Pular para o conteúdo principal

Memórias coletivas alimentam conflitos entre nações. Como escapar desse círculo medonho?

As representações sociais do passado podem perpetuar consequências de controversas e discórdias que deveriam estar superadas


OLUMBA E. EZENWA
bolsista de doutorado no Centro de
Pesquisa de Conflitos, Violência e 
Terrorismo, da Royal Holloway, 
Universidade de Londres, Inglaterra

The Conversation
plataforma de informação
e análise produzida por 
acadêmicos e jornalistas

Quando um grupo de jovens atacou lojas e edifícios em Tallinn, na Estônia, na noite de 26 de abril de 2007, provocou dois dias de agitação civil. Isto resultou na morte de um jovem, ferimentos em 100 pessoas, incluindo 13 policiais, e na prisão de mais de 1.000 pessoas.

A agitação deveu-se a um desacordo entre duas comunidades – de etnia estônia e de etnia russa – sobre como deveriam recordar os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e do período soviético. Essas divergências resultaram de “memórias coletivas” controversas de eventos e narrativas.

Essas recordações partilhadas de acontecimentos passados ​​podem surgir entre um grupo ou nação – sejam elas factuais ou fabricadas.

Como demonstrei num artigo publicado na Genealogy, as memórias coletivas entre os indivíduos de uma comunidade, transmitidas através de gerações, estão frequentemente no centro dos conflitos.

A memória coletiva é uma representação social do passado. Em última análise, explica como as lembranças compartilhadas das pessoas são formadas dentro dos grupos sociais aos quais pertencem. Mas também explica como são formadas contra grupos sociais dos quais não se consideram membros.

Isto cria um passado partilhado e coletivo entre cada grupo que pode ser reacendido no presente para reter a memória do passado.

Esta pode parecer apenas mais uma palavra para história. Mas a memória não é história. Em última análise, a história vê os eventos com profundidade e de múltiplas perspectivas.

Contradições sociais do passado
são mantidas vivas muitas vezes 
por narrativas fantasiosas

A memória coletiva, por outro lado, simplifica os acontecimentos – vendo-os a partir de uma perspectiva única e reduzindo-os a mitos.

É muito parecido com o modo como nossas memórias individuais funcionam. Frequentemente, elas são falhas e motivadas pela forma como queremos nos ver. Como tal, a memória coletiva está fundamentalmente ligada à identidade de uma forma que a história aspira não estar, embora esta última possa impulsionar a primeira.

As memórias coletivas podem ser compartilhadas de diversas maneiras. Isto inclui contos de família, folclore, educação institucionalizada, redes sociais, narrativas sancionadas, propaganda e educação.

Um vislumbre da Nigéria

Defendo que relatos históricos controversos moldam as memórias coletivas, bem como o comportamento coletivo. 

Minha conclusão baseia-se em estudos de caso realizados em abril de 2018 e maio de 2022 no estado de Benue, na Nigéria, com o objetivo de compreender a persistência dos conflitos naquele país ao longo do tempo.

Os eventos históricos na Nigéria pré-colonial, colonial e pós-colonial ressoam hoje. Isto reacendeu memórias coletivas, influenciando o comportamento coletivo face à violência. Isso ocorre porque as pessoas procuram reparar as queixas atuais através das lentes dos acontecimentos passados.

A história da Nigéria é marcada pela violência persistente, através das eras do imperialismo europeu, da independência, da guerra Nigéria-Biafra (1967-70), das ditaduras militares e da política multipartidária.

Um problema é a eco-violência – conflito pela água e outros recursos agrícolas entre grupos em conflito: pastores nômades e agricultores. Estes conflitos persistem há décadas, desde os tempos coloniais até à independência e aos dias de hoje.

As memórias coletivas influenciam o comportamento coletivo das pessoas de diversas maneiras. Primeiro, eles fornecem contextos históricos para questões contemporâneas. Em segundo lugar, ligam uma emoção passada conhecida e partilhada coletivamente a um evento atual. E terceiro, associam questões atuais a contradições sociais de acontecimentos anteriores, como os esforços coloniais para dividir e conquistar.

A convergência destes três fatores molda a persistência de conflitos entre os pastores nômades e os agricultores. Existem narrativas conflitantes entre os dois grupos em relação à propriedade de terras comunais. Existem também opiniões divergentes sobre quem deveria ter acesso a ele – e como.

Entre os agricultores da região, os conflitos são vistos como um ressurgimento da jihad de 1804, um ataque militar e religioso levado a cabo por um exército islâmico, com o objetivo de reivindicar as suas terras. Eles agora se sentem atacados novamente.

Os pastores nômades fulanis, por outro lado, afirmam os seus direitos de acesso aos recursos agrícolas citando a sua linhagem ao Califado de Sokoto, que foi criado como resultado da jihad e outrora governou partes da região centro-norte.

Estas memórias coletivas controversas entre os dois grupos moldam as percepções das pessoas e as suas ações coletivas. E esta transferência de emoções de acontecimentos passados ​​para acontecimentos novos complica a resolução pacífica de conflitos. Em última análise, leva a disputas violentas persistentes.

Os conflitos violentos em curso entre agricultores e pastores nômades fulanis na Nigéria, semelhantes aos distúrbios de 2007 em Tallinn, na Estónia, são moldados por diferentes narrativas do passado. O efeito das memórias coletivas na intensificação destes confrontos violentos é inegável.

Resolução de conflitos

Incorporar a memória coletiva nas estratégias de resolução de conflitos é crucial para alcançar uma paz sustentada. Uma maneira de fazer isso é usar “técnicas de reavaliação cognitiva”. Tais técnicas envolvem expor indivíduos a situações de grande carga emocional para mudar suas reações emocionais.

