Professor de ciência política da UnB
e coordenador do Grupo de Pesquisa
sobre Democracia e Desigualdades.
Protagonistas do avanço do bolsonarismo, as igrejas não hesitaram em voltar ao seu velho modus operandi nos governos do PT.
Usam seu peso no parlamento para fazer chantagem e obter concessões. Pode ser travar a pauta de direitos das mulheres e das pessoas LGBT, para agradar à base, ou pode ser garantir privilégios para si mesmas.
O projeto da vez é a PEC de autoria do notório Marcello Crivella, o sobrinho de Edir Macedo, ligado a mil maracutaias. Ela prevê isenção de impostos na compra de bens para construção e reforma de templos, manutenção de atividades e prestação de serviços.
As igrejas já não pagam imposto de renda, IPTU, IPVA, Cofins,
Os poucos tributos que devem pagar, como os relativos às obrigações trabalhistas, muitas vezes são sonegados.
De resto, as igrejas ignoram solenemente, e sem que sofram consequências, todo o tipo de regulação. Não respeitam zoneamento urbano ou lei do silêncio. Não respeitam as restrições ao proselitismo político-eleitoral em locais de culto. Têm carta branca seja para a prática do charlatanismo, seja para lavagem de dinheiro, seja ainda para a disseminação de discurso de ódio.
(O horrendo “Templo de Salomão”, em São Paulo, foi construído em local destinado a moradias populares. A Universal assinou um termo de ajuste de conduta e não cumpriu. Agora está sendo anistiada pela prefeitura.)
Macedo e Bolsonaro: frente e verso da moeda das maracutais |
O que justifica todos esses privilégios é o princípio da liberdade religiosa. Mas o livre curso dado às práticas religiosas fere o entendimento, que se tornou padrão no liberalismo contemporâneo, de que o Estado deve ser neutro em relação às diversas concepções do bem.
Fica claro que quem guia sua vida por princípios religiosos merece um respeito maior do que quem não o faz.
Mesmo a filósofa política contemporânea mais engajada na defesa do papel e da relevância das religiões, Martha Nussbaum, entende que é impossível sustentar que outras visões filosóficas, não religiosas, não desfrutem de posição similar.
O indivíduo que usa drogas por determinação de uma hierarquia religiosa pode. Quem o faz por uma busca mística pessoal, por uma ideia hippie laica de expansão da consciência ou por hedonismo, não. Mas se o Estado é neutro em relação às concepções de bem, uma filosofia laica, o hedonismo ou uma religião precisam valer a mesma coisa.
Por vezes, candidatos são dispensados de prestar provas em determinados dias da semana porque há tabus que os obrigam a descansar naquele momento. Se alguém pedir dispensa porque não pode perder o jogo do Corinthians, por outro lado, nem será levado a sério. Mas certamente há muita gente para quem o Corinthians é mais importante do que Deus – e não cabe ao poder público julgar essa ordem de prioridades.
Ou, por outro lado: a misoginia laica de um CEO de empresa fica mais defensável se a ascensão profissional de mulheres passar a ser barrada por motivos sacros? Se o Estado julga que a igualdade entre homens e mulheres é um requisito imprescindível para uma sociedade justa, então precisa impedir a discriminação em todos os espaços.
A liberdade religiosa foi um avanço extremamente importante, no contexto das guerras de religião na Europa, que sucederam à Reforma protestante. Marcou a separação entre Estado e igreja, entre política e fé, contribuindo de maneira crucial para a expansão dos direitos individuais. Mas é preciso perguntar se hoje ela continua sendo necessária – ou se, ao contrário, tornou-se um instrumento de manutenção de privilégios e de tratamento inequânime entre os cidadãos.
Aquilo que a liberdade religiosa promete é suprido por um conjunto de outras liberdades liberais: de consciência, de manifestação, de associação. Juntas, elas garantem o direito das congregações para se organizar, celebrar seus cultos, fazer seu proselitismo, sem estabelecer que a religião possui um estatuto superior a outras visões de mundo.
Já exigência da laicidade do Estado e o combate à discriminação por motivo de religião permanecem como requisitos centrais para a organização de uma sociedade democrática. É a liberdade religiosa, tal como entendida e praticada hoje, que por vezes ameaça a laicidade do Estado e a não discriminação das religiões minoritárias.
> Este texto foi publicado originalmente no Facebook. O título é de autoria deste site.
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