Pular para o conteúdo principal

Ana sangra, e médica a denuncia à PM por aborto. Tribunal manda encerrar o caso só seis anos depois

Caso ocorreu na Santa Casa de Araraquara, São Paulo. Superior Tribunal de Justiça mandou arquivar o processo criminal sem julgar o mérito porque a médica não respeitou o sigilo da paciente    


TATIANA FARAH

jornalista

Agência Pública
jornalismo investigativo
sem fins lucrativos

Seis anos. Esse foi o tempo que Ana* esperou para que a Justiça lhe tirasse um peso das costas. Em 2017, ela foi denunciada por uma médica por ter feito um aborto. A profissional de saúde atendia na emergência de um hospital da Santa Casa de Misericórdia, da região de Araraquara, em São Paulo, onde Ana chegou com hemorragia, depois de ingerir medicação abortiva. O caso já foi tema de reportagem da Agência Pública.

Presa dentro do hospital, enquanto ainda sangrava, sentia dores e tinha febre, a jovem passou a responder como ré em um arrastado processo criminal, que teve fim na última terça-feira (3). 

A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a médica quebrou o sigilo da paciente ao se comunicar com a polícia. O sigilo é um dos princípios fundamentais do Código de Ética Médica. Diz o artigo XI: “O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei.”

Uma vez que a denúncia que resultou no processo criminal foi considerada ilegal, os ministros do STJ decidiram pelo trancamento da ação penal a pedido da Defensoria Pública de São Paulo. O próprio subprocurador-geral da República José Elaeres Marques Teixeira, que representou o Ministério Público no julgamento, pediu o trancamento, com base na “ilicitude da violação médica”. “Deve prevalecer o direito à saúde e à intimidade”, afirmou o subprocurador-geral.

“Um hospital deve ser um centro de acolhimento para a saúde, e assim deve ser o comportamento dos profissionais que o guarnecem”, afirmou o relator do julgamento do Habeas Corpus (HC) 448.260/SP, ministro Antonio Saldanha Palheiro. 

“A médica que a devia socorrer chama a Polícia Militar”, destacou ele, afirmando que isso “coloca a mulher numa situação de absoluta iniquidade”.

O voto do relator foi acompanhado pelos demais ministros, que ainda decidiram remeter o processo ao Conselho Regional de Medicina (CRM) para que seja avaliada a conduta médica.

“Não pode a mulher que procura o atendimento médico ser exposta por aquele que tem o dever de guardar o segredo e o sigilo e não expor a sua intimidade, delatando sua condição a policiais”, afirmou o defensor público Fernando Rodolfo Moris.

Já com dois filhos,
Ana tinha sofrido
violência sexual
ILUSTRAÇÃO: REDE SOCIAL

A vitória de Ana no STJ ocorre em um momento de expectativa para a retomada do julgamento da ADPF 442, que pede a descriminalização do aborto no Brasil, no Supremo Tribunal Federal. 

A ministra aposentada Rosa Weber votou a favor da descriminalização, mas o julgamento foi suspenso por um pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso, que assumiu a presidência da Corte. Ainda não há data para a votação.

Como a Pública já revelou com exclusividade, a quebra do sigilo médico é responsável por mais da metade das denúncias de abortamento em São Paulo. Segundo dados do Nudem/SP (Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo), dos 37 casos atendidos no estado, 20 foram iniciados com denúncias de profissionais de saúde, que quebraram o sigilo ético.

“O Ministério Público tem sustentado as denúncias com base na ilicitude da prova, mas, desta vez, pediu o trancamento da ação penal considerando que a prova era ilícita”, comemorou a coordenadora do Nudem/SP, Nalida Coelho Monte. ["Trancamento", no caso, significa encerrar uma ação penal sem julgar o mérito.]

No trabalho, de onde acompanhou passo a passo o julgamento por mensagens de WhatsApp das defensoras públicas, Ana também comemorou. “foi um misto tão grande de emoções. Foi alívio, foi uma sensação de que ‘graças a Deus isso acabou’. De poder voltar a ter vida. De devolver a minha dignidade”, explicou Ana, em entrevista à Pública na tarde desta quinta-feira (6).

Foi por causa do processo que Ana quase perdeu a chance de assumir seu cargo como funcionária pública, em março. Ela passou no concurso, mas, quando foi chamada, seu atestado de antecedentes criminais informava que ela respondia a processo na Justiça. A Defensoria Pública entrou em ação e garantiu que a mulher assumisse o posto.

“Eu entendi a preocupação deles, que queriam saber qual era o tipo de processo que eu respondia. Mas as defensoras falaram com eles, como leoas, me defendendo, e deu tudo certo”, contou Ana.