O distanciamento temporal, por exemplo, é uma técnica de reavaliação cognitiva que ocorre quando você imagina um evento estressante da perspectiva do seu eu futuro, e não da perspectiva do seu eu atual.

Outra técnica, o autodistanciamento, implica afastar-se das suas reações imediatas para ver eventos carregados de emoção a partir de uma perspectiva mais ampla. 

A técnica de reavaliação cognitiva, quando aplicada a uma situação de conflito, visa diminuir a hostilidade do grupo, encorajar respostas pacíficas a incidentes violentos passados ​​e reduzir o comportamento agressivo nas interações do grupo.

Poderia, portanto, reduzir as divergências entre duas comunidades. Embora a adaptação desta abordagem ao contexto nigeriano possa exigir estudos adicionais, ela tem potencial.

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

PMs de Cristo combatem violência com oração e jejum

Violência se agrava em SP, e os PMs evangélicos oram Houve um recrudescimento da violência na Grande São Paulo. Os homicídios cresceram e em menos de 24 horas, de anteontem para ontem, ocorreram pelo menos 20 assassinatos (incluindo o de policiais), o triplo da média diária de seis mortes por violência. Um grupo de PMs acredita que pode ajudar a combater a violência pedindo a intercessão divina. A Associação dos Policiais Militares Evangélicos do Estado de São Paulo, que é mais conhecida como PMs de Cristo, iniciou no dia 25 de outubro uma campanha de “52 dias de oração e jejum pela polícia e pela paz na cidade”, conforme diz o site da entidade. “Essa é a nossa nobre e divina missão. Vamos avante!” Um representante do comando da corporação participou do lançamento da campanha. Com o objetivo de dar assistência espiritual aos policiais, a associação PMs de Cristo foi fundada em 1992 sob a inspiração de Neemias, o personagem bíblico que teria sido o responsável por uma mobili...

Santuário Nossa Senhora Aparecida fatura R$ 100 milhões por ano

Basílica atrai 10 milhões de fiéis anualmente O Santuário de Nossa Senhora de Aparecida é uma empresa da Igreja Católica – tem CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) – que fatura R$ 100 milhões por ano. Tudo começou em 1717, quando três pescadores acharam uma imagem de Nossa Senhora no rio Paraíba do Sul, formando-se no local uma vila que se tornou na cidade de Aparecida, a 168 km de São Paulo. Em 1984, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) concedeu à nova basílica de Aparecida o status de santuário, que hoje é uma empresa em franca expansão, beneficiando-se do embalo da economia e do fortalecimento do poder aquisitivo da população dos extratos B e C. O produto dessa empresa é o “acolhimento”, disse o padre Darci José Nicioli, reitor do santuário, ao repórter Carlos Prieto, do jornal Valor Econômico. Para acolher cerca de 10 milhões de fiéis por ano, a empresa está investindo R$ 60 milhões na construção da Cidade do Romeiro, que será constituída por trê...

Papa tem prima na Austrália que é Testemunha de Jeová

Bento 16  fez uma visita  a sua parente Em sua visita à Austrália, o papa Bento 16 visitou uma prima de segundo grau. O nome dela é Steffie Brzako Kopp, tem 81 anos, mesma idade do papa, e é também alemã. Steffie é Testemunha de Jeová. Ela mora em Cooma, comunidade de 8 mil pessoas. Sua mãe foi prima da mãe de Joseph Ratzinger, hoje o papa. Ela não via o primo desde 1979, época que Ratzinger era arcebispo de Munique, informa o jornal Canberra Times. Ao visitar a prima, Bento 16 elogiou as atividades missionárias dos Testemunhos de Jeová. E acrescentou: “Vocês estão fazendo o que deveríamos fazer. Têm salas pequenas, mas cheias; nós temos as catedrais e as igrejas, muitas vezes vazias”. A afirmação do papa confirma que ele não está preocupado com a perda de fiéis nos últimos anos, graças, por exemplo, a atitudes retrógadas da Igreja Católica de ser contra o uso da camisinha nesta época de AIDS. O bispo Edir Macedo, oportunista do jeito que é, talvez se inte...

Cardeal africano cotado para ser papa associa gay à pedofilia

O conservador Peter Turkson é forte  candidato a substituir o papa Bento 16 O cardeal Peter Turkson (foto), de Gana, disse à rede CNN que há menos casos de pedofilia na África em relação a outros continentes porque muitos povos africanos não aceitam o relacionamento sexual entre pessoas do mesmo sexo. Nas bolsas de apostas, Turkson é um dos mais cotados para ser o novo papa. Ele afirmou que a África existem “sistemas culturais tradicionais que protegem sua população dessa tendência [pedofilia]”. Isto porque, explicou, em muitas comunidades “as relações de pessoas do mesmo sexo não são toleradas". Barbara Blaine, presidente da Snap., uma ong de assistência às vítimas de pedofilia, disse que o comentário “horrível” de Turkson o desqualifica para substituir Bento 16. "As declarações do cardeal são inaceitáveis”, disse Blaine à Folha de S.Paulo. “Se ele for eleito o novo papa, a igreja vai jogar sal nas feridas das vítimas e mandar um sinal claro de que os padres crimi...

Cinco deuses filhos de virgens morreram e ressuscitam. E nenhum deles é Jesus

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Livro conta em 300 páginas histórias de papas das quais poucos sabem

Chico Buarque: 'Sou ateu, faz parte do meu tipo sanguíneo'

O compositor e cantor Chico Buarque  disse em várias ocasiões ser ateu. Em 2005, por exemplo, ao jornal espanhol La Vanguardia , fez um resumo de sua biografia.

Nada na civilização faz sentido, exceto à luz da evolução de Darwin