Pular para o conteúdo principal

Milícias adotam a visão de mundo do pentecostalismo para se reorganizarem

O livro “A fé e o fuzil”, de Bruno Paes Manso, analisa como o mundo evangélico influencia as milícias e os traficantes nas periferias brasileiras


SILVANA SALLES
jornalista

Jornal da USP

Marcelinho vendia crack antes de virar evangélico. Sobreviveu a um atentado, largou o crime e as drogas e mudou completamente seu comportamento.

Pereira, ex-policial militar condenado por executar suspeitos, teve seu momento de conversão na prisão. Era véspera de Natal, ele se sentia solitário, sem esperanças de progredir de pena para o regime semiaberto.

A pastora Viviane passou a questionar suas práticas de trabalho missionário ao ver uma facção criminosa usar o discurso religioso para justificar a violência e o controle do território. 

O jornalista Bruno Paes Manso conta essas e outras histórias em seu novo livro, A fé e o fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI, lançado em setembro pela editora Todavia.

Bruno, que é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e colunista do Jornal da USP, há mais de 20 anos investiga as cenas do crime e do tráfico de drogas no Brasil. 

Dessas investigações nasceram seus livros anteriores, A guerra (em coautoria com Camila Nunes Dias) e A República das milícias. Em A fé e o fuzil, ele discute como a visão de mundo dos evangélicos têm organizado novos propósitos de vida e novas ordens de comportamento nas periferias das cidades brasileiras, tanto a partir das igrejas quanto a partir de facções criminosas com bases prisionais.


Milicianos procuram legitimar
seus crimes com argumentos
inspirados na religião

FOTO: REDE SOCIAL

O jornalista conta que começou a observar que a violência do cotidiano das cidades brasileiras frequentemente se encontrava com experiências relacionadas à fé de seus entrevistados a partir dos testemunhos de pessoas que abandonaram o crime após se tornarem evangélicas. Nesses testemunhos, elas contam que não se trata meramente de frequentar a igreja, mas de passar por um profundo processo de transformação pessoal. Esse processo é conhecido como metanoia.

“Eu pesquisava matadores e entrevistava matadores para saber por que eles matavam. Como o assunto é muito delicado, eu passei a entrevistar ex-matadores, ex-bandidos, ex-traficantes que haviam se convertido e não tinham problema em falar sobre o passado, porque até [isso] dimensionava o tamanho do milagre da transformação na vida deles a partir de Deus e desse processo de metanoia. E aí, a partir dessas conversas, eu comecei a colecionar uma série de histórias pessoais de transformação”, conta.

Os relatos de conversão são amostras de um fenômeno de acelerada mudança na religiosidade do povo brasileiro. Nos anos 1980, os evangélicos eram 5,6% dos brasileiros. Em 2019, já eram 31%. 

Conforme o pentecostalismo foi ganhando mais adeptos, o discurso evangélico foi se tornando mais influente – culminando, em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, que, embora se declare católico, adotou publicamente muitas referências evangélicas, a exemplo do slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Bruno explica que isso aconteceu tanto na política institucional quanto fora dela.

“Principalmente quando eu vou investigar as milícias, eu começo a perceber que esse discurso religioso, que estava restrito ao universo privado de transformações pessoais, passou a ser usado com uma dimensão política a partir de lideranças criminosas no Rio de Janeiro, que passavam a se dizer ungidas ou terem sonhado com Deus, que teria dito que ele representavam o bem na terra, para justificar seu poder”, diz o autor, mencionando o caso do Complexo de Israel, território na zona norte do Rio de Janeiro dominado pela facção criminosa Terceiro Comando Puro.

Mas, afinal, o que o discurso das lideranças de facções criminosas tem a ver com o cotidiano dos fiéis e a eleição de Bolsonaro em 2018? 

Na avaliação do autor, nos três casos há uma visão da prosperidade como benção divina, que não deve sofrer a interferência do Estado. Por um lado, essa visão ganhou força no Brasil com a influência das igrejas neopentecostais, altamente midiáticas e promotoras da teologia da prosperidade. Por outro, a utopia do estado de bem-estar brasileiro ruiu de 1988 para cá, devido à dificuldade do Estado em garantir direitos sociais.

“O Brasil não vira uma Suécia, né? O Brasil não vira uma Dinamarca. O mercado continua sendo muito importante para garantir o sustento. Quem não tem dinheiro, dança aqui. Não adianta você esperar que vai ter escola pública ou posto de saúde e que isso vai te dar tranquilidade para você ter uma vida digna. Não! Você tem que ter dinheiro. E a partir dessa visão, o pentecostalismo começa a promover justamente essa crença e essa disposição de empreender, de lutar pelas próprias pernas, de acreditar em si mesmo, de ver o progresso material como uma benção divina, de construir redes de apoio entre pessoas que têm os mesmos valores que os seus e a enxergar o Estado como, no máximo, um agente promovedor desses negócios”, explica.