A Defensoria tenta também que Ana receba uma indenização por parte do hospital, onde teve prisão decretada ainda na maca. Como a Pública reportou, um juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo chegou a usar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para justificar a quebra de sigilo médico e derrotar Ana no pedido de indenização. O caso segue indefinido para instâncias superiores.

Dos 37 casos atendidos pelo Nudem em São Paulo, pedindo o trancamento das ações penais, a Justiça de São Paulo negou 70%, mantendo o processo contra as mulheres. No STJ, instância superior, a situação muda completamente. Já chegaram aos ministros três desses pedidos de HC. Em dois deles, os ministros formaram sua decisão afirmando que a quebra de sigilo médico torna a prova nula.

Mãe de dois filhos, Ana se viu grávida em um relacionamento abusivo, em que temia por sua segurança e por seus filhos, frutos de relacionamentos anteriores. A gestação estava difícil. Segundo a Defensoria, ela teve de pedir afastamento médico do trabalho, onde ganhava um salário mínimo, três vezes. “Eu tinha um problema de anemia, que causava hemorragia”, disse.

Ana teve outra gestação depois do aborto. Com medo de sofrer retaliação da médica e do hospital, ela pediu proteção da Defensoria Pública de São Paulo para ter o parto seguro em sua cidade, o que lhe foi garantido. Mas, a cada ida ao hospital, os traumas voltavam. Ela não se esquecia da enfermeira que insistia para que ela confessasse o aborto à polícia. “Confessar. Os policiais também usaram esse termo”, lembra.

Com o processo criminal, a situação também ficou delicada na família de Ana, de formação cristã. Seu pai pagou a fiança, mas ela se sente julgada. Diz que alguns parentes tratam do caso diretamente, mas outros são mais silenciosos. “Mesmo você não falando, sua expressão facial fala por si, entende?”

Como a pena para o crime de aborto é de quatro anos, dificilmente a ré fica presa por muito tempo, desde que pague a fiança. E é nesse ponto que, segundo a defensora Nalida Coelho Monte, que se sente a “condenação moral significativa” dessas mulheres. 

“O que a gente verificou na pesquisa é que a fiança arbitrada nesses casos é extremamente elevada. Ela é três a quatro vezes maior que o salário que a mulher declara ganhar no momento da prisão. E isso é incomum”, afirma a defensora.

Sobre o julgamento moral, que também leva os profissionais de saúde a fazerem as denúncias quebrando seus próprios códigos de ética, o ministro do STJ Rogério Schietti Cruz, afirmou: “Parece que estamos no tempo em que pessoas eram queimadas em praça pública por seu comportamento.” 

Para ele, que afirmou que Ana foi vítima de uma sequência de violações, o fato de a denúncia ter partido de outra mulher mostra que “falta, inclusive, sororidade”.

Tudo o que Ana quer agora é, como ela mesmo diz, “voltar a ter vida”. Diz que foram muitas noites de insônia e muitos dias de medo de uma condenação. Vivendo em uma cidade pequena, ela sempre teve o temor de ter sua história revelada e de causar constrangimentos aos filhos. (Edição: Mariama Correia)

Essa reportagem foi publicada originalmente pela Agência Pública com o título STJ tranca ação contra mulher que abortou e foi denunciada pela médica.

• CNJ investiga juíza que por motivo religioso tentou impedir aborto em menina

• Pelo menos 19 entidades do conservadorismo católico se articulam para barrar o aborto

Comentários

CBTF disse…
Será que essa enfermeira vai em clínica de fertilização in vitro protestar pelos embriões congelados que são descartados todos os anos ou só protesta para interrupções de embriões em grávidas mesmo?

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Onde Deus estava quando houve o massacre nos EUA?

Deixe a sua opinião aí embaixo, no espaço de comentários.

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Papa afirma que casamento gay ameaça o futuro da humanidade

Bento 16 disse que as crianças precisam de "ambiente adequado" O papa Bento 16 (na caricatura) disse que o casamento homossexual ameaça “o futuro da humanidade” porque as crianças precisam viver em "ambientes" adequados”, que são a “família baseada no casamento de um homem com uma mulher". Trata-se da manifestação mais contundente de Bento 16 contra a união homossexual. Ela foi feita ontem (9) durante um pronunciamento de ano novo a diplomatas no Vaticano. "Essa não é uma simples convenção social", disse o papa. "[Porque] as políticas que afetam a família ameaçam a dignidade humana.” O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) ficou indignado com a declaração de Bento 16, que é, segundo ele, suspeito de ser simpático ao nazismo. "Ameaça ao futuro da humanidade são o fascismo, as guerras religiosas, a pedofilia e o abusos sexuais praticados por membros da Igreja e acobertados por ele mesmo", disse. Tweet Com informação

Pastor mirim canta que gay vai para o inferno; fiéis aplaudem

Garoto tem 4 anos Caiu na internet dos Estados Unidos um vídeo onde, durante um culto, um menino de quatro anos canta aos fiéis mais ou menos assim: “Eu sei bem a Bíblia,/Há algo de errado em alguém,/Nenhum gay vai para o céu”. Até mais surpreendente do que a pregação homofóbica do garotinho foi a reação dos fiéis, que aplaudiram de pé, em delírio. Em uma versão mais longa do vídeo, o pai, orgulhoso, disse algo como: “Esse é o meu garoto”. A igreja é a Apostólica do Tabernáculo, do pastor Jeff Sangl, de Greensburg, Indiana. Fanático religioso de amanhã Íntegra do vídeo. Com informação da CBS . Pais não deveriam impor uma religião aos filhos, afirma Dawkins. julho de 2009 Intolerância religiosa no Brasil

Cristãos xingam aluna que obteve decisão contra oração

Jessica sofre hostilidades desde meados de 2011 Uma jovem mandou pelo Twitter uma mensagem para Jessica Ahlquist (foto): “Qual é a sensação de ser a pessoa mais odiada do Estado? Você é uma desgraça para a raça humana.”  Outra pessoa escreveu: “Espero que haja muitos banners [de oração] no inferno quando você lá estiver apodrecendo, ateia filha da puta!” Jessica, 16, uma americana de Cranston, cidade de 80 mil habitantes de maioria católica do Estado de Rhode Island, tem recebido esse tipo de mensagem desde meados de 2011, quando recorreu à Justiça para que a escola pública onde estuda retirasse uma oração de um mural bem visível, por onde passam os alunos. Ela é uma ateia determinada e leva a sério a Constituição americana, que estabelece a separação entre o Estado e a religião. Os ataques e ameaças a Jessica aumentaram de tom quando um juiz lhe deu ganho de causa e determinou a retirada da oração. Nos momentos mais tensos, ela teve de ir à escola sob a proteção da

Anglicano apoia união gay e diz que Davi gostava de Jônatas

Dom Lima citou   trechos da Bíblia Dom Ricardo Loriete de Lima (foto), arcebispo da Igreja Anglicana do Brasil, disse que apoia a união entre casais do mesmo sexo e lembrou que textos bíblicos citam que o rei Davi dizia preferir o amor do filho do rei Saul ao amor das mulheres. A data de nascimento de Davi teria sido 1.040 a.C. Ele foi o escolhido por Deus para ser o segundo monarca de Israel, de acordo com os livros sagrados hebraicos. Apaixonado por Jônatas, ele é tido como o único personagem homossexual da Bíblia. Um dos trechos os quais dom Lima se referiu é I Samuel 18:1: “E sucedeu que, acabando ele de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou, como a sua própria alma”. Outro trecho, em Samuel 20:41: “E, indo-se o moço, levantou-se Davi do lado do sul, e lançou-se sobre o seu rosto em terra, e inclinou-se três vezes; e beijaram-se um ao outro, e choraram juntos, mas Davi chorou muito mais”. Em II Samuel 1:26, fica claro p

Adventista obtém direito de faltar às aulas na sexta e sábado

Quielze já estava faltando e poderia ser reprovada Quielze Apolinario Miranda (foto), 19, obteve do juiz Marcelo Zandavali, da 3ª Vara Federal de Bauru (SP), o direito de faltar às aulas às sextas-feiras à noite e aos sábados. Ela é fiel da Igreja Adventista do Sétimo Dia, religião que prega o recolhimento nesses períodos. A estudante faz o 1º ano do curso de relações internacionais da USC (Universidade Sagrado Coração), que é uma instituição fundada por freiras na década de 50. Quielze corria o risco de ser reprovada porque já não vinha comparecendo às aulas naqueles dias. Ela se prontificou com a direção da universidade em apresentar trabalhos escolares para compensar a sua ausência. A USC, contudo, não aceitou com a alegação de que não existe base legal para isso. Pela decisão do juiz, a base legal está expressa nos artigos 5º e 9º da Constituição Federal e na lei paulista nº 12.142/2005, que asseguram aos cidadãos a liberdade de religião. Zandavali determinou

Na última entrevista, Hitchens falou da relação Igreja-nazismo

Hitchens (direita) concedeu  a última entrevista de  sua vida a Dawkins da  New Statesman Em sua edição deste mês [dezembro de 2011], a revista britânica "New Statesman" traz a última entrevista do jornalista, escritor e crítico literário inglês Christopher Hitchens, morto no dia 15 [de dezembro de 2011] em decorrência de um câncer no esôfago.