticarem suas liturgias e seguirem suas crenças nos templos destinados a esse fim.

A intervenção do Órgão Especial do TJ-SP vem de ser de todo salutar, pois a presença de ato de caráter religioso em regimento interno de sede do Poder Legislativo implica um dirigismo estatal, como se fosse a vontade da Câmara Municipal, da Assembleia Legislativa ou das Casas do Congresso Nacional, o que desobedece aos “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, por sinal, também constantes do Preâmbulo da Constituição Federal, mas inseridos no texto da Carta Magna como norma de reprodução compulsória no seu artigo 3º:


Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.


Uma Constituição que dissesse em seu Preâmbulo “sem a proteção de Deus” seria absurda; a laicidade do Estado exige que nas normas jurídicas não se fale NADA, nem contra, nem a favor, de qualquer sistema de crenças, e este signatário, sendo ateu, não admitiria jamais que o Brasil se tornasse um “Estado ateu”, onde as religiões ficassem à margem da Lei.

O lugar das religiões é na vida privada, não se podendo invocá-las para descumprir obrigação a todos imposta (artigo 5º., inciso VIII da CF-88), FICANDO PROIBIDO aos Poderes Públicos tomarem qualquer posição por nenhuma delas. Isto é a verdadeira Laicidade.

Confie o valoroso dr. Ives Gandra Martins que este signatário tomará, no seu tempo, as providências necessárias para que sejam propostas ações de controle concentrado de constitucionalidade também em face das normas regimentais da ALESP, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, visando a construção de um Brasil cada vez mais LAICO, mais INCLUSIVO e mais PLURALISTA, onde nenhuma forma de expressão religiosa, ou irreligiosa, como o ateísmo ou o agnosticismo, gozará de privilégios estatais, concessões ou prebendas.

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