Essa visão de mundo mais neoliberal, de um Estado que não deve atrapalhar as pessoas que ganham dinheiro, é compartilhada pelas milícias e as facções criminosas envolvidas no bilionário negócio da venda de drogas. “É uma visão mais realista e cínica. É uma grande selva em que o mais capacitado para empreender, para ganhar dinheiro, sobrevive”, explica Bruno. 

“Como um criminoso, uma pessoa que entrevistei, já me falou: ‘olha, eu não sou nem comunista, nem capitalista. Eu sou dinheirista, eu quero ganhar dinheiro’”, completa.

Os mundos do crime e dos evangélicos começaram a se cruzar em termos mais concretos a partir da profissionalização do crime, empreendida pelo PCC. Isso porque o dinheiro da venda de drogas no atacado, que antigamente já era lavado por meio de doleiros e empresas, passou a entrar até mesmo em igrejas. 

No início de 2023, uma investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro revelou que um dos líderes do PCC – Valdeci Alves dos Santos, o “Colorido” – investiu em sete igrejas evangélicas para lavar o dinheiro do tráfico.

A noção de guerra é outro aspecto no qual o mundo evangélico se cruza com os mundos do crime e também da política. No contexto evangélico, a guerra é espiritual. Trata-se da ideia de uma batalha do bem contra o mal, com críticas à religiosidade de matriz africana e forte ênfase na luta pela expulsão do demônio. 

As igrejas neopentecostais que falam dessa batalha compartilham da visão de que o fim do mundo está próximo e, por isso, é importante ter a maior quantidade de “soldados do bem” em diversos postos da sociedade quando Jesus Cristo chegar pela segunda vez.

Bruno Paes Manso afirma que essa ideia de guerra espiritual foi apropriada pelo bolsonarismo sob o argumento de que a esquerda seria um grande bloqueio ao desenvolvimento, identificando todo este campo político como “aqueles que querem nos impedir de ganhar dinheiro”. Se a prosperidade é uma benção, então a defesa do estado de bem-estar social seria identificada como um inimigo.

“O pentecostalismo na política, essa visão da guerra que surge com o bolsonarismo, nas redes sociais, guerra contra o comunismo, guerra contra o esquerdismo, guerra contra o feminismo, é uma visão quase de um anarcocapitalista. Como é o próprio [Javier] Milei na Argentina, [que] se diz anarcocapitalista e tem muitas semelhanças com o bolsonarismo”, diz o jornalista.

Por sua vez, a milícia e o crime compartilham de uma visão da guerra que tem contornos tão darwinistas quanto a competição defendida pelos anarcocapitalistas. 

“O que importa para esses grupos não é um Estado que organize coletivamente a sociedade, que reduza desigualdades, que promova a justiça, que apoie os mais fracos, inclusive os que não estão com capacidade de participar dessa disputa darwinista. Eles não enxergam o Estado dessa forma. Eles enxergam o Estado como alguém que deve permitir que essa guerra do mais forte aconteça, que os mais capacitados para ganhar dinheiro, os mais abençoados, sobrevivam”, afirma Bruno.

> Link na Amazon para a compra de Fé e Fuzil.

• Milícias do Rio fazem parcerias com igrejas pentecostais para lavar dinheiro, mostra estudo

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Caso Roger Abdelmassih

Violência contra a mulher Liminar concede transferência a Abelmassih para hospital penitenciário 23 de novembro de 2021  Justiça determina que o ex-médico Roger Abdelmassih retorne ao presídio 29 de julho de 2021 Justiça concede prisão domiciliar ao ex-médico condenado por 49 estupros   5 de maio de 2021 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico Abdelmassih 26 de fevereiro de 2021 Corte de Direitos Humanos vai julgar Brasil por omissão no caso de Abdelmassih 6 de janeiro de 2021 Detento ataca ex-médico Roger Abdelmassih em hospital penitenciário 21 de outubro de 2020 Tribunal determina que Abdelmassih volte a cumprir pena em prisão fechada 29 de agosto de 2020 Abdelmassih obtém prisão domicililar por causa do coronavírus 14 de abril de 2020 Vicente Abdelmassih entra na Justiça para penhorar bens de seu pai 20 de dezembro de 2019 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico estuprador 19 de novembro de 2019 Justiça cancela prisão domi...

Wyllys luta contra a 'poderosa direita religiosa', diz Guardian

Jornal dedicou texto de 700 palavras ao deputado Wyllys disse que se sente como um Don Quixote O jornal britânico The Guardian afirmou que o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), 37, na foto, tem sido um guerreiro contra a poderosa direita religiosa brasileira. Nesse embate, afirmou o jornal, “o primeiro deputado federal assumidamente homossexual do Brasil precisa de todo o apoio que puder conseguir”. Comparou Wyllys a Havey Milk (1930-1978), que foi o primeiro político gay assumido dos Estados Unidos  - ele foi assassinado. Wyllys disse ao The Guardian que às vezes, nessa batalha, se sente como dom Quixote. “É uma batalha difícil de combater, mas essa é a minha vocação.” Ele afirmou que pregadores radicais evangélicos avançaram “silenciosamente nos corações e mentes” dos brasileiros. “Agora, estamos começando a perceber a força política em que se tornaram.” Para o deputado, os pastores radicais estão com “as mãos sujas de sangue” porque a sua pregação ince...

Em vídeo, Malafaia pede voto para Serra e critica Universal e Lula

Malafaia disse que Lula está fazendo papel de "cabo eleitoral ridículo" A seis dias das eleições, o pastor Silas Malafaia (foto), da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, gravou um vídeo de 8 minutos [ver abaixo] pedindo votos para o candidato à prefeitura de São Paulo José Serra (PSDB) e criticou a Igreja Universal e o ex-presidente José Inácio Lula da Silva. Malafaia começou criticando o preconceito que, segundo ele, existe contra pastor que emite opinião sobre política, o mesmo não ocorrendo com outros cidadãos, como operários, sindicalistas, médicos e filósofos. O que não pode, afirmou, é a Igreja, como instituição, se posicionar politicamente. “A Igreja é de Jesus.” Ele falou que tinha de se manifestar agora porque quem for para o segundo turno, se José Serra ou se Fernando Haddad, é quase certeza que será eleito, porque Celso Russomanno está caindo nas pesquisas por causa do apoio que tem recebido da Igreja Universal. Afirmou que apoia Serra na expectativa de...

Padre Marcelo diz não gostar de gatos porque eles são traiçoeiros

Igreja Católica já foi perseguida de gatos Em missa para mais de dez mil fiéis e com transmissão pela TV, o padre Marcelo disse no começo de outubro de 2011 que gosta de cachorro, mas não de gato porque se trata de um bicho traiçoeiro. O padre tem três cachorro e foi mordido pelo vira-lata de sua mãe.

Russas podem pegar até 7 anos de prisão por protesto em catedral

Protesto das roqueiras Y ekaterina Samutsevich, Nadezhda  Tolokonnikova  e Maria Alyokhina durou apenas 1m52 por Juliana Sayuri para Estadão Um protesto de 1 minuto e 52 segundos no dia 21 de fevereiro [vídeo abaixo]. Por esse fato três roqueiras russas podem pagar até 7 anos de prisão. Isso porque o palco escolhido para a performance foi a Catedral de Cristo Salvador de Moscou. No altar, as garotas da banda Pussy Riot tocaram a prece punk Holy Shit , que intercala hinos religiosos com versos diabólicos como Virgin Mary, hash Putin away . Enquanto umas arranhavam nervosos riffs de guitarra, outras saltitavam, faziam o sinal da cruz e dançavam cancã como possuídas. As freiras ficaram escandalizadas. Os guardas, perdidos. Agora as rebeldes Yekaterina Samutsevich  (foto), Nadezhda Tolokonnikova (foto) e  Maria Alyokhina (foto) e  ocupam o banco dos réus no tribunal Khamovnichesky de Moscou, acusadas de vandalismo e ódio religioso. Na catedral, as...

Livro mostra o que a Bíblia tem de bizarro, hilário e perturbador

O jornalista americano David Plotz ficou surpreso ao descobrir na Bíblia que Deus tem obsessão por carecas.

Ateus de 25 cidades confirmam participação em encontro

Encontro também se destina a agnósticos e humanistas em geral Até o momento, jovens ateus, agnósticos e humanistas de 25 cidades de diferentes regiões do Brasil já confirmaram participação no 2º Encontro Nacional de Ateus. O encontro será realizado no dia 17 de fevereiro de 2013 em cada uma das cidades inscritas, sob a coordenação da SR (Sociedade Racionalista). Trata-se de uma entidade que defende os princípios do laicismo, mas não é antirreligiosa, até porque, de acordo com seu site, cultiva o pluralismo de ideias. O vídeo institucional do evento reproduz áudio de uma entrevista onde Drauzio Varella diz que os ateus hoje estão tendo a coragem de “sair do armário”. Também destaca uma famosa frase do cientista britânico Richard Dawkins segundo a qual todos são ateus em relação ao deus ou deuses dos outros. Segundo ele, a diferença em relação aos que se assumem como ateus é que estes não acreditam em deus algum. Segue a relação das cidades já confirmadas, com seus respectiv...

Malafaia se refere a Wyllys como deputado ‘safado, mentiroso’

Malafaia disse que ser gay  é um comportamento O pastor Silas Malafaia (foto), 53, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, se referiu como “safado, mentiroso” ao deputado federal segundo o qual a igreja evangélica causa tortura física e psicológica quando se propõe a curar a homossexualidade. Ele não citou o nome do único deputado federal assumidamente gay, Jean Wyllys (PSOL-RJ). Foi esse deputado que recentemente acusou igrejas de causarem  sofrimento aos gays ao considerarem a homossexualidade uma doença que tem cura. Malafaia, que é formado em psicologia, afirmou que “a igreja não cura”, mas propicia a “libertação” [da homossexualidade]. Para ele, “ninguém nasce homossexual” porque se trata de “um comportamento como tantos outros”, a ponto, inclusive, de haver ex-gays. “Existe uma associação de ex-gays”, disse o pastor ao portal iG. “O cara que preside foi travesti em Roma, com silicone no peito e na bunda (ri). Ele é casado há dez anos.” Ele acusou, mais